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Prefácio de Carlos Heitor Cony

A saga do grupo de dissidentes da Marinha, Exército e Aeronáutica que, entre 1966 e 67, tentou estabelecer um foco de guerrilha na crista do maciço do Caparaó (onde está o Pico da Bandeira, considerado até então ponto culminante do Brasil) daria filme e romance de ação. A aventura tem todos os elementos para entusiasmar espectadores e leitores: cenário magnífico e hostil, idealismo ardente, amor e separações, intriga internacional, divergências internas.

Os guerrilheiros se faziam passar por criadores de cabras e carvoeiros que trocavam seus produtos por feijão, charque e farinha nas pequenas cidades e povoações da divisão do Espírito Santo com Minas Gerais, aninhadas nos contrafortes da serra.

Sua história poderia até inspirar imagens literárias do tipo “os pastores de rebanhos tresmalhados” ou “os carbonários que queimavam a mata, mas não conseguiam incendiar o Brasil”. Na visão do grupo, um incêndio purificador que iluminaria o país mergulhado em trevas desde o golpe militar de 1964.

José Caldas da Costa, autor da pesquisa que, 36 anos depois, revela o pouco conhecido episódio do primeiro movimento armado contra o arbítrio, preferiu dar ao relato forma de reportagem investigativa. Fez bem. Entrevistando os remanescentes do grupo, num périplo exaustivo para localizá-los onde agora vivem, em cidades do Nordeste, Sudeste e Sul, produziu este documento denso sobre os fatos que foram escamoteados pelos governos da ditadura, expurgados dos livros escolares e, na época que ocorreram, não tiveram maior repercussão na imprensa amordaçada.

José Caldas acrescenta informações paralelas e revela inconfidências que modificam, em alguns aspectos, o perfil de personagens estratificados na dicotomia bons e maus.

Paulo Schilling, por exemplo, tão esquecido até pelas esquerdas, surge na sua verdadeira e grandiosa dimensão política e humana; o general Mourão Filho, que se auto-intitulava uma “vaca fardada”, diz frases que mostra que não era assim tão pouco esclarecido.

Entram em cena, entre outros, Brizola conspirando no exílio uruguaio; Che Guevara às vésperas da imolação na selva boliviana e à espera das conexões com a guerrilha brasileira; fala-se de outras conexões internacionais, inclusive do controvertido “ouro de Moscou”, que chegaria via Havana.

Mas, no proscênio, estão sempre os guerrilheiros, na maioria marujos com o espírito rebelde de João Cândido — o “Almirante Negro”, líder da revolta contra os castigos corporais na Marinha. Cada um dos depoentes conta a luta cotidiana para sobreviver — despreparados, mal equipados, famintos e preocupados, a um só tempo, com a Pátria e a família deixada para trás, quase sempre sem recursos e sem segurança.

A derrota previsível pela falta de condições materiais, pela nenhuma receptividade junto à população local o abandono naqueles ermos a quase 3 mil metros de altitude, veio mais cedo através de um agente inesperado: os ratos que infestavam o barracão de mantimentos e transmitiam a peste bubônica.

O que não deixa de ter algum simbolismo. Como também pode-se considerar emblemático o nome dado ao segundo pontos mais alto do território nacional. Medições da Aeronáutica haviam constatado que o Pico da Bandeira tinha menos cem metros que dois pontões na fronteira do Brasil com a Venezuela. Um já era conhecido como Pico da Neblina. O outro a ditadura batizou, orgulhosamente, 31 de março (data oficial para o golpe de 1º de abril). Com isso, o governo militar reconhecida a guerrilha do Caparaó como movimento ideológico e dissidente, quando sempre quis lançar sobre os combatentes a pecha de bandoleiros, apenas ladrões de gado numa região remota. Não se sabe até que ponto, provocativamente, os donos do poder quiseram com o 31 de Março mostrar que sua “revolução” estava acima da “subversão” de subalternos.

Há precedente histórico nesta questão de batismos oficiais. Floriano Peixoto, depois de arrasar Desterro, capital de Santa Catarina, onde os farroupilhas estabeleceram sua base naval, impôs à cidade o próprio nome: Florianópolis.

O povo, no entanto, reagiu à humilhação. Passou a associar o topônimo a flores. Florianópolis, cidade das flores. E, hoje, o marechal deve estar se retorcendo no túmulo quando jovens chamam a capital catarinense, na qual ele queria perpetuar sua glória, carinhosamente de Floripa.

O 31 de Março pode ser, para quem lutou contra aqueles que sufocaram as liberdades durante duas décadas, o Pico da Bandeira da Democracia.

[COSTA, José Caldas da. Cabras e Ratos — Por que lutaram militares da Marinha, Exército e Aeronáutica na Guerrilha do Caparaó, primeira tentativa de reação armada ao regime de 1964. Textos introdutórios a um livro ainda inédito, baseado em depoimentos e entrevistas, com prefácio de Carlos Heitor Cony. Reprodução autorizada pelo autor.]

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