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Poemas do livro Canção da meia-idade

LA CLEF DES CHAMPS

A partir de René Magritte

Esta paisagem permanecerá em mim, assim,
ainda que a retina se faça cacos
ainda que a memória seja apenas
uma casa de aves vazia
ou
pedaços irredimíveis de tempo
tipo um vídeo-teipe fragmentado.

Este campo manso
este mato macio
esta árvore erguida
serão sempre assim em mim
paisagem constituída.

Ainda que a memória se estilhace
no atropelo dos dias
esta paisagem permanecerá em mim, assim,
ao sol da tarde
de um antigo dia:
obra da poesia.

OS ESPELHOS

I

Aqui se passa o filme de um tempo
Projetado sobre os espelhos que se multiplicam
com olhos ágeis nos procuramos
nos encontramos enamorados e nos perdemos
há inesperadas e numerosas exclamações
se chocando nesta ante-sala iluminada
mãos portam flâmulas flamantes
e braços erguem buquês de pendões
os corpos gritam discursos de primavera
e os corações sustentam ritmos exaltados

II

Antes da sala de espelhos tem a cidade
seu cais, seu caos emergente, suas casas

há pouco viemos descendo ruas, cruzando bares
saídos de republicas desconhecidas, terras de sonhos

ouvimos pelo caminho sussurros conspiradores
tramando revoluções em becos úmidos

depois de um soco duro e de um choro amordaçado
de longe nos atingiu o som de um tiro

na banca da praça os jornais com páginas em branco
confundiram os nossos olhos adolescentes

III

Depois dos espelhos tem o portal do mundo
a tela se abrirá à extensão da fantasia

nossos olhos brilharão na sala escura
inundados de amor, ópio, sonho e revolução

mudos seremos heróis e transgressores
fundaremos pátrias, escreveremos canções

conheceremos países, viveremos aventuras
mulheres, amigos, livros, solidões

ao fim voltaremos à cidade e aos seus mistérios
voando em bando noturno pelo céu da ilha

IV

Quando estes espelhos tiverem se partido
teremos partido, partidos, pra longe daqui

seremos ladrões, padres, jornalistas
poetas, banqueiros… ou não mais seremos

nossos olhares estarão gravados na retina do vidro
nossas esperanças na lâmina mínima do metal

e os filmes vividos nesta ante-sala do Cine Juparanã
estarão arquivados na memória incerta dos espelhos quebrados

RÉVEILLON

I

A noite procede como sempre lhe coube proceder:
sendo noite
com seus fluidos
com sua constelação de hipóteses
com seu armazém de sonhos.

Atenta às canções murmuradas
nos seus poros escuros
-nos seus porões de luz-
a noite passa com seu passo assíduo
como quem não conhece o tempo do homem.

O tempo da noite é domínio do sol.

II

As estrelas têm o seu tempo e o seu movimento.
As estrelas têm a sua história
que não cabe no intervalo breve
da história humana

Daí a distância em que se colocam
nesta noite clara
Daí o desconhecimento que demonstram
desta hora tão celebrada

Esses gritos não atingem
os seus ouvidos de gás

Esses fogos, esses farois
e essas luzernas festivas
nem sequer arranham, mesmo que levemente,
as suas peles de luz.

III

Vejo essa montanha de pedra
absorta, quieta
colocada no meio da cidade,
-ou, mais correto, em torno da qual
a cidade se colocou-.
Percebo que o seu tempo é diferente
do tempo da metrópole
do tempo dos prédios, das ruas, das lojas, dos bancos.
O seu tempo é diferente do tempo da civilização.

Ouço a sua canção lenta, milenar, monocórdia.
Ouço o seu dueto com o vento.
E entendo a distância que a separa
da cidade nervosa que a envolve.

IV

As árvores dessa rua são as árvores
dessa rua
e só sabem ouvir o vento e dançar a sua música.

Elas não entendem o tempo do homem
e nem sequer escutam essa algazarra
essa farra
farta que se faz.
A sua festa, outra, é uma fanfarra
de cores
uma ceia silvestre de sabores, em silêncio.

A festa da árvore é o festival dos frutos
quando vier seu tempo.

V

O tempo do galo é a madrugada.
Seu canto salta sobre as cercas do silêncio
sempre que o dia começa a se anunciar
com os mais distantes acenos de claridade.

Indiferente à festa dos homens
o galo festeja nesta madrugada,
como em todas as outras,
o tempo que a natureza lhe ensinou
cantando.

VI

Mariana e Caetano, crianças, dormem
distantes da urgência ilusória da data.
Não os aflige esse traço no calendário.

Seus sonhos voam tranquilos
pelo silencioso ambiente do quarto.

Indiferentes ao alvoroço que sacode a cidade
dormem como numa noite qualquer
nesta noite qualquer.

Há um sorriso de prazer em seus lábios
como se a tudo observassem
calmos, quietos

livres

VII (epílogo)

– Por onde passa o tempo?
Será essa a pergunta que explode na noite
entre gritos, buzinas e fogos?

O que se quer agora é beliscar o tempo?
É ferir a sua pele de nada?
É inquietar os seus olhos serenos?
É interferir na rota do seu passo impassível?

Em torno desse invisível e imenso totem
-o tempo-
o gênero humano gira o seu desespero

e se esquece de ver
que o tempo do homem tem o tamanho do homem
e caminha correto, irreversível e silencioso
sob a sua pele
dentro dos seus olhos
entre os seus cabelos.

Cabe a ele sabê-lo.

SURPRESA

“É desconcertante rever o grande amor”
Chico Buarque de Hollanda e 
Tom Jobim in Anos dourados

I

De repente você abandona a casa da memória
-o espaço da abstração-
e se instala na minha presença.

Vejo você chegar
no meio da realidade confusa de uma casa bancária
surpreendendo o ambiente
feito um pedaço de sol
que se solta no meio de um dia gris.

O seu corpo vem de pátrias claras,
de territórios livres.
Sua boca guarda um gesto de luz.
Suas mãos trazem sons de outras estações
sinfonias de outros dias.
Nos seus olhos há paisagens que eu não conheço.
São praias e pradarias de um mundo absolutamente verde.

II

Mas ao invés de voar no céu da sua presença
eu rastejo mudo na restinga dos meus embaraços.
Minhas asas, se as tenho, estão presas.

III

O tempo, este animal voraz,
enlouquece e engole intensos minutos
no átimo de um olhar.

As palavras tropeçam, chocam-se,
atrapalhadas
incapazes diante do momento incandescente.

Nada foi dito
e você já se vai.

IV

Me deixando, em despedida, o fruto do seu sorriso
você se afasta, em voo, da minha realidade
onde esteve por um triz.
Minha memória parece explodir com tanta imagem e emoção
enquanto eu, entorpecido, retomo a lida tola
de um dia, novamente, gris.

NÃO HOUVE UMA TARDE EM MANGUINHOS

I

O mar quase se aquietava
no movimento dos seus olhos.

A tarde tentava estabelecer seus arcos
montar seu circo de luz
fundar no chão do dia e da gente
sua estrutura de paixão e de calor
tatuar na nossa pele o registro da sua existência:
a tarde nos queria voando no seu ar.

Mas nós nos negávamos a voar
nos entregando ao peso dos nossos corpos obtusos
e enchendo de palavras o espaço daquela tarde
que queria se fazer eterna.

II

Numa praia deserta de Manguinhos
uma tarde se desfazia em torvelinhos.

III

A palavra, este ser oco,
é pouco
no pulsar do corpo:
a palavra mar não significa
o que havia –eu via!- nos seus olhos
naquele momento diante da praia extensa;
a palavra luz não me faz lembrar
a via ígnea que havia –eu via!-
no azul daquele céu deserto;
ao certo
a palavra prazer não encurtará jamais
o espaço que se manteve entre os nossos corpos
inertes e inúteis
resistentes à natureza que nos convidava
a ser bichos famintos
pássaros azuis, deuses enamorados ou amantes nus
no leito daquela praia
no colo daquele mar.

IV

Um amontoado de palavras estéreis
impedia que a tarde se fizesse
amarrando os seus vértices
retendo as suas hélices.

Aquelas palavras adensavam a atmosfera
turbavam o tempo claro
prendiam com o seu peso de história
as asas leves da fantasia.

Nossos corpos adoeciam de lucidez e medo.
Não se integravam à paisagem que os cercava.

Éramos seres estranhos àquele universo de liberdade
e paixão
feito um mangue escuro invadindo a praia branca de Manguinhos
enquanto a tarde se desfazia em torvelinhos.

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Gilson Soares é poeta e nasceu em Ecoporanga, no extremo noroeste do Estado do Espírito Santo, em 10 de fevereiro de 1955. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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