Voltar às postagens

Pelos olhos se vê quem tem lombrigas…

Afrânio Peixoto, em seu interessante livro Missangas, em grande parte dedicado a temas de folclore, reserva longo trecho às “superstições populares relativas à saúde, doença e morte”, e, ao citar “remédios para prevenir e curar”, aponta este velho processo: “Conhece-se pelos olhos, quem tem lombriga na pansa”.

Tal prática doméstica nos vem de longe, de muito mais longe do que se pensa. Conseguimos localizá-la, por exemplo, lá no recuado século XVI, num dos autos vicentinos, a Comédia de Rubena, datada de 1521.

Diz Benita, a Rubena, sua ama:

“Teneys los ojos sumidos,
y delgadas las narices

Rubena:
“Tú no ves que son lombrices?”
(Gil Vicente, Obras completas, vol. III, p. 9).

A crença se mantém no século seguinte, como o comprova o seu registro na Feira de anexins, de Francisco Manoel de Melo, duas vezes referida. Na “Metáforas de olhos”(p. 58): “Diga, que logo nos olhos se vê quem tem lombrigas”; e na “Metáforas de bichos”(p. 213): “Eu não sei, logo nos olhos se vê quem tem lombrigas”.

Se prosseguirmos a verificação através dos tempos, podemos situar a expressão também no século XVIII. Lá está ela numa das Cartas do Cavaleiro de Oliveira, o donjuanesco Francisco Xavier de Oliveira, sempre “rico de informações etnográficas” de sua época, segundo dele disse Câmara Cascudo (Literatura oral, p. 74). Na carta ao padre Dom José Augusto, datada de Viena, 4 de julho de 1737, tão cheia de malícia e de humorismo, se encontra o seguinte passo, com a referência que aqui nos importa: “Como a ciência de conhecer pelo rosto quem tem lombrigas é a mesma que a de julgar o gigante pelo dedo e a de descobrir Hércules pelo pé ex pede Herculem…” (Cartas, p. 162).

Passemos ao século XIX. Num dos livros de Camilo Castelo Branco, Duas horas de leitura, no irônico e chistoso relato que é a sua viagem “Do Porto a Braga”, vamos deparar a mesma crendice da lombriga, na seguinte passagem, à página 113. Trata-se do exame “clínico” a que se submete um dos viajantes, e que supunha ter a tênia. Camilo assim o conta: “J. B. sentou-se. Não pude ouvir o relatório dos seus padecimentos. A sua voz era cava e misteriosa. Havia ali entre ambos uns visos de cabala, palavras surdas de feitiços, olhares vesgos de coisa-ruim. O doutor ouvia, e o pouco que dizia era acentuado, bamboleando solene a cabeça piramidal. J. B. tirou os óculos; o doutor procurou a cabeça da tênia na retina, ao que parecia dos seus olhares perscrutadores. Nisto, a um sinal negativo do doutor, ergue-se J. B., e diz ‘Não tenho a bicha!'”

Como se vê, há cinco séculos perdura em Portugal e no Brasil, a velha crença popular que descobre, pelos olhos, a presença de tênias ou lombrigas…

[Alto está e alto mora — Nótulas de folclore. Vitória: edição do autor, 1954.]

Guilherme Santos Neves foi pesquisador do folclore capixaba com vários livros e artigos publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

Deixe um Comentário