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Prefácio

Auguste-François Biard
Auguste-François Biard


O pintor francês Auguste-François Biard viveu, no século XIX, dois anos de Brasil — de 1858 a 1860. Já em 1862, a Librairie de L. Hachette e Cia. publicava, em Paris, a obra Deux années au Brésil, na qual o pintor reunia as impressões de viagem sobre a terra brasileira. A obra saiu com ilustrações de Riou calcadas em desenhos originais de Biard.

A vinda de François Biard ao Brasil é dada, por Gustavo Barroso, para “pintar retratos do Imperador, da Imperatriz e das Princesas Imperiais[ 1 ]. A afirmativa sugere um patrocínio oficial que a viagem não recebeu. Os retratos imperiais foram, de fato, pintados, mas devido ao conhecimento travado, no Rio de Janeiro, entre Pedro II e o pintor, cuja fama de retratista era notória, tanto quanto se tornou conhecido devido ao gosto de viajar por terras considerados exóticas pelos europeus.

O criterioso pesquisador Levy Rocha, em artigo publicado no jornal A Gazeta, de 4 de outubro de 1985, descarta como infundada “a versão maledicente que atribui a viagem de Auguste-François Biard ao Brasil como exílio causado por desentendimentos domésticos com galante participação do escritor Victor Hugo”, envolvendo a esposa do pintor.

Em 1858, quando Biard viaja para o Brasil, o autor de Os miseráveis, que abraçara a carreira política desde 1850, fora banido de França havia já seis anos. O banimento se deu sob Napoleão III ao restabelecer o regime imperial que duraria de 1852 a 1870. Foi no começo desse exílio, durante o governo napoleônico, que Victor Hugo publicou Le petit Napoléon, cujo título diz bem do conteúdo revanchista da obra.

Nas justificativas dadas para sua viagem refere-se Biard, no capítulo de abertura de Deux années au Brésil, primeiramente, aos aborrecimentos tidos com o dono do apartamento onde há mais de vinte anos mantinha seu ateliê, no prédio n. 8, da praça Vendôme, em Paris, do qual foi despejado; e, em segundo lugar, à sugestão recebida, num jantar em casa de amigo, de um general belga (Biard não cita o nome), residente na Bahia há longos anos, para passar alguns meses no Brasil.

A sugestão vingou no espírito do pintor, apesar de desaconselhado pelos amigos, temerosos dos riscos da longa viagem marítima e dos perigos dos trópicos, representados por doenças e animais ferozes.

A travessia do Atlântico ocorreu sem problemas numa embarcação que tocou de passagem em Pernambuco e Bahia antes do Rio de Janeiro, onde Biard se instalou, inicialmente. É quando pinta os retratos imperiais.

Firmemente disposto a procurar selvagens para modelos, Biard deixaria a capital do Império para vir ao Espírito Santo. Aqui permaneceria vários meses, detendo-se nas florestas de Santa Cruz, à cata de índios enquanto desenvolvia, em paralelo, atividades naturalistas.

A estada na província do Espírito Santo está descrita nos capítulos III e IV da obra Deux années au Brésil, agora editados em separado, sendo a tradução de autoria do professor José Augusto Carvalho, com literalidade atenuada pelos editores, em algumas passagens.

Não é a primeira vez que Biard é traduzido para o português. Em 1945, a Companhia Editora Nacional incluiu a obra na íntegra, como volume 244 da célebre Coleção Brasiliana, em tradução de Mário Sette. Nesta edição não houve, entretanto, reprodução das gravuras do original.

No texto que escreveu, Biard não se mostra um grande cronista de época e de costumes, nem se propôs a tanto. Desprovido de formação naturalista sólida, pintor por excelência, inexiste na sua obra a preocupação descritiva, o compromisso com o testemunho, o rico documentário informativo que sobejam nos relatos de Maximiliano de Wied-Neuwied e de Auguste de Saint-Hilaire, por exemplo.

Neuwied, que percorreu o Espírito Santo em 1816, quando chega a Vitória descreve-a com minúcias e até empatia dizendo tratar-se de “lugar limpo e bonito, com bons edifícios construídos no velho estilo português, com balcões e rótulas de madeira, ruas calçadas, uma câmara municipal razoavelmente grande, e o convento dos jesuítas ocupado pelo governador, que tem, à sua disposição, uma companhia de tropa regular.” Prossegue ainda falando dos conventos e capelas, do comércio marítimo, do ambiente pacato da vila onde a presença de estrangeiros chama a atenção popular, da produção agrícola e das mercadorias exportadas ao longo da costa, das fortificações existentes em Vitória e de sua própria situação física, “edificada um tanto desigualmente, sobre colinas aprazíveis.[ 2 ]

De sua parte, Saint-Hilaire, compatriota de Biard, que esteve no Espírito Santo em 1818, segue o modelo de Maximiliano e traça um retrato vivo da sede da capitania e das atividades praticadas pelos habitantes. Bom observador, nota o zelo na conservação e embelezamento das casas, muitas delas de dois andares com vidraças nas janelas e “lindas varandas trabalhadas na Europa.”[ 3 ] Registra ainda a ausência de cais e de praças e gaba a excelência das águas de que se serve a população nas fontes públicas. Fala das igrejas e conventos, fortes e edifícios públicos, da agricultura e do comércio, da população e de seus costumes.

Já Biard, ao contrário, quando aporta em Vitória, cerca de quarenta anos depois, restringe-se a mencionar os dois compatriotas que encontrou ao desembarcar e a descrever como passou a sua primeira noite, no hotel em que se hospedou, fazendo de cama uma mesa de bilhar. Mesmo quando percorre a cidade e seus arredores, concentra a atenção nos índios, que constituíam seu interesse imediato. Fora disso, refere-se, com economia verbal, a algumas rendeiras de bilro, a um periquito e a papagaios que viu em estado selvagem. E mais não diz sobre Vitória o pintor retratista e paisagista.

Mas a despreocupação com a informação atingiria, em Biard, grau ainda mais imperdoável. Quando passa, por exemplo, a conviver com índios nas selvas de Santa Cruz, consegue localizar ali um compatriota habitando isolado o meio da selva. Dele Biard limita-se a dizer que quase o beijou quando o estranho lhe falou em francês. E apesar de haverem conversado demoradamente, nada transpira dessa conversa, capaz de um esclarecimento sobre a figura desse verdadeiros misantropo perdido nas matas do Espírito Santo. Biard, inexplicavelmente, cala qualquer informe sobre seu compatriota.

Esse desdém para com a informação minuciosa, como ao longo do texto, permite identificar o temperamento extremamente personalista de François Biard. Egocêntrico, rempli de soi-même, a ele importa, como regra geral, aquilo que lhe toca individualmente, afetando seu trabalho ou repercutindo sobre seu temperamento imediatista. Neste caso, as cenas que observa ou os incidentes ocorridos ao seu redor merecem referências embora feitas, geralmente, sob o ângulo do humor.

Porque Biard é, por natureza, um permanente moqueur a quem não escapa o ridículo de inúmeras situações nas quais ele próprio se vê envolvido com personagem principal. Deste modo, vê e descreve com ironia e graça, muitas vezes chegando a descambar para o exagero.

O insigne historiador capixaba, Mário Aristides Freire, por exemplo, não se conteve e lançou, com letra miúda e a lápis, no exemplar que lhe pertencia da versão editada pela Companhia Editora Nacional, na já mencionada tradução de Mário Sette, hoje integrando a Coleção de Livros Especiais da Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, esta observação à margem do trecho em que Biard conta haver deparado com um sapo do tamanho de um gato: “que mentirPREF”

A visão de verve e exagero de Biard — que feriu a sobriedade de Mário Freire — não reponta apenas do se texto. Ela foi incorporada, sob a forma de traço caricato, a várias ilustrações da obra Deux années au Brésil. Veja-se, como prova disso, a deliciosa gravura onde Biard aparece, em plena selva, dentro de improvisado cortinado a combater nuvens de mosquitos que lhe perturbavam o trabalho de pintor. Ou ainda o desenho da desproporcional bandeira, na baía de Vitória, parecendo maior do que o fortim onde estava hasteada e sobre a qual ele escreveu: “Estávamos passando diante do forte e, não sei se por ilusão de ótica, a bandeira que tremulava em cima me pareceu maior que o próprio forte.”

É fácil perceber nestas palavras o mesmo tom jocoso do autor ao iniciar o relato da viagem ao Brasil, conforme se lê na tradução de Mário Sette:

— Meu caro amigo, diga-me por favor, como nasceu essa ideia de ir ao Brasil? Não sabe ser uma terra muito insalubre? A febre amarela, ali, é endêmica e dizem mais que as cobras, das mais venenosas, matam qualquer criatura em poucos minutos.
— Não se meta a ir ao Brasil, alertava-me outro. Quem vai ao Brasil? Não se põem os pés nesse país senão para ser o seu imperador . Você foi por acaso nomeado imperador do Brasil?

Não sem razão o Larousse du Xxe siècle registra no verbete Biard: “(Auguste), peintre français, né à Lyon en 1798, mort près de Fountainebleau en 1882. Son pinceau a illustré non sans agrement les moeurs de tous les pays; auteur du tableau bien connu, Baptême sous la ligne (1834). Citons encore: Enfants perdus dans une forêt (1828); Embarcation attaquée par des ours blancs (1839); Gulliver dans l’île des Géants (1852).”

É, por conseguinte, não sem agrement, ou seja, divertimento, como Larousse define o estilo pictórico de Biard, característica também assinalada no Larousse de 1900: “Biard est une sorte d’illustrateur des moeurs de tous les pays. Sorte de Juif-Errant de la palette, il a rapporté de partout des sujets humoristiques, des scènes plaisantes, et joliment enlevées…” Fica, pois, ratificada a peculiaridade marcante do pintor: o interesse pelos motivos humorísticos, pelas cenas engraçadas que captou nas diferentes terras por onde andou.

O próprio Biard confessa esta inclinação natural para enxergar o lado ridículo do cotidiano, quando se rende, momentaneamente, ao impacto da Mata Atlântica, em Santa Cruz: “Essa tendência a perceber o lado ridículo do que eu tinha visto até então dava lugar a pensamentos graves, a um recolhimento quase religioso.”

Exceto em ocasiões como esta, a obra de Biard revela, como nota dominante, seu senso de humor nas observações e descrições que apresenta, nos detalhes focalizados, no efeito surpresa com que arremata uma observação. Um retalho da narrativa, quando o pintor chega a Santa Cruz, confirma o que estamos dizendo: “Vi muitos pescadores, e também mulheres da cor de pão queimado, vestidas de amarelo, rosa e laranja, e pés descalços; aqui e ali, alguns senhores de terno preto, gravata branca e mãos sujas.”

Através de passagens semelhantes — verdadeiros flashes verbais de um Espírito Santo primitivo — o leitor comum terá, com a presente edição, oportunidade de conhecer e saborear o texto de viagem do famoso retratista francês sobre a província capixaba no século XIX. Mas não é esta a única qualidade do relato de Biard. Humorismo à parte — e eu diria humorismo a dentro — mesmo sem igualar a riqueza informativa de Maximiliano ou de Saint-Hilaire, François Biard contribui para a recomposição do quadro sócio-cultural do Espírito Santo no Segundo Reinado. Assim, ora é a velha índia que assa tatu sobre brasas ou a banda de congo com seus tambores e reco-recos na festa de São Benedito; ora é a construção de uma casa de barro e estuque ou a presença assustadora de surucucus e onças no seio da mata ou são ainda legiões de formigas incansavelmente mencionadas por Biard a ponto de se ter a impressão de que possam, a qualquer momento, brotar, vivas e cortadeiras, das páginas do livro.

É, pois, todo um ambiente ancestral e pobre, tropical e brasiliano, ainda impregnadamente colonial, que o autor sugere, desenha e transmite. Homens — índios, negros, mestiços, — e bichos — aves, répteis, peixes, miríades de insetos, animais selvagens e domésticos, este “vivendo familiarmente com os donos” casa a dentro e casa a fora, esplêndidas florestas já tocadas pelo fio do extrativismo, plantas, flores e frutos, doenças e intempéries, abandono e descaso, rudimentares meios de transporte e caminhos inóspitos, superstições e pavores, ventos e águas turbulentas, alimentos típicos e habitações miseráveis, calores opressivos e noites repentinas, crendices e religiosidade, desconfortos e perigos constantes, submissão e infinda paciência — tudo isto, que forma as raízes de nossa brasilidade, transparece da narrativa de Biard e dela surge quase como transpiração epidérmica.

Ao escrever seu relato, em estilo jocoso e divertido, certamente Biard estava longe de avaliar o valor de que se revestiria no futuro, variando do histórico ao sociológico, do antropológico ao folclórico.

A Cultural-ES sente-se grata aos patrocinadores desta edição que tornaram possível a divulgação de uma obra com inequívoco valor de recuperação de nossa memória histórica resgatada a um passado que parece tão longínquo mas que verdadeiramente dista de nosso tempo pouco mais de cem anos.

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NOTAS

[ 1 ] BARROSO, Gustavo. Segredos e revelações da história do Brasil. Rio: O Cruzeiro, 1958.
[ 2 ] MAXIMILIANO, Príncipe de Wied Neuwied. Viagem ao Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1940.
[ 3 ] SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Espírito Santo e rio Doce. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974.

[BIARD, Auguste-François. Viagem à província do Espírito Santo. (Tradução de José Augusto Carvalho) Vitória: Cultural-ES; Aracruz Celulose; Fundação Jônice Tristão, s/d. 123p. 
Ilustrações de Édouard Riou com base nos croquis de Auguste-François Biard.]

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Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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