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Pavana para um macaco pré-socrático

"Pavana para um macaco pré-socrático". Desenho de Gilbert Chaudanne.
“Pavana para um macaco pré-socrático”.
Desenho de Gilbert Chaudanne.

 Santa Teresa de todas as Rosas.

Seu bosque — Arca de Noé — o chamado Museu, com sua parafernália de bichos presos e soltos e a majestade monárquica das suas vegetações.

E o homem a flanar pelo labirinto da natureza levemente humanizada, demorando na contemplação de um gato do mato com seu olhar imenso e assim como noturno e imensamente cósmico imensamente. Flutuação de outros olhares de outros bichos: cavalos na feira de Carapina, olhares dessa vez femininos, como os das marro- quinas por cima do véu islâmico, uma tristeza junto com uma delicadeza que faz olhar para dentro do homem como uma consciência cheia de brandura, uma consciência de mel, pode ser, que não é mais aquela espada do olhar da pedra cortada — não — olhar consciência da colmeia, mel-néctar de que pulo por cima do conhecimento?

Entretanto, na surpresa de uma senda à meia-luz, o estremecer de um olhar debaixo das folhas mas por cima de uma árvore, um olhar inquieto, raciocinante, bisbilhoteiro, curioso que só uma criancinha, redondo como o botão de um casaco, um olhar moleque e meio amigo, meio safadinho: o macaco, funcionário eficiente da mata com suas suíças, vigia de primeira e filósofo dessa mata toda, o único a olhar o homem com um olhar de homem — de igual para igual — surgindo dessa mata, não como o leão, como o rei pela majestade e a força, não, o macaco surge da mata como o homem surge do macaco — quer dizer com um não-sei-o-quê no olhar que diz que ali pára o afresco monumental dos Grandes Carnívoros e dos paquidermes hiperbólicos; é o fim da ópera cósmica, com as girafas fatais: Carmen, com as traviatas asmáticas: hienas, os otelos desvairados: leão, as Butterfly de São Nunca: antílopes e todas as beldades transmundanas do palco da mata, meu Deus, não.

Com o macaco, o homem entra na roda, (e) exatamente o homem-Voltaire. Com o macaco há de mandar para as favas a parafernália operística e olhar na sua frente aquela mata barroca — e resolver ou não, mas pelo menos tentar resolver esse problema sério do espaço primato: “il faut cultiver notre jardin” (há que cultivar nosso jardim). Esse olhar do macaco é o de Voltaire olhando para o jardim do espaço humano e cortando, talhando os galhos da mata doída, da ópera da mata. Esse olhar redondo como a crítica da Razão Pura chama a razão prática — aquele espírito dos limites que nos cercam e a volta ao lar, renunciando definitivamente às aventuras, dentro da mata divina e feroz. Descartar a loucura, mesmo sendo inspirada pelos deuses — descartar a encenação dos Bichos Divinos e recolher-se por cima do bom senso de um Descartes não descartável e da pequena razão prática sobre esse galho que é meu porque eu o plantei e que dá as costas para os galhos cósmicos da mata, mesmo se esta, grande, salada que ela é, me apunhala por trás — traiçoeira como os felinos do último suspiro.

Porém, havia também, e isto simultaneamente com a presença voltairiana no olhar do macaco, algo que não tinha nada a ver com a crítica da Razão Pura e prática. Era como uma coluna de pedra preta — parecida com os lingás da Índia — que erguia-se dentro da menina dos olhos, que era como uma árvore de pedra parecendo sustentar a mata — ou então parecia que a mata toda se refletia dentro dessa pedra preta barrando a pupila — era como uma noite aberta, e nesse “pas de deux” entre o aberto e a noite, não havia mais lugar para qualquer tipo de razão, ou pura ou pratica — se havia lugar, era para uma espécie de espinha dorsal se espinhando todinha e que era como o eco plástico dos vagidos, dos gritos que enchiam a mata. O macaco não era mais o primo do homem, ele era então o antiesboço do humano, era uma gaiola torácica cheia do canto rouco da mata, um sopro que não respirava ao ritmo nosso, mas que ria nas nossas costas como a conclusão mal educada do nosso macaco, baixando as calças que ele nem tinha, mostrando para mim, humano, — o buraco do seu cu — e cagando magnificamente sobre minha humanidade.

"O macaco cagando em cima da minha humanidade". Desenho de Gilbert Chaudanne.
“O macaco cagando em cima da minha humanidade”.
Desenho de Gilbert Chaudanne.

[CHAUDANNE, Gilbert. Pavana para um macaco pré-socrático. Revista Você, Vitória: Ufes, n.17, II, nov. 1993. Terceiro texto da segunda trilogia. Reprodução autorizada pelo autor.]

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Gilbert Chaudanne é artista plástico e escritor. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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