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Prima Rita

As águas (escachoantes) corriam rapidamente pelas bromélias e o roxo do caixão de Rita se refletia nas presilhas douradas, construindo uma cascata fantástica onde as pérolas das águas espumantes quebravam-se interminavelmente. Passaram-se horas lentas de chorar miúdo, de lamentos abafados pelas catadupas de flores que enfeitavam não apenas o vestido branco de Rita e sua testa pálida quase sumindo debaixo da guirlanda de amores-perfeitos, mas também os cantos das salas. E sobre as flores multicoloridas adejavam abelhas colhendo o néctar. E caía a cera derretida das inúmeras velas que rodeavam o funéreo leito da prima Rita.

O caminhão dourado, levando o corpo de Rita pela estrada íngreme, drapejava fitas como se prima Rita fosse para uma festa. As crianças, acompanhando-a naquele passeio pela manhã invernal rumo ao campo santo de Santa Isabel, levavam uma secreta alegria no coração. Porque sabiam que ela passeava pela corte dos sonhos, conforme as histórias que inventava e, por isso, todo aquele cortejo era apenas um acompanhamento para sua coroação no baile das ninfas de cristal. Estavam tão certas disso que não ficaram nem um pouco tristes quando voltaram para casa deixando lá a prima Rita.

E na clara noite desse dia, o arvoredo inundado de luar fazia fantasmas no caminho que ia dar no paiol. Tudo estava muito quieto e seus olhos vermelhos de não dormir fitavam a porta aberta do paiol, um retângulo negro em cujo fundo estariam acontecendo coisas extraordinárias. Um vagalume passou pelas folhas do pessegueiro, veio pousar no peitoril da janela e logo se meteu entre as frinchas da madeira de modo que só se via o clarão da sua luz verde pulsando na noite.

O frio da madrugada veio ainda encontrá-lo no mesmo lugar, debruçado na janela e olhando o paiol.

De repente, um vulto em grande velocidade atravessou o terreiro. Seria? Ainda não. Apenas o gato que provavelmente experimentava os músculos depois da longa ronda noturna.

O relógio da sala, que ficava logo debaixo do sótão onde dormia, marcou as horas outra vez. Vésper, agora, já era a Estrela da Manhã e começava a sumir com o risco de luz que subia do leste, lá para os lados do brejal.

O orvalho gelado queimava-lhe os pés e fazia subir uma dor até no meio da canela. Por isso, para esquentar o corpo, começou a correr pelo pasto em direção ao paiol.

Procurou vestígios pelos cantos e chegou a subir na pilha de sacos de milho mas não encontrou nada. Até que, olhando para os arreios pendurados na viga central do paiol, viu um laço de fita branca pendente como uma flor. Conhecia muito bem aquele laço que prendia os louros cabelos de Rita e então começou a pensar na festa de coroação e nas histórias que teriam sido contadas por Rita naquela noite. Para quem? Teve então um violento ataque de ciúme daqueles novos e desconhecidos amigos de Rita e começou a sentir uma grande saudade de sua prima.

[Transcrito de Crônicas de Roberto Mazzini, SPDC/Ufes, 1995.]

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Ivan Anacleto Lorenzoni Borgo é cronista e nasceu em Castelo, ES, em 21 de fevereiro de 1929. Formado em Direito pela Faculdade de Direito do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Economia pelo Conselho Nacional de Economia em convênio com o MEC. Foi professor da Ufes de 1961 a 1989 e diretor regional do Senai/ES de 1969 a 1990. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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