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P.J.N., escritor

A cidade oculta

Pedro J. Nunes

Outro dia aconteceu cair diante de meus olhos a fotografia de um ônibus na avenida Beira-Mar. Na calçada, apenas uma mulher e duas crianças, mais ninguém. Mais ninguém do lado de cá, na praça Getúlio Vargas, de onde a fotografia foi tirada. O ano era 1984. Das reflexões imediatas acerca da fotografia antiga, fica o fato de que Vitória tinha, naquela época, bem menos habitantes que hoje, menos veículos – apenas um fusca seguia o ônibus, nenhum carro estacionado na margem da praça Getúlio Vargas. Faixa de pedestres? Não me lembro, ou talvez me lembre de uma ou outra, às quais se dava muito menos atenção do que atualmente se dá.

E hoje?

Vitória esticou para tudo que é lado, quase se modernizou – não pode ser moderna uma cidade que praticamente não funciona depois das 22h ou a qualquer hora aos domingos. Atingiu a marca de quase 3.500 habitantes por quilômetro quadrado, o que é um acinte. Já não se pode tirar uma fotografia da Beira-Mar sem que façam pose dezenas de transeuntes e tantos veículos quantos haja espaço na objetiva da máquina fotográfica.

O destaque de minhas reflexões é que, bem diferente daquela época, já quase nada acontece no Centro, onde a fotografia foi tirada.

Antes que alguém possa achar, esclareço: não estou com saudade nem nostalgia. Por favor. Não pactuo com essa conversa velha de que os bons tempos eram melhores. Meu tempo é exatamente este em que estou sentado diante de minha tela full hd escrevendo este texto sobre Vitória, a aprazível capital do Espírito Santo, onde resido e onde descansarão meus ossos. A fotografia foi um mote para lembrar de que naquela época, meados dos anos 1980, quase todas as coisas, e quase significa quase tudo, acontecia no Centro de Vitória, local que ainda hoje guarda suas fortuitas exclusividades. Quer um exemplo? Se você necessitar de uma ferragem bem específica, sabe onde vai achar? No Centro de Vitória. Pode procurar em outros bairros, não encontra. Isso é um dado arqueológico, mas é um dado real. A vida acontecia no Centro.

Olhe só

: os cinemas ficavam todos no Centro, e Vitória, afirmo, com todo meu horror à nostalgia, nunca mais terá cinemas como o São Luiz e o Cine Paz. Eram cinemas enormes, havia certo charme em frequentar suas últimas sessões, principalmente as vazias. Assistir, por exemplo, a um filme de Walter Hugo Khouri com Nicole Puzzi no Cine Paz na última sessão da noite era um fascínio que jamais se repetirá.

: havia a Lanchonete Sarlo, que ficava no terraço da Padaria Sarlo, ambiente requintado onde ir com a amiga recente tomar um suco de laranja on the rocks e trocar uns olhares promissores enquanto a noite se consolidava sobre as árvores do Parque Moscoso.

: e tudo, ou quase tudo para os jovens da geração em que fui jovem, acontecia na rua Sete, que já pediria de referência um capítulo inteiro.

Claro, na dinâmica das coisas, a cidade, tendo se deslocado para tudo quanto é lugar, já não converge para o Centro, que ficou um lugar mais ou menos ao relento – sobre o qual os políticos fazem as mais disparatas promessas –, um deserto depois das sete da noite e nos finais de semana, onde se pode marcar um encontro privado com o Vento Sul quando sopra o Vento Sul.

A julgar pelo blá-blá-blá que se ouve nos debates, nas campanhas políticas, na conversa dos nostálgicos, etc., o Centro, ou sua decadência, parecem haver se tornado preocupação de todos.

Está certo, mas será que não podíamos abrir mão, por exemplo, dessas cínicas placas indicativas espalhadas pela cidade apontando para o Centro Histórico? Eu e você, capixabas nativos ou não, que estivemos no Centro naquela época, sabemos muito bem que o Centro se esconde atrás das grandes placas das lojas – e se esconde muito bem escondido, de quase não se ver. E por andarem, neste século XXI, cada vez mais cabisbaixas, não se há de exigir das pessoas que vejam as belas fachadas antigas no alto, atrás das placas, que é onde se esconde o tal Centro Histórico das placas – das placas indicativas, duas ou três espalhadas pela cidade. Por isso duvido que um transeunte estrangeiro consiga enxergá-lo. Vai andar a cidade inteira atrás do Centro Histórico e nunca vai encontrá-lo ou vai reduzi-lo à praça João Clímaco e ao Palácio Anchieta, dizendo de si para si, embasbacado de decepção, “mas o Centro Histórico é só isso?”

Mas há coisa pior, pois muito pior que ficar escondido atrás das placas das lojas, é ficar escondido atrás da fiação caótica dependurada nos postes fincados nas calçadas do Centro. É um escândalo. Se você duvida, vá ao Parque Moscoso e tente admirar a belíssima construção onde ficava a Lanchonete Sarlo. De qualquer ângulo, você só consegue ver um emaranhado aterrador de fios. Na Costa Pereira, onde algumas das antigas construções vêm sendo conservadas, os cabos se emaranham de tal forma nos postes que ninguém consegue tirar uma fotografia para levar de recordação da visita à capital dos capixabas.

Não quero o Centro escondido em minhas memórias. Não quero placas cínicas tentando revelar um Centro Histórico oculto atrás das nizares. Muito menos quero um Centro ignominiosamente encoberto por uma fiação emaranhada dependurada nos postes. Creio ser perfeitamente possível que o Centro se atualize para as gerações que se sucedem e, sem que tenham necessidade de lamentar e sentir saudade, possam vir a usufruir dele em toda a sua atualidade e presença e charme. Garanto que não há lugar melhor na cidade para tomar um pingado e trocar meia dúzia de palavras amáveis e sinceras com as meninas gentis que atendem nas lanchonetes.

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