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Poemas selecionados do livro Lição de labirinto

O REMANESCENTE

Encontrar a mesma casa
no mesmo ângulo do silêncio,
sem adágios ou quês de mosca,
chama-se surpresa.

Achar a mesma varanda
esquecida de verbos
incrustada na mesma pose
de véspera de natal,
chama-se surpresa.

Deparar com o mesmo crime,
sujo do mesmo sangue,
pendurado na mesma cadeira,
no mesmo canto da sala,
após tanto tempo sem memória,
chama-se surpresa.

E a mesma atmosfera
de funções sombrias
passeando o ambiente dos quartos,
após tanto tempo sem visitas,
chama-se surpresa.

Preparei-me para esta lembrança:
limpei os pés,
lavei as mãos,
engomei a melhor camisa
e evitei vincos desproporcionais nas calças.
Mas, ainda assim,
encontrar a mesma porta aberta
e os mesmos detalhes em teu corpo e amor,
após tanto tempo sem minúcias,
chama-se pavor.

SÔNIA, FOTOGRAFIA AOS 15 ANOS

Onde o olhar que foge?
Onde?

Puxa a perna,
esconde a pele.
Repete o ritual de célula
que não mostra, mas sugere.

Mas: como tanto?

E: seio proposto
(mais que isso, predisposto)
a nascer,
mergulhado ainda na tenra carne do peito,
alvura ártica do tórax;
nave sem timoneiro,
rumo indefinido,
tudo está propício ao teu erotismo,
ao teu prazer primeiro.

Rasgo esta pele clara
sobre teu púbis fotográfico
e, zoom,
daqui a pouco serás lua,
perpétua
capa de neon do mundo.
(Tomar sal de frutas
para o acaso da lucidez.)

Mas rasgo esta memória
que te protege,
bravo, breve
— em slow motion —
Em troca: sorvete
de cerejas.

Silêncio.
Calma.
A objetiva nos contempla
com seu olhar eletrônico,
ciclope tecnológico,
instante único de eternidade.

(Puxa a perna,
disfarça o corpo
em algo pouco
conhecido,
escapa à luz e à gravidade:

nem tudo está perdido,
nem tudo será tarde.)

LIÇÃO DE LABIRINTO

Para Nilza Maria

Um segredo, como nódoa, no teu olho
indormido e, em não ter medo, intransitivo;
um silêncio, tão em ti completamente,
alugado ao teu prazer e aos teus motivos;

movimento: teus cabelos envolvidos
em que saibas de onde há vento ou girassóis;
algo estranho; uma alma breve, repetida
repetida
entre as tantas que conjugam teus lençóis:

é assim — um instante tão antigo —
que me cobras algum crime mal lembrado.
E, ainda que me lance ao teu alcance

com perícia em fugir ao teu abraço,
fecho o laço que me prende. Então, aprendo
uma nova lição de labirinto.

CANÇÃO DO HOMEM

1. O homem desabitado

Há um homem apartado
de todos os seus sentimentos,
do qual se extraiu o gel
e onde só restou o aço;

há um homem sem lágrimas,
seco,
rude,
áspero,
prosperando pelas ruas;

há um homem do qual podaram as asas,
para quem o infinito já não é possível;

há um homem desabitado,
inóspito,
sem cor,
acordado no auge do abismo.

2. Re-conhecimento

Uma cobra, e não um braço,
se desenrola de mim.
E tudo que ainda faço
termina por ter, assim,
o frio sabor do asco.

3. Teu homem

Eis que ressurge o homem,
apinhado de vergonhas,
prenhe de clareza,
à procura de ti.

Eis aqui o teu homem insone,
carne cedendo ao mais leve toque,
pele que se escama à menor brisa.

Ei-lo aqui e já se (ex) vai.
Foste parca para acomodá-lo.
És fraca para detê-lo, e tarde.

Eis, então, o teu homem que fenece.
Tudo em ti lhe foi negado.

Mas, em verdade, é o teu homem,
meio matéria,
aparentemente imutável,
este no sempre do espelho.

4. Reflexão

E isso a que chamam espelho
— a julgar as aparências —
será só a superfície
sem entre do refletido?

O CUPIM

O cupim
mergulha em meu livro de Fernando Pessoa
até o fundo de mim.

Corrói folha por folha
e a emoção — esta capa usada
que me ficou de sobra.

Trabalha concentrado em seu túnel de papel
— labirinto de palavras
que não decifra, mas devora.

Corrói os English Poems
e nunca termina
sua corrosão térmita.
Em Epithalamium, cada letra,
indecente,
lhe serve de teta,
noivo recente.)

O cupim, em sua fome,
destrói
a celulose e o homem,
a cola, o corante,
o amante,
e não tem fim.

Eu e Pessoa, sim.

ESPARTA

Não nos precipitemos.
Oh, não nos precipitemos.
Dia virá em que teremos símbolos novos
e caras novas a esbofetear.

Não nos precipitemos à lama que nos espera.
Saibamos ter paciência,
que as horas são justas
e dia haverá para que ressurjamos.

Não nos precipitemos.
Oh, não nos precipitemos,
que a vida é oblíqua
e a surpresa se esconde nas esquinas.

Não nos precipitemos aos ladrões,
nem aos lábios, nem aos sentimentos.

Saibamos aguardar o momento de matar.
Saibamos sorrir exatos,
tirar retratos,
esconder os esconjuros e as pragas
para o instante de derrubar o tabuleiro dos jogos.

Não nos precipitemos às emoções.
Oh, tenhamos calma.
Aguardemos a curvadura do rio
e a instabilidade do timoneiro.

Não nos precipitemos ao amor,
que há os que mentem os olhos.
Nem à solidão,
que o silêncio tem dois motivos.
Nem à guerra,
que ainda somos perecíveis.

Não nos precipitemos.
Oh, não nos precipitemos ao mar
como uma leva de porcos possessos
ou como um bando de crianças em férias.
Tenhamos cuidados com essas
e com suas mães bronzeadas
e paciência para assassiná-las.

(O tempo é profícuo de oportunidades.)

Não nos joguemos aos poços por desencanto.
Abdiquemos, sim, de nossas utopias
em benefício do metro e do quilo,
mas também não nos enforquemos de descarinho,
que o amor tem várias ocasiões
e, debaixo de cada ser, um abismo de desconcertos.

Temos todo o tempo do mundo.
Tiremos, pois, férias de nós.

Escondamo-nos de nossos próprios pensamentos
(oh, como é pesado este ar!)
e aguardemos o instante de extraditá-los.
(Somos largos,
pois bem, somos largos.)

Não nos lamentemos.
Aguardemos a vingança.

Saboreemos o doce fel da morte certa do inimigo.
Reconheçamos seu valor,
mas não nos estreitemos em seus braços,
a não ser para esfaqueá-lo.
Aplaudamos suas vitórias (temporárias),
mas não façamos odes às batalhas perdidas,
a não ser para reavivar a dor de sabê-las perdidas.
Baixemos os olhos quando ele (o inimigo) nos falar,
mas não deitemos olores agradáveis sobre o seu corpo,
a não ser para prepará-lo à sepultura.

Não tenhamos pressa.
Afiemos nossas presas
para lhe despedaçarmos a jugular.

Não.
Não.
Nunca nos suicidemos,
Tampouco nos alistemos nas fileiras contrárias.
Temos de manter nossa honra e nossa bile bem acesas,
mas não nos precipitemos
(oh, não nos precipitemos):
o dia é tão vário de becos e esquivas
que hora virá
em que não mais lamentaremos nossos mortos,
pela lembrança de os havermos vingado.

Mas, oh, não tenhamos pressa.
Acautelemo-nos de nós,
que pensamos rápido e agimos em fotografia.
Busquemos o espaço mais exíguo
para nos escondermos de nós.
Cuidemos de esconder nossos olhos,
pois que é preciso ter certeza de sentir
para agir com precisão.

Conscientizemo-nos de nossas decisões
e abandonemos as fontes de nossos arrependimentos.
Contritemo-nos no que planejamos
e sejamos saudáveis e suaves no matar.

Espreitemos. Por enquanto, espreitemos, apenas.
Teremos nossa parte no grande bolo do universo.
O que nos cabe nos cabe.
O que não nos cabe é inócuo e nocivo
e a hora é farta para uns e outros.

Não nos precipitemos.
Oh, não nos precipitemos nem à gula nem ao jejum.
Teçamos nossas confidências às paredes
ou aos bichos de estimação,
mas, antes, certifiquemo-nos
de que não nos possam trair.

Não nos esqueçamos de nossos óculos
sobre o móvel de cabeceira,
nem larguemos nossas memórias ao acaso dos cupins,
nem cedamos nossos corpos a experimentos.
(Não nos cabe ser cobaias.
São para isso os fracos.)

Levemos conosco nossa sede,
mesmo que nos oceanos.
Entreguemos uns aos outros,
que sofremos do mesmo mal coletivo,
nossas feridas,
mas nossas doenças particulares, que sejam só nossas,
mesmo que não tenhamos como pensá-las.
(Aos que — ainda — sofrem de mal-du-siècle
resta tomar alguma coisa
— uma aspirina ou poesia, tanto faz.)

Arrastemos nosso câncer,
nossa gangrena,
nosso lirismo,
onde tenhamos lugar,
para que não nos corram atrás
como a devolver um objeto perdido.
Evitemos os bailes de colegiais
e as festas de formatura.
Detenhamo-nos apenas em criar
com o que nos levantarmos.
O supérfluo e o cáustico abandonemos,
para que tenhamos a fome certa na hora exata.
(É preciso pesar todas as grandes coisas pormenores.)

Não nos precipitemos.
Sobretudo, é necessário cuidar em que nosso rancor
não nos incrimine antes do tempo.

E, chegando a vez de afirmar, que neguemos.
Mil vezes é preciso negar.
Negar o pão.
Negar a mão.
Negar o não.

É preciso redundarmo-nos em fatos
da nossa pré-história,
desconversar,
desvencilhar,
tossir,
gaguejar,
intimistar,
mutismar,
e, por fim, desprezar a diplomacia e os subornos,
que está chegada a hora de renascer
e temos de estar vivos (para matar).

Mas não nos precipitemos:
é necessário que o golpe seja franco e definido,
porque só devemos portar uma arma.

Não nos precipitemos,
porque não podemos falhar.

Tenhamos na pele nosso cheiro e nossas cores normais
e no corpo nosso sangue habitual,
por mais que queime em nossos pulmões.

Somos aríetes dos novos símbolos,
bandeiras da nova era.
Tenhamos calma:
eis que o inimigo também se acautelou.

Recapitulemos nosso equilíbrio.
Sejamos frios,
inalteráveis,
ermos,
para que não nos esqueçamos
de resumir sua presença
à nossa decadência.

Não nos precipitemos.
Oh, não nos precipitemos.
Não nos precipitemos.
Não nos precipitemos.
Deus está conosco,
conosco,
conosco,
:
matemos!

IDADE

Esta idade sem razões aparentes,
sem asco e sem acidez,
sem euforias nem tristezas,
com ausência de festa;
esta idade intermediária, de confronto mudo
entre o que sou e o que não pude ser;
este silêncio, que nenhum canhão ou mosca interrompe,
nem mesmo é o silêncio que antecede as catástrofes,
mas apenas o limbo
onde me defronto comigo
— meu inimigo.

Apenas o misterioso pântano que percorro
à caça de mim,
a jângal que me esconde
e resiste às minhas investidas.

Ah,
esta idade absurda, em que não há
poesia — boa ou má —
que brote de mim;
esta idade sem tréguas nem retorno,
com fundo de lodo e corpo de teia,
viscosa e invertebrada,
dela sou prisioneiro.

A mim, que a fiz fruto do meu corpo calcinado;
a mim, que a erigi com barro e suor;
é a mim que ela apresa
com seu manto protetor.

ÚTERO

E quem passar por aqui
não é de ouro nem nuvem:
é homem — é de vidro.

E quem passar por aqui
é vidro — e por ser de corpo
está sujeito ao abismo.

E quem passar por aqui
não ouse, nem grite: a vida,
então, é toda de vidro.

[In Lição de labirinto. Fundação Ceciliano Abel de Almeida/Ufes, 1989.]

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Miguel Arcanjo Marvilla de Oliveira nasceu em Marataízes, ES, em 29 de setembro de 1959 e faleceu em Vitória, em 2009. Mudou-se com os pais para Vitória em 1964. Poeta, concluiu em 1996 o curso de graduação em Letras-Inglês na Ufes e cursou o mestrado em História na mesma universidade. Publicou diversos livros. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui.)

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