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Poemas selecionados do livro Dédalo

CONDENADOS

Eu venho de junto aos deserdados
e vou para onde os homens tíbios.
Ao redor de mim vão, apartados,
os meus sonhos (alegres ou escusos),
condenados, inocentes, ao oblívio
de flores nascidas sobre os túmulos.

EU, VINDO DE UM INSTANTE

Eu, vindo de um instante
ainda não havido,
e vendo as coisas completarem sua ausência
e as coisas ausentes como deveriam ter sido
e a vida correndo sem protestar
em seu curso de pedra,
urdindo apenas
silêncio e musgo;
eu, na ânsia de usar meus pensamentos
e, percebendo que Deus já havia desistido
— ou não tinha tempo —
de se ocupar do meu destino:

eu disse, meio a esmo,
meio pra quebrar o gelo,
meio pra criar um vínculo
comigo:

“eu também vou. Pra onde mesmo?”

HERANÇA PORTUGUESA

Minha alma está povoada
com uma herança portuguesa,
estruturada em secretas
perspectivas de nada
roubadas a algum poeta.

Não fosse tanto tão pouco,
minha alma, estando apensa
aos recônditos e às penas
de alguém que já fosse outros,
deixa-me a sós neste corpo.

Deixa-me com mim mesmo,
minha alma que aqui cresceu:
tudo nela era projeto
de olhares, timbres, desejos,
de um que jamais fui eu.

DÉDALO: ASA OU SOL

Quando busco o mais leve movimento na sombra,
um adorno que seja para os meus dias
cortados em fatias
pegajosas de limites e bile;

quando os silêncios de onde nunca estive
(ou estive e não me lembro)
e o sangue de quem amei
(ou jamais amei e não me lembro)
me dizem o verbo morrer
e o lamento, então, das mulheres —
finalmente sossegadas em seus homens cotidianos —
arranca lascas
da estrutura que me protege e embala;

quando tudo reclama sentido
(um bater de desejos,
uma palavra esquecida com displicência
sobre a pia do banheiro
ou entre os bibelôs de cristal e ônix),
desvendo em meio à neblina um pormenor,
abro claros no turvo e caudaloso esquecimento
que vigora no âmbito de mim.

Este instante é aqui.

Então, não mais que depressa, colho um vínculo
qualquer com a névoa ao meu redor e fico ilhado
no ar, olhando meus sapatos pendura
dos
— eu dentro ainda — na margem do abismo.

Assim estou, em um onde que não sei,
atado, em frágil teia,
ao voo sobre o canyon,
uma parte em querendo a asa
e outra buscando o sol.

A qual dos meus destinos dou ouvidos?
A qual dou por vencido?
A qual me rendo?

Livrar-me de um quem sou, por um momento,
pode apagar o risco
da vingança de mim contra mim mesmo.

Mas, no enfim, tudo me leva ao precipício.

ÍCARO: A QUEDA EM MIM

Era tanto voar, tanta amplidão,
soltando-se das asas distraídas;
era tanto azul em pensamentos
de alcançarmos o céu, que nos perdemos.

Fosse lá o que fosse o firmamento
ultra-humano que se abria sobre o sermos
os dois partes então de uma mesma
ideia — e seja lá com que vontades

nos movêssemos nos altos deste mar,
terminamos, ao fim, capturados
pelos deuses de baixo, pois havendo

mais forte do que nós, filho, esta imensa
tua queda do sol, meus sonhos foram
ao cemitério marinho com teu corpo.

DO PONTO MAIS DISTANTE NA FLORESTA

para Cláudia Bravim

Do ponto mais distante na floresta
de asas e desejos que freqüentas
à hora em que te despes, meio a esmo,
aproveitando as brumas de um soneto;

dos rastos nos escombros de poemas
erigidos às portas do teu nome
à substância sombra, que te acolhe
num tempo sem saída e te represa,

o meu amor está nos arredores,
nas coisas que te servem de moldura —
e a elas me condeno: amar, insone,

ao largo do teu corpo, que transmuda
o tudo quanto vejo em tua imagem,
daqui até o futuro é o que me cabe.

QUEM VÊ DO AMOR

Quem vê do amor só a mítica textura
e deixa aos deuses serem responsáveis
por da boca bobagens obscuras
alçarem vôo rumo a um céu de salves
e queridas, rainhas, aves, aves;

quem pensa no amor como num rio
em que toda gente, à bolina,
há de trafegar, reta e segura,
como num quintal as estações
e a certeza das frutas que virão;

conhece apenas dele poucas quadras,
pois amor, além disso, é um inferno,
arrabaldes sem fim de areia e sol,
galerias de dunas intrincadas,
aonde vai-se com só a própria sombra
e o resto na entrada se abandona.

[In Dédalo. 1996; segunda edição, 2001. Reprodução autorizada pelo autor.]

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© 2001 Textos com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
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Miguel Arcanjo Marvilla de Oliveira nasceu em Marataízes, ES, em 29 de setembro de 1959 e faleceu em Vitória, em 2009. Mudou-se com os pais para Vitória em 1964. Poeta, concluiu em 1996 o curso de graduação em Letras-Inglês na Ufes e cursou o mestrado em História na mesma universidade. Publicou diversos livros. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui.)

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