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Pedra, dragão, bailarina

"Pedra Azul". Desenho: Gilbert Chaudanne.
“Pedra Azul”. Desenho: Gilbert Chaudanne.

 Você sabe — há aquelas viagens de ônibus-do-Brasil, flutuando na fofura dos seus assentos e no asfalto-fita da estrada.
O viajar profundo das estradas, e que mais?
Sonolento o passageiro “dentro da noite veloz”
sonolento e como magnífico analgésico de todas as dores do pobre espaço humano,
aquele acordar que não sabe se acordou realmente que flutua como o ônibus na fita-estrada entre o consciente e o reino dos peixes dourados dentro da abóbada de nossos crânios ocos, meu deus!
Há a estrada-fita do Brasil e o cenário montado na beira dessas estradas e que o homem chama de paisagem.
Porém não há nenhuma certeza que essa paisagem exista e pode ser que isso tudo, essa paisagem pode ser apenas uma encenação grandiosa de um artista oculto que mora e trabalha na beira da estrada, meu deus!
Sonolento então eu, e a pedra se levantou diante do meu olhar semi-fechado e meu olho via o mundo-paisagem através da grade dos meus cílios
e a pedra se levantou diante dos meus cílios
e ela foi logo dona do meu olhar que se tornou oco,
e ela enchia o espaço do meu olhar oco,
e meu olhar se tornara então um olhar de pedra como
o dos deuses de mármore e granito das civilizações mortas
a pedra enorme, exaustiva era azul
e meu olhar pois, azul também era,
azul, a cor do absoluto
a cor doce de um absoluto que faz gritar
e se erguer definitivamente no derradeiro espasmo
antes de toda morte
O corpo duro e o olhar fixo da pedra
o homem duro e morto como a pedra morta
o amigo-homem morto! oh cristãos-vivos, uma perda dura!

Entretanto isto era apenas uma face dos mil rostos de pedra, era a face da pedra dura;
mas havia também a face da pedra azul, naquela hora, no meio da noite oca, era um azul escuro mas trespassado por uma luz-transparência e difusa que fazia o olhar se perder na ausência de um centro
dentro desse azul de ópera
e naturalmente
logicamente
o olhar ia deslizando como um trenó dentro da neve até vir bater na cristalização desse azul do céu na pedra azul de todos os céus.
A pedra erguida era o dedo indicador, a última manifestação da terra morena já angelizada pelo azul absoluto e oco, era o sexo da terra erguida com sua epiderme de anapiê e de capim santo querendo penetrar o imponderável do céu diáfano e assexuado como os Anjos-de-Nosso-Senhor
e por cima da pedra, havia o holofote da morte veloz: a lua,
toda cheinha de ginga, de meiguice enfeitada, arrumadinha como para uma festa junina, falsa matuta e ao mesmo tempo imensamente rainha, pálida
porém radiante
Salomé
marcando seu próprio ponto
na frase hieroglífica da paisagem;
enfim uma nuvem de extrema delicadeza, algo como uma musselina, uma gaze não usada dos hospitais, flutuando dentro da sua própria leveza e na leveza de uma bailarina e seu “tutu”
gaseosa e vapor / a bailarina debaixo da lua, dançando, voando por cima da pedra imensa- erguida,
meu deus! e dentro da menina dos meus olhos como uma homenagem à pedra e aos meus olhos
uma homenagem absoluta da leveza para a potência turgescente e erguida na quase eternidade do granito:
núpcias!
núpcias da introversão do granito com o nunca-estar-aqui da bailarina e sua imponderabilidade infinita.

E agora surgindo dos anapiês e do capim santo,
com sua face milenar e enrugada, boiando simbolicamente no sangue de 10.000 virgens, o Rei-lagarto celebrando sua realeza esfregano sua barriga de couro velho no couro cristalizado da pedra, tentando abraçá-la, essa pedra ou o quê? Que tipo de bodas desta vez tétricas, caduceu, e traumatizantes para o zé-humano vão florescer nessa noite sem fim por cima da montanha e debaixo da lua pré-histórica ou o que é? que antiga estória mal-assimilada está sendo contada aqui na base do granito, da escama e da musselina. Pedra, dragão, bailarina, o Dragão-Rei, o lagarto largado desvairado, lentamente se imobiliza, entra na fascinação da
pedra
e se torna pedra fascinada pela bailarina
e assim o triângulo se fecha:
no cume a bailarina
na base a pedra e o lagarto
e no centro do triângulo
o olhar do meu olho que já não é mais o meu
mas algo imensamente feroz como o Rei-lagarto
algo imensamente terno e cheio de graça como a bailarina
algo de imensamente azul como a pedra.

"O rei lagarto". Desenho: Gilbert Chaudanne.
“O rei lagarto”. Desenho: Gilbert Chaudanne.

[CHAUDANNE, Gilbert. Pedra, dragão, bailarina. Revista Você, Vitória: Ufes, n.16, II, out. 1993. Segundo texto da segunda trilogia. Reprodução autorizada pelo autor.]

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© 1993 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização  dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
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Gilbert Chaudanne é artista plástico e escritor. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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