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Poemas do livro inédito Temporâneos

Terra Inicial

I

Vasto e alto o morro, entre tantos, laje
onde ressoa, úmida e fértil, a manhã.

Numa clareira, a história finca seus caprichos
sob a enxada de Manuel Gincanga: cria-se.

Tosco o senhor, toscas as ruelas, alta a vereda
traçada para que São José, o operário,
deixasse seus calos, sua aura, sua igreja
plantada no alto do morro.

Largo o tempo em que portas e janelas
escreveram moradias, ditaram cercas,
coloriram flamboyants, acolheram os dias.

Veio alto, veio laje, veio o nome acanhado
na boca dos homens remotos, da terra embevecidos.

Deu-se a manhã nas cercas de Gincanga.
Brotou o bairro nos canteiros de sua chegada.

II

A tarde toda cheira a laranjeira.

Da igreja de São José descem
Maria, Antônio e grãos de arroz
que a alegria de todos espalha
ao tilintar dos sinos embranquecidos.
Dançam e bebem, no quintal da festa.
Esperam a noiva e o noivo o silêncio
em que deixarão sua nudez à aliança.

Os dias aumentam suas crônicas.
Ele trabalha, retorna, adormece.
Ela trabalha, aguarda, murcha.

A noite se ajeita, confiante no vir a ser.

III

O Moxuara se dedica ao sol,
e um azul de distância ecoa
pela paisagem que rodeia
o oeste dos morros de Alto Lage.

As ruas, as praças, os pardais,
a folhagem toda aos ventos
das árvores e das pipas largadas
nos fios que carregam silêncios.

O Moxuara acolhe nuvens.
Alto Lage hospeda simplicidades.

De cima de quase nada
avisto alturas de dezembro,
e um pó de relógios e história
visita meus olhos úmidos de miopia.

IV

Dezembro se arvora em chegada
nas franjas dos flamboyants
tomados de vermelhos, ao redor
dos caiados muros do cemitério.

Farfalham os calores.

As varandas quaram frescuras
e as conversas giram entre cotidianos e segredos.

As esposas fazem suco; os maridos fumam;
as meninas se perfumam e os rapazes brincam
enquanto a lua entorna luz sobre os cantos
que os olhos dificilmente esquadrinham.

A noite recebe cheiros e líquidos brinquedos.

V

Seu Tião padeiro; Dona Domingas;
Seu Pereira do riso bom;
Dona Lídia da dourada trança.
Todos viram o tempo trazer
e levar paralelepípedos, hibiscos e casas novas.

Vi-os, nas ruas, colhendo idades,
vendo julhos e novembros
com trouxas de férias e Finados.

Vi-os, nas ruas, sorrindo dos relógios.

Começo a colher anos e rugas
e a plantar na sola dos passos
os olhos e as trilhas simples
que adivinho, aos poucos,
nas pistas que eles vão deixando.

VI

Sob o descanso das sibipirunas,
aposentados soletram o tédio,
viúvas esperam a meia-noite,
garotos fazem núpcias com galinhas,
esposos se deitam com nada,
meninas engordam fundos de quintal.

Sob a sombra das ruas,
acostumei-me aos uivos da noite
e ao riso da aurora
a colecionar flagrantes.

Sob a quietude dos que ignoram,
vi que os galos tocam clarim
para que a noite faça
seus enredos e armadilhas
sem que as casas se entristeçam,
sem que a Fortuna enferruje precoce.

IX

Dona Mulata canta nas Quaresmas
de luzes e rosários e de fim de domingo.

As crianças enfeitam de xadrezes
as noites juninas de pipoca e rojão.

Seu Zé Reis, que Deus o acolha!,
ainda espalha balas de Cosme e seu Irmão.

Para os Finados e sua ausência
Isaías vende velas e flores e flores.

A igreja de São José Operário
espalha os anjos com cristais de Natal.

Do porto de Vitória vêm os avisos
de que um ano começa num apito de navio.

Edinho, o louro, e Daniel, o belo Daniel,
anunciam a folia na espuma das cervejas.

Sempre estive à beira do mundo,
enquanto passavam pelos calendários
os indícios de que as ruas batizam
somente os que comungam com elas.

XII

Anoitece e não conheço todas as ruas.

Dezembro escapa, em febre.

O que esperava das estradas
murcha aos poucos e poucos.

Tenho mapas dentro de mim,
e os pontos que marcam
roteiros e rotas e trilhas
foram achados em Alto Lage.

Como saber da conclusão dos caminhos?
Sei que as viagens doem,
e meu sorriso só acende
para vontade de girassol.

Onde os campos amarelos?

Paulistanos (segunda parte)

I

Um véu de Maia ressona
nas manhãs de São Paulo.

Os homens soam seus passos
e não ouvem a poeira
dos sons de outubro e cinza.

Resistem as ruas e os faróis.

Os homens.

O sol trepida. A lua sucumbe.
O tempo se enferruja
nas rugas dos homens que não acordam.

II

As quaresmeiras reluzem de roxos
no Cemitério do Araçá.

Nenhum morto sob suas sombras.

Os pombos encardidos não arrulham:
ganem vôos sobre as flores.

O cemitério ri suavidades
e placas com nomes e datas de mármores.

As quaresmeiras e os anjos sujos
de uma poeira que lembra pólen,
e morre.

III

Há um sapo na esquina
da Ipiranga com a outra avenida.
Hesita.

Urra o ônibus. Verde farol.
Um office-boy chuta o anfíbio
que, sob as rodas de um tumulto,

recorda o quinto movimento
de uma Bachiana ao meio-dia.

IV

Fernão Dias passa horas,
olhando as pedras de Brecheret:

Tudo o que eu encontro
são pedras aquém de meu sonho
de verde, de virudente gema.

É preciosa essa pedra de arte,

mas não faísca como uma menina dos olhos.

V

Na ladeira da Memória
escorre umidamente a noite.

Descem e sobem as horas
debaixo das sombras das janelas
esgalhadas nos prédios tantos.

                     São Paulo garoa esquecimentos.

[Poemas do livro inédito Temporâneos. 1995. Reprodução autorizada pelo autor.]

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Paulo Roberto Sodré, nascido em Vitória em 1962, é poeta, escritor, pesquisador e professor universitário de Literatura na Ufes, com vários livros e artigos publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui.)

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