Voltar às postagens

Primeira parte: Do século XVI ao Poema Mariano


a) As primeiras manifestações

Os habitantes do Brasil à época da chegada dos navegantes e colonizadores europeus eram povos indígenas de cultura ágrafa, ou seja, que não conheciam a escrita nem precisavam dela.

Sua literatura – composta de histórias, mitos e lendas – era essencialmente oral. Registrada na memória coletiva, transmitia-se de uma geração a outra pela via da oralidade.

São os portugueses, portanto, que vão dar início à construção de registros escritos neste canto do mundo. Não estavam preocupados em fazer literatura, mas em consignar informações de caráter geográfico, etnológico, botânico, zoológico, que pudessem ser úteis para o projeto de conquista e colonização da terra brasileira.

De qualquer forma, é aí que se encontram os primeiros textos que se produziram sobre o Brasil e, conseqüentemente, sobre o Espírito Santo. Dentre os navegantes pode-se citar Pero Lopes de Souza, com seu Diário da navegação; dentre os cronistas, Pero de Magalhães Gândavo, Fernão Cardim e Gabriel Soares de Souza; dentre os epistológrafos, os jesuítas empenhados na tarefa de catequese dos aborígenes, notadamente Manoel da Nóbrega e José de Anchieta.

Em seu Diário da navegação Pero Lopes de Souza pouco diz sobre a costa do Espírito Santo, que bordejou em 21 de abril de 1531. A terra espraiada ante seus olhos nesse dia nem nome tinha, já que a fundação da capitania só se daria com a chegada do donatário Vasco Fernandes Coutinho em 1535. As anotações relativas a essa passagem de Pero Lopes de Souza ao largo do Espírito Santo são de caráter puramente marítimo:

Quinta-feira 21 d’abril ao meo dia tomei o sol em 19 graos menos 1 terço [Aproximadamente ao largo de Conceição da Barra ou São Mateus.]: fazia-me de terra 20 leguas. O vento se nos fez leste, e com elle faziamos o caminho do sul com todalas velas. De noite se fez o vento lesnordeste, e com as bolinas largar faziamos o dito caminho, levando resguardo, que cada relogio sondavamos; porque todolos pilotos se faziam ir por riba dos baxos d’Abrolho, que lançam ao mar 30 leguas, e o começo delles está em altura de 19 graus [Na verdade, 18 graus.] E assi fomos toda esta noite com mui bom tempo, sem podermos tomar fundo com 60 braças.[ 4 ]

Ou seja, nada chamou a atenção de Pero Lopes de Souza na costa do Espírito Santo. Na sexta-feira, dia 22, o navegador já está na latitude de 21 graus e três quartos, portanto, na altura do cabo de São Tomé:

Sesta-feira pela menhãa se nos fez o vento nordeste, e com todalas velas faziamos o caminho ao sul. Ao meo dia tomei o sol em 21 graos e 3 quartos; e como foi noite se nos fez o vento noroeste.[ 5 ]

No sábado desaba sobre os navios da expedição uma grossa tempestade; citemos aqui o registro desse dia nem que seja pela referência ao vento sul, que se tornaria um verdadeiro ícone climático da cultura capixaba:

Sábado no quarto d’alva se fez o vento sudoeste; e veo tam supito e furioso, que quasi nam deu lugar a amainar as velas; e ventou com tanta força (o qual ainda nesta viagem o nam tinhamos assim visto ventar) que as naos sem velas metiam no bordo por debaxo do mar: era tamanha a escuridam e relampagos, que era meo dia e parecia de noite: á tarde se fez o vento sul. Andava o mar tam grosso e tam feo que nos entrava por todalas partes. No quarto da prima ao sair da lua abonançou mais o vento; ficou o mar tam grande que nos nam podiamos ter na nao. Da banda de bombordo me arrebentaram os aparelhos, com o jogar da nao.[ 6 ]

Pero de Magalhães Gândavo, ou Gandavo, é autor do Tratado da terra do Brasil, escrito, segundo Capistrano de Abreu, antes de 1573, e da História da província de Santa Cruz, a que vulgarmente chamamos Brasil, impressa em 1576. Eis o capítulo 7 do Tratado, dedicado à “Capitania do Spirito Santo”:

A Capitania do Spirito Santo está cincoenta legoas de Porto Seguro em vinte graos, da qual é Capitão e governador Vasco Fernandes Coutinho. Tem hum engenho somente, tira-se delle o melhor assucre que ha em todo o Brasil. Pode ter até cento e oitenta vizinhos. Ha dentro da povoação hum mosteiro de padres da Companhia de Jesus. Tem hum rio mui grande onde os navios entrão, no qual se achão mais peixes bois que noutro nenhum rio desta Costa. No mar junto desta Capitania matão grande copia de peixes grandes e de toda maneira, e também no mesmo rio ha muita abundancia delles. Nesta Capitania ha muitas terras e mui largas onde os moradores vivem mui abastados assi de mantimentos da terra, como de fazendas. E quando se tomou a fortaleza do Rio de Janeiro desta mesma Capitania do Spirito Santo sustentarão toda a gente e proverão sempre de mantimentos necessarios enquanto estiverão na terra os que defendião.[ 7 ]

Na História da província de Santa Cruz Gândavo repete mais ou menos essas informações, de modo ainda mais sucinto:

A sexta Capitania he a do Spirito Santo, a qual conquistou Vasco Fernandes Coitinho. Sua povoaçam está situada em huma Ilha pequena, que fica distante das povoações de Porto Seguro sessenta legoas em altura de vinte graos. Esta Ilha jàz dentro de hum rio mui grande, de cuja barra dista huma legoa pelo sertam dentro: no qual se mata infinito peixe e pelo conseguinte na terra infinita caça, de que os moradores continuamente sam mui abastados. E assi he esta a mais fertil Capitania, e melhor provida de todos os mantimentos da terra que outra alguma que haja na costa.[ 8 ]

No mesmo trabalho, pode-se dizer que Gândavo já ensaia alguma literatura ao referir alguns casos notáveis ocorridos na capitania:

Outro caso de nam menos admiraçam aconteceu entre Porto-Seguro, e o Espirito Santo, naquelas guerras onde mataram Fernam de Sá, filho de Men de Sá, que entam era Governador geral destas partes [na altura do rio Cricaré, ou São Mateus]. E foi que tendo os Portuguezes rendida huma aldêa com favor dalguns Indios nossos amigos, que tinham de sua parte, chegaram a huma casa pera fazerem presa aos immigos, como já tinham feito em cada huma das outras. Mas elles deliberados a morrer, nam consentiram que nenhum entrasse dentro: e os de fora vendo sua determinaçam, e que por nem huma via se queriam entregar, disseram-lhes que se logo á hora o nam faziam, lhes haviam de pôr fogo á casa sem nenhuma remissam. E vendo os nossos que com elles nam aproveitava este desengano, antes se punham de dentro em determinaçam de matar quantos podessem, lhes puzeram fogo: e estando a casa assi ardendo o principal delles vendo que já nam tinham nenhum remedio de salvaçam nem de vingança e que todos começavam de arder, remeteu de dentro com grande furia a outro principal dos contrarios, que passava por defronte da porte da banda de fora e de tal maneira o abarcou que sem se poder livrar de suas mãos, o meteu consigo em casa, e no mesmo instante se lançou com elle na fogueira, onde arderam ambos com os mais que lá estavam, sem escapar nenhum.
Neste mesmo tempo e logar, deu hum Portuguez huma tam grande cutilada a hum Indio, que quasi o cortou pelo meio: o qual caindo no chão já como morto antes que acabasse de espirar lançou a mão a huma palha que achou diante de si, e a tirou com ella ao que o matara, como que dixera: recebe-me a vontade, que te nam posso mais fazer que isto que te faço em signal de vingança, donde verdadeiramente se pode inferir que outra nenhuma cousa os atormente mais na hora da sua morte que a magoa que levam de se nam poderem vingar de seus immigos.[ 9 ]

O padre Fernão Cardim (c. 1549-1625) também deixou alguns textos informativos sobre o Brasil quinhentista: Do clima e terra do Brasil e de algumas cousas notáveis que se acham assim na terra como no mar, Do princípio e origem dos índios do Brasil e de seus costumes, adoração e cerimônias e Narrativa epistolar de uma viagem e missão jesuítica pela Bahia, Ilhéus, Porto Seguro, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Vicente (São Paulo), etc., desde o ano de 1583 ao de 1590. Desta última eis o trecho referente à passagem de Cardim e seus companheiros pela capitania do Espírito Santo:

Aos 14 de Novembro [de 1584] partimos [da Bahia] para as partes do Sul oito padres e quatro irmãos. E aquella tarde e dia seguinte navegamos sessenta leguas com bom tempo, e logo nos deu tal vento pela prôa, que as tomámos quasi todas as desandar. E tornando Nosso Senhor continuar com sua misericordia, nos favoreceu de maneira que aos 21 tomámos a capitania do Espirito Santo, que dista 120 leguas da Bahia. Fomos recebidos dos padres com muita caridade, e do Sr. Administrador, que estava na nossa cêrca esperando o padre visitador, com grande alvoroço e alegria; e logo mandou dous perús, e os da terra mandaram vitellas, porcos, vaccas e outras muitas cousas, conforme possibilidade e caridade de cada um. Logo aos 25 se celebrou em casa a festa de Santa Catharina; disse missa nova um dos padres que vinha de Pernambuco, filho do governador do Paraguay; o qual sendo unico e herdeiro daquella governança, fugiu ao pai, e entrou na Companhia. O Sr. Administrador foi seu padrinho, e fez officiar a missa pelos de sua capella, e os indios tambem ajudaram com suas frautas. Toda a manhã houve muitas confissões, communhões e prégação.
Em quanto aqui estivemos foram os nossos mui ajudados com a visita e exhortações do padre visitador; fizeram com elle suas confissões geraes. O padre lhes fez praticas, e com ellas e mais avisos espirituaes ficaram em extremo consolados.
Têm os padres nesta capitania tres leguas da villa, duas aldêas de indios a seu cargo, em que residem os nossos, que terão tres mil almas christãs, afora outras aldêas que estão ao longo da costa, as quaes visitam algumas vezes, que terão algumas duas mil pessoas entre pagãos e christãos. Vespera da Conceição da Senhora, por ser orago da aldêa mais principal, foi o padre visitador fazer-lhe a festa. Os indios tambem lhes fizeram a sua: porque duas leguas da aldêa em um rio mui largo e formoso (por ser o caminho por agua) vieram alguns indios murubixába, sc. principaes, com muitos outros em vinte canoas mui bem esquipadas, e algumas pintadas, enramadas e embandeiradas, com seus tambores, pifanos e frautas, providos de mui formosos arcos e frechas mui galantes; e faziam a modo de guerra naval muitas ciladas em o rio, arrebentando poucos e poucos com grande grita, e prepassando pela canoa do padre lhe davam o Ereiupe [saudação], fingindo que o cercavam e o captivavam. Neste tempo um menino, prepassando em uma canoa pelo padre visitador, lhe disse em sua lingua: Pay, marápe guarinîme nande popeçoari? sc. em tempo de guerra e cerco como estás desarmado e metteu-lhe um arco e frechas na mão. O padre assim armado, e elle dando seus alaridos e urros, tocando seus tambores, frautas e pifanos, levaram o padre até à aldêa, com algumas danças que tinham prestes. O dia da Virgem disse o Sr. Administrador missa cantada, com sua capella, e o padre visitador pela manhã cedo antes da missa baptisou setenta e tres adultos, em o qual tempo houve bôa rnusica de vozes e frautas, e na missa casou trinta e seis em lei de graça, e deu a communhão a trinta e sete.
Por haver jubileu concorreu toda a terra, e toda a manhã confessamos homens e mulheres portuguezes. Houve muitas communhões, e tudo se fez com consolação dos moradores indios e nossa. Acabada a missa houve procissão solemne pela aldêa, com danças dos indios a seu modo e à portugueza; e alguns mancebos honrados tambem festejaram o dia dançando na procissão, e representaram um breve dialogo e devoto sobre cada palavra da Ave Maria, e esta obra dizem compoz o padre Alvaro Lobo e até ao Brasil chegaram suas obras e caridades.
Era para vêr os novos christãos, e christãs sairem de suas ócas como conumis [o mesmo que curumins, meninos], acompanhados de seus parentes e amigos, com sua bandeira diante e tamboril, e depois do baptismo e casamentos tornarem assim acompanhados para suas casas; e as indias quando se vestem vão tão modestas, serenas, direitas e pasmadas, que parecem estatuas encostadas a seus pagens e a cada passo lhes caem os pantufos, porque não têm de costume.
Ao dia seguinte fomos à aldêa de S. João, dahi meia legua por agua por um rio acima mui fresco e gracioso, de tantos bosques e arvoredos que se não via a terra, e escassamente o Céo. Os meninos da aldêa tinham feito algumas ciladas no rio, as quaes faziam a nado, arrebentando de certos passos com grande grita e urros, e faziam outros jogos e festas n’agua a seu modo mui graciosos, umas vezes tendo a canoa, outras mergulhando por baixo, e saindo em terra todos com as mãos levantadas diziam: Louvado seja Jesus Christo! – e vinham tomar a benção do padre, os principais davam seu Ereiupe, prégrando da vinda do padre com grande fervor. Chegámos à igreja acompanhados dos indios, e os meninos e mulheres com suas palmas nas mãos, e outros ramalhetes de flores, que tudo representava ao vivo o recebimento do dia de Ramos. Porém neste tempo ainda que os indios fazem a festa, tudo é pasmar maxime as mulheres do Payguaçú. Acabado o recebimento houve outra festa das laranjadas, e não lhes faltam laranjas, nem outras fructas semelhantes com que as façam. Logo começaram com suas dadivas, e tão liberaes que lhes parece que não fazem nada senão dão logo quanto têm. E é grande injuria para elles não se lhes aceitar, e quando o dão não dizem nada, mas pondo perús, gallinhas, leitões, papagaios, tuins reaes, etc., aos pés do padre se tornavam logo.
Ao dia seguinte baptisou o padre visitador trinta e tres adultos, e casou na missa outros tantos em lei de graça, e tudo se fez com as mesmas festas. Estavam estes indios em ruim sitio, mal acommodados, e a igreja ia caindo: fez o padre que se mudassem à outra parte, o que fizeram com grande consolação sua.
Ha nesta terra mais gentio para converter que em nenhuma outra capitania; deu o padre visitador ordem, com que fossem dous padres dahi vinte e oito leguas à petição dos indios, que queriam ser christãos: espera-se grande fructo desta missão, e descerão logo quatro ou cinco mil almas, e ficará porta aberta para descer grande multidão de gentios; para o qual effeito o governador desta terra Vasco Fernandes Coutinho (filho daquelle Vasco Fernandes Coutinho que fez as maravilhas em Malaca detendo o elefante que trazia a espada na tromba) deu grande provisões sob graves penas que ninguém os fosse saltear ao caminho; deu-lhes tres leguas de terra que os indios pediam, e perdão d’algumas mortes de brancos e alevantamentos que tinham antigamente feito, e quando foi ao assignar da provisão não na quiz ler, nem viu o que dizia, antes vindo-a sellar a nossa casa, disse que tudo o que o padre visitador puzesse havia por bem, e que pedisse tudo quanto quizesse em favor dos indios, que elle o approvaria logo.
Os portuguezes têm muita escravaria destes indios christãos. Têm elles uma confraria dos Reis em nossa igreja, e por ser antes do Natal quizeram dar vista ao padre visitador de suas festas. Vieram um domingo com seus alardos à portugueza, e a seu modo, com muitas danças, folias, bem vestidos, e o rei e a rainha ricamente ataviados, com outros principais e confrades da dita confraria: fizeram no terreiro da nossa igreja seus caracóes, abrindo e fechando com graça por serem mui ligeiros, e os vestidos não carregavam muito a alguns, porque os não tinham. O padre lhes mandou fazer uma pregação na lingua, de como vinha a consola-los e trazer-lhes padre para os doutrinar, e do grande amor com que Sua Magestade lhos encommendava. Ficaram consolados e animados, e muito mais com os relicarios que o padre deitou ao pescoço do rei, da rainha, e outros principaes. Os portuguezes recebem o padre nesta terra com tantas honras e mostras d’amor, que não ha mais que pedir. O Sr. Governador e mais principaes da terra o visitaram muitas vezes, e porque o padre lhe trazia carta d’EI-Rei, e aos mais da camara e governo da villa, fizeram quanto o padre lhes pediu para bem da christandade; e não contentes com as dadivas passadas, levando o padre a suas fazendas lhe deram muitos banquetes de muitas esquisitas e várias iguarias. E em um delles, depois de sermos seis da Companhia bem servidos, tirando as toalhas de cima, começou o segundo, e este acabado o terceiro, tudo com tanta ordem, limpeza, concerto e gasto, que nos espantava, e emquanto comemos não faziam senão mandar canôas esquipadas com várias iguarias aos padres, que ficavam em casa, e por o caminho ser por agua e breve tudo chegava a tempo. Este é o respeito que por cá se tem ao padre e aos mais da Companhia. Nosso Senhor lho pague.
Na barra deste porto está uma ermida de N. Senhora, chamada da Pena, e certo que representa a Senhora da Pena de Cintra, por estar fundada sobre uma altíssima rocha de grande vista para o mar e para a terra. A capella é de abobada pequena, mas de obra graciosa e bem acabada. Aqui fomos em romaria dia de S. André, e todos dissemos missa com muita consolação, e V. Ra. foi bem encommendada à Senhora com toda essa Província, o que tambem faziamos em as mais romarias e continuamente em nossos sacrifícios, e eu sou o que ganho pela muita consolação que tenho com tal lembrança; e pois a devo a V. Ra. e aos mais padres e irmãos dessa Provincia por tantas vias. Este dia nos agasalhou o Sr. governador com muita caridade.
Esta capitania do Espírito Santo é rica de gado e algodões. Tem seis engenhos de assucar e muitas madeiras de cedros e páus de balsamo, que são arvores altissimas: picam-se primeiro e deitam um oleo suavissimo de que fazem rosarios, e é unico remedio para feridas. A villa é de Nossa Senhora da Victoria: terá mais de 150 vizinhos, com seu vigario. Está mal situada em uma ilha cercada de grandes montes e serras, e se não fôra um rio muito formoso que lhe corre pelo pé, ainda fôra mais manencolisada do que é, porque pouco mais vista terá que a do rio.
Os padres têm uma casa bem acommodada com sete cubiculos, e uma igreja nova e capaz. A cerca é cheia de muitas larangeiras, limeiras doces, cidreiras, acajús e outras fructas da terra, com todo genero de hortaliça de Portugal. Vivem os nossos d’esmolas, e são muito bem providos, e o collegio do Rio os ajuda com as cousas de Portugal, como tambem faz ás duas casas de Piratininga e S. Vicente, por serem a elle annexas e entrarem no numero das cincoenta para que tem dote.
Do Espirito Santo partimos para o Rio de Janeiro, que dista alli oitenta leguas. Dois ou tres dias tivemos bom tempo, e logo, nos deu um temporal tão forte, que foi necessario ficarmos arvore secca quasi dois dias com muito perigo, por estarmos sobre uns baixos dos Guaitacazes mui perigosos, e não muito longe da costa. Alli estivemos a Deus misericordia, e cada um se encommendava a Nossa Senhora quanto podia por vermos perto a morte. Deste perigo nos livrou Deus por sua bondade, e aos 20 [dezembro de 1584], vespera de S. Thomé, arribamos ao Rio.[ 10 ]

Gabriel Soares de Souza (morto em 1592) é, cronologicamente, o terceiro cronista a escrever sobre o Brasil quinhentista. No dizer de Francisco Adolfo de Varnhagen, que lhe editou o Tratado descritivo do Brasil em 1587, a obra de Gabriel Soares é “talvez a mais admirável de quantas em português produziu o século quinhentista”. O Tratado se divide em duas partes: “Roteiro geral da costa brasílica” e “Memorial e declaração das grandezas da Bahia”. Os capítulos XXXIX a XLIII do “Roteiro geral” tratam especificamente da capitania do Espírito Santo, e vão transcritos abaixo, junto com o fecho do capítulo XXXVIII, que trata de território hoje pertencente ao Estado.

[Capítulo XXXVIII: Em que se declara a terra que há do rio das Caravelas até Cricaré]
[…]
Deste rio de Mocuripe ao de Cricaré são dez léguas, e corre-se a costa do rio das Caravelas até Cricaré norte sul, e toma da quarta nordeste sudoeste, o qual rio Mocuripe está em dezoito graus e três quartos; pelo qual entram navios de honesto porto, e é muito capaz para se poder povoar, por a terra ser muito boa e de muita caça, e o rio de muito pescado e marisco, onde se podem fazer engenhos de açúcar, por se meterem nele muitas ribeiras de água, boas para eles. Este rio vem de muito longe, e navega-se quatro ou cinco léguas por ele acima; o qual tem na barra, da banda do sul quatro abertas, uma légua e mais uma da outra, as quais estão na terra firme por cima da costa, que é baixa e sem arvoredo, e de campinas. E quem vem do mar em fora parecem-lhe estas abertas bocas de rios, por onde a terra é boa de conhecer. Até aqui senhorearam a costa os Tupiniquins, de quem é bem que digamos neste capítulo que se segue antes que cheguemos à terra dos Guaitacazes.

Capítulo XXXIX: Em que se declara quem são os Tupiniquins e sua vida e costumes

Já fica dito como o gentio Tupiniquim senhoreou e possuiu a terra da costa do Brasil, ao longo do mar, do rio de Camamu até o rio de Cricaré, o qual tem agora despovoado toda esta comarca fugindo dos Tupinambás seus contrários, que os apertaram por uma banda, e aos Aimorés que os ofendiam por outra: pelo que se afastaram do mar, e fugindo ao mau tratamento que lhes alguns homens brancos faziam por serem pouco tementes a Deus. Pelo que não vivem agora junto do mar mais que os cristãos de que já fizemos menção. Com este gentio tiveram os primeiros povoadores das capitanias dos Ilhéus e Porto Seguro e dos do Espírito Santo, nos primeiros anos, grandes guerras e trabalhos, de quem receberam muitos danos; mas pelo tempo adiante vieram a fazer pazes, que se cumpriram e guardaram bem de parte a parte, e de então para agora foram os Tupiniquins muito fiéis e verdadeiros aos portugueses. Este gentio e os Tupinaês descendem todos de um tronco, e não se têm por contrários verdadeiros, ainda que muitas vezes tivessem diferenças e guerras, os quais Tupinaês lhe ficavam nas cabeceiras pela banda do sertão, com quem a maior parte dos Tupiniquins agora estão misturados. Este gentio é da mesma cor baça e estatura que o outro gentio de que falamos, o qual tem a linguagem, vida e costumes e gentilidades dos Tupinambás, ainda que são seus contrários, em cujo título se declarará mui particularmente tudo o que se pode alcançar. E ainda que são contrários os Tupiniquins dos Tupinambás, não há entre eles na língua e costumes mais diferença, da que têm os moradores de Lisboa dos da Beira; mas este gentio é mais doméstico, e verdadeiro que todo outro da costa deste Estado. É gente de grande trabalho e serviço, e sempre nas guerras ajudaram aos portugueses, contra os Aimorés, Tapuias e Tamoios, como ainda hoje fazem esses poucos que se deixaram ficar junto ao mar e das nossas povoações, com quem vizinham muito bem, os quais são grandes pescadores de linha, caçadores e marinheiros, são valentes homens, caçam, pescam, cantam, bailam, como os Tupinambás, e nas cousas de guerra são mui industriosos, e homens para muito, de quem se faz muita conta a seu modo entre o gentio.

Capítulo XL: Em que se declara a costa de Cricaré até o Rio Doce, e do que se descobriu por ele acima, e pelo Aceci

Do rio de Cricaré até o Rio Doce são dezessete léguas, as quais se correm pela costa norte sul; o qual Rio Doce está em altura de dezenove graus.
A terra deste rio ao longo do mar é baixa e afastada da costa; por ela dentro tem arrumada, uma serra, que parece a quem vem do mar em fora, que é a mesma costa. A boca deste rio é esparcelada bem uma légua e meia ao mar mas tem seu canal, por onde entram navios de quarenta tonéis, o qual rio se navega pela terra dentro algumas léguas, cuja terra ao longo do rio por ali acima é muito boa, que dá todos os mantimentos acostumados muito bem, onde se darão muito bons canaviais de açúcar, se os plantarem, e se podem fazer alguns engenhos, por ter ribeiras muito acomodadas a eles. Este Rio Doce vem de muito longe e corre até o mar quase leste oeste, pelo qual Sebastião Fernandes Tourinho, de quem falamos, fez uma entrada navegando por ele acima, até onde o ajudou a maré, com certos companheiros, e entrando por um braço acima, que se chama Mandi, onde desembarcou, caminhou por terra obra de vinte léguas com o rosto a les-sudoeste, e foi dar com uma lagoa, a que o gentio chama boca do mar, por ser muito grande e funda, da qual nasce um rio que se mete neste Rio Doce, e leva muita água. Esta lagoa cresce às vezes tanto, que faz grande enchente neste Rio Doce. Desta lagoa corre este rio a leste, e dela a quarenta léguas tem uma cachoeira; e andando esta gente ao longo deste rio, que sai da lagoa mais de trinta léguas, se detiveram ali alguns dias; tornando a caminhar andaram quarenta dias com o rosto a loeste; e no cabo deles chegaram, aonde se mete este rio no Doce, e andaram neste quarenta dias setenta léguas pouco mais ou menos. E como esta gente chegou a este Rio Doce, e o acharam tão possante, fizeram nele canoas de casca, em que se embarcaram, e foram por ali acima, até onde se mete neste rio outro a que chamam Aceci, pelo qual entraram e foram quatro léguas, e no cabo delas desembarcaram e foram por terra com o rosto ao noroeste onze dias, e atravessaram o Aceci, e andaram cinqüenta léguas, ao longo dele da banda ao sul trinta léguas. Aqui achou esta gente umas pedreiras, umas pedras verdoengas, e tomam do azul, que tem que parece turquescoas, e afirmou o gentio aqui vizinho, que no cimo deste monte se tiravam pedras muito azuis, e que havia outras que segundo sua informação têm ouro muito descoberto. E quando esta gente passou o Aceci a derradeira vez, dali cinco ou seis léguas da banda do norte achou Sebastião Fernandes uma pedreira de esmeraldas e outra de safiras, as quais estão ao pé de uma serra cheia de arvoredo do tamanho de uma légua, e quando esta gente ia do mar por este Rio Doce acima sessenta ou setenta léguas da barra acharam umas serras ao longo do Rio de Arvoredo, e quase todas de pedra, em que também acharam pedras verdes; e indo mais acima quatro ou cinco léguas da banda do sul está outra serra, em que afirma o gentio haver pedras verdes e vermelhas tão compridas como dedos, e outras azuis todas mui resplandescentes.
Desta serra para a banda de leste pouco mais de uma légua está uma serra, que é quase toda de cristal muito fino, a qual cria em si muitas esmeraldas, e outras pedras azuis. Com estas informações que Sebastião Fernandes deu a Luís de Brito, sendo governador, mandou Antônio Dias Adorno, como já fica dito atrás, o qual achou ao pé desta serra da banda do norte as esmeraldas, e da de leste as safiras. Umas e outras nascem no cristal, donde trouxeram muitas e algumas muito grandes, mas todas baixas; mas presume-se, que debaixo da terra as deve de haver finas, porque estas estavam à flor da terra. Em muitas partes achou esta gente pedras desacostumadas de grande peso, que afirmam terem outro e prata, do que não trouxeram amostras, por não poderem trazer mais que as primeiras e com trabalho: a qual gente se tornou para o mar pelo Rio Grande abaixo, como já fica dito. E Antônio Dias Adorno, quando foi a estas pedras, as recolheu por terra atravessando pelos Tupinaês e por entre os Tupinambás, e com uns e outros teve grandes encontros, e com muito trabalho e risco de sua pessoa chegou à Bahia e fazenda de Gabriel Soares de Sousa.

Capítulo XLI: Em que se declara a costa do Rio Doce até o do Espírito Santo

Do Rio Doce ao dos Reis Magos são oito léguas; e faz a terra de um rio ao outro uma enseada grande; o qual rio está em dezenove graus e meio, e corre-se a costa de um a outro nordeste sudoeste. Na boca deste rio dos Reis Magos estão três ilhas redondas, por onde é bom de conhecer; em o qual entram navios da costa, cuja terra é muito fértil, e boa para se poder povoar; onde se podem fazer alguns engenhos de açúcar, por ter ribeiras que nele se metem, mui acomodadas para isso. Navega-se neste rio da barra para dentro quatro ou cinco léguas, em o qual há grandes pescarias e muito marisco; e no tempo que estava povoado de gentio, havia nele muitos mantimentos que aqui iam resgatar os moradores do Espírito Santo, o que causava grande fertilidade.
Da terra dos Reis Magos ao rio das Barreiras são oito léguas, do qual se faz pouca conta; do rio das Barreiras à ponta do Tubarão são quatro léguas, sobre o qual está a serra do Mestre Álvaro; da ponta do Tubarão à ponta do morro de João Moreno são duas léguas, onde está a vila de Nossa Senhora da Vitória; entre uma ponta e outra está o rio do Espírito Santo, o qual tem defronte da barra meia légua ao mar uma lagoa, de que se hão de guardar. Em direito desta ponta da banda do norte, duas léguas pela terra dentro, está a serra do Mestre Álvaro, que é grande e redonda, a qual está afastada das outras serras; esta serra aparece, a quem vem do mar em fora, muito longe, que é por onde se conhece a barra; esta barra faz uma enseada grande, a qual tem umas ilhas dentro, e entra-se nordeste sudoeste. A primeira ilha, que está nesta barra, se chama de D. Jorge, e mais para dentro está outra, que se diz de Valentim Nunes. Desta ilha para a Vila Velha estão quatro penedos grandes descobertos; e mais para cima está a ilha de Ana Vaz; mais avante está o ilhéu da Viúva; e no cabo desta baía fica a ilha de Duarte de Lemos, onde está assentada a vila do Espírito Santo, a qual se edificou no tempo da guerra pelos Guaitacazes, que apertaram muito com os povoadores da Vila Velha. Defronte da vila do Espírito Santo, da banda da Vila Velha está um penedo mui alto a pique sobre o rio, ao pé do qual se não acha fundo; é capaz este penedo para se edificar sobre ele uma fortaleza, o que se pode fazer com pouca despesa, da qual se pode defender este rio ao poder do mundo todo. Este rio do Espírito Santo está em altura de vinte graus e um terço.

Capítulo XLII: Em que se declara como El-Rei fez mercê da capitania do Espírito Santo a Vasco Fernandes Coutinho, e como ele a foi povoar em pessoa

Razão tinha Vasco Fernandes Coutinho de se contentar com os grandes e heróicos feitos que tinha com as armas acabado nas partes da Índia, onde nos primeiros tempos de sua conquista se achou, no que gastou o melhor de sua idade; e passando-se para estes reinos em busca do galardão de seus trabalhos, pediu em satisfação deles a S. A. licença para entrar em outros maiores, pedindo que lhe fizesse mercê de uma capitania na costa do Brasil, porque a queria ir povoar, e conquistar o sertão dela, a cujo requerimento El-Rei D. João III de Portugal satisfez, fazendo-lhe mercê de cinqüenta léguas de terra ao longo da costa no dito Estado, com toda a terra para o sertão, que coubesse na sua demarcação, começando onde acabasse Pedro do Campo, capitão de Porto Seguro. Contente este fidalgo com a mercê que pediu, para satisfazer à grandeza de seus pensamentos, ordenou à sua custa uma frota de navios mui provida de moradores e das munições de guerra necessárias, com tudo o que mais convinha a esta empresa, em a qual se embarcaram, entre fidalgos e criados d’el-Rei, sessenta pessoas, entre as quais foi D. Jorge de Menezes, o de Maluco, e D. Simão de Castelo Branco, que por mandado de S. A. iam cumprir suas penitências a estas partes. Embarcado este valoroso capitão, com sua gente na frota que estava prestes, partiu do porto de Lisboa com bom tempo, e fez sua viagem para o Brasil, onde chegou a salvamento à sua capitania; em a qual desembarcou e povoou a vila de Nossa Senhora da Vitória, a que agora chamam a Vila Velha, onde se logo fortificou, a qual em breve tempo se fez uma nobre vila para aquelas partes. De redor desta vila se fizeram logo quatro engenhos de açúcar mui bem providos e acabados, os quais começaram de lavrar açúcar, como tiveram canas para isso, que se na terra deram muito bem. Nestes primeiros tempos teve Vasco Fernandes Coutinho algumas escaramuças com o gentio seu vizinho, com a qual se houve de feição que, entendendo estes índios que não podiam ficar bem do partido, se afastaram da vizinhança do mar por aquela parte, por escusarem brigas que da vizinhança se seguiam. A este gentio chamam Guaitacazes, de quem diremos adiante.
Como Vasco Fernandes viu o gentio quieto, e a sua capitania tanto avante, e em termos de florescer de bem em melhor, ordenou de vir para Portugal a se fazer prestes do necessário (para ir conquistando a terra pelo sertão até descobrir ouro e prata) e a outros negócios que lhe convinham; e concertando suas cousas, como relevava, se partiu, e deixou a D. Jorge de Menezes para em sua ausência a governar; ao qual os Tupiniquins, de uma banda e os Guaitacazes, da outra, fizeram tão crua guerra que lhe queimaram os engenhos e muitas fazendas, o desbarataram e mataram às flechadas; o que também fizeram depois a D. Simão de Castelo Branco, que lhe sucedeu na capitania, e a outra muita gente; e puseram a vila em cerco e em tal aperto que, não podendo os moradores dela resistir ao poder do gentio, a despovoaram de todo e se passaram à ilha de Duarte de Lemos, onde ainda estão; a qual ilha se afasta da terra firme um tiro de berço.
Esta vila se povoou de novo com o título do Espírito Santo, e muitos dos moradores, não se havendo ali por seguros do gentio, se passaram a outras capitanias. E tornando-se Vasco Fernandes para a sua capitania, vendo-a tão desbaratada, trabalhou todo o possível por tomar satisfação deste gentio, o que não foi em sua mão, por estar impossibilitado de gente e munições de guerra, e o gentio mui soberbo com as vitórias que tinha alcançado; antes viveu muitos anos afrontado dele naquela ilha, onde a seu requerimento o mandou socorrer Mem de Sá, que naquele tempo governava este Estado; o qual ordenou na Bahia uma armada bem fornecida de gente e armas, que era de navios da costa mareáveis, da qual mandou por capitão a seu filho Fernão de Sá, que com ela foi entrar no rio de Cricaré, onde ajuntou com ele a gente do Espírito Santo, que lhe Vasco Fernandes Coutinho mandou; e, sendo a gente toda junta, desembarcou Fernão de Sá em terra, e deu sobre o gentio de maneira, que o pôs logo em desbarate nos primeiros encontros, o qual gentio se reformou e ajuntou logo, e apertou com Fernão de Sá, de maneira que o fez recolher para o mar; o que fez com tamanha desordem dos seus, que, antes de poder chegar às embarcações, mataram a Fernão de Sá, com muita da sua gente ao embarcar; mas já agora esta capitania está reformada com duas vilas, em uma das quais está um mosteiro dos padres da companhia, e tem seus engenhos de açúcar e outras muitas fazendas. No povoar desta capitania gastou Vasco Fernandes Coutinho muitos mil cruzados que adquiriu na Índia, e todo o patrimônio que tinha em Portugal, que todo para isso vendeu, o qual acabou nela tão pobremente, que chegou a darem-lhe de comer por amor de Deus, e não sei se teve um lençol seu, em que o amortalhassem. E seu filho do mesmo nome vive hoje na mesma capitania tão necessitado que não tem mais de seu que o título de capitão e governador dela.

Capítulo XLIII: Em que se vai declarando a costa do Espírito Santo, até o cabo de S. Tomé

Do rio do Espírito Santo ao Guarapari são oito léguas; e faz-se entre um e outro rio uma enseada. Chegando a este rio de Guarapari estão as serras, que dizem de Porocão, e corre-se a costa do morro de João Moreno até este rio norte sul; e defronte do morro de João Moreno está a Ilha Escalvada. Do rio de Guarapari à ponta de Leritibe são sete léguas; e corre-se a costa nordeste sudoeste, cuja terra é muito alta: esta ponta tem, da banda do norte, três ilhas, obra de duas léguas ao mar e a primeira está meia légua da terra firme, as quais têm bom surgidouro; e estão estas ilhas defronte do rio Guarapari. A terra deste rio até Leritibe é muito grossa e boa para povoar como a melhor do Brasil, a qual foi povoada dos Guaitacazes. Esta ponta de Leritibe tem um arrecife ao mar, que boja bem uma légua e meia, a qual ponta é de terra baixa, ao longo do mar. De Leritibe até Tapemerim são quatro ou cinco léguas, cuja costa se corre nordeste sudoeste, a qual está em vinte graus e três quartos.[ 11 ]

Para arrematar, cite-se ainda Ambrósio Fernandes Brandão, autor de Diálogos das grandezas do Brasil. Pouco se sabe sobre sua vida. Viveu seguramente no Brasil entre 1583 e 1618, ano em que teria escrito na Paraíba o seu livro, compondo-o em forma dialogal, comum na época. A parte referente à capitania do Espírito Santo é brevíssima:

Alviano: Pois dizei-me desta capitania.

Brandonio: A capitania do Espirito Santo está situada em 20 gráos da banda do Sul da equinocial. É de senhorio, e de presente se intitula capitão della, por sua Magestade, Francisco de Aguiar Coutinho; contém em si alguns engenhos de fazer assucares; é terra larga e abundante de mantimentos, e de muito balsamo, de que seus moradores se aproveitam, lavrando com elle contas e outros brincos, que mandam pera a Espanha, onde são estimados por serem cheirosos.
Desta capitania foi Marcos de Azeredo ao descobrimento das minas de esmeraldas, que havia fama haver no sertão; em effeito chegou a ellas, e trouxe grande cópia de pedras que no principio se tiveram por perfeitas, mas depois se acharam faltas de muitas calidades que deviam ter pera serem verdadeiras esmeraldas.

Alviano: Foi pouco venturoso esse descobridor em perderem essas pedras a primeira estimação, porque sem isso ficaram sendo para elle tesouro. E assim passemos avante correndo pela demais costa, porque já sei que tem tambem essa capitania do Espirito Santo mosteiros de Religiosos que a ennobrecem.[ 12 ]

b) José de Anchieta

A José de Anchieta (1534-1597) se atribui a inauguração da literatura de modelo europeu em terras brasileiras. Em latim escreveu os poemas épicos De Gestis Mendi de Saa e De Beata Virgine Dei Matre Maria; em português, espanhol e tupi escreveu pequenos poemas líricos de feição popular e ainda doze autos, peças teatrais de criação medieval em que se destacam personagens alegóricos. Seus poemas em latim são textos de exaltação dos valores militares ou religiosos dos europeus, e seus autos têm propósito eminentemente didático e doutrinário, compostos que foram para servir de instrumentos no processo de conversão dos indígenas e de doutrinação dos colonos.[ 13 ]

Dentre os doze autos escritos por Anchieta, oito apresentam temas ligados à capitania do Espírito Santo e aqui foram encenados pela primeira vez: Na aldeia de Guaraparim; Recebimento que fizeram os índios de Guaraparim ao padre provincial Marçal Beliarte; No dia da Assunção, quando levaram sua imagem a Reritiba; Recebimento do padre Bartolomeu Simões Pereira; Recebimento do padre Marcos da Costa; Quando, no Espírito Santo, se recebeu uma relíquia das Onze Mil Virgens; Na Vila de Vitória; Na visitação de Santa Isabel.

Nem todos esses títulos de feição cartorial aparecem nos manuscritos originais dos autos. Dois autos, sem títulos nos manuscritos, foram denominados posteriormente Na Aldeia de Guaraparim e Na Vila de Vitória, o que permitiu que este último fosse também conhecido como Auto da Vila de Vitória ou Auto de São Maurício.

Os oito autos citados acima, como também os demais do mesmo autor, foram, segundo os estudiosos, escritos entre 1578 e 1596. O auto Na Vila de Vitória, por exemplo, foi representado pela primeira vez entre 1584 e 1586 no pátio da igreja de Santiago, em Vitória, onde hoje está o Palácio Anchieta, do Governo do Estado.[ 14 ]

Os autos de Anchieta eram dramatizações em verso bem ao gosto popular, com partes para serem cantadas e com a presença de santos e demônios. Crêem os estudiosos que o “elenco” dos autos era formado por estudantes e um ou outro colono mais desembaraçado. Quanto aos índios, revela Edith Pimentel Pinto, “Anchieta, na sua intuição pedagógica, procurava sempre aproveitá-los na representação, quer como atores, quer como dançarinos e cantores. Para tal, ou lançava mão do tupi […], ou incluía um canto, uma dança, uma procissão, atividades bem do agrado deles, e que não requeriam sutilezas de interpretação”.[ 15 ]

Da obra de Anchieta diz Oscar Gama Filho: “Medieval segundo alguns, humanista segundo outros, na verdade as aparentes antíteses da obra de Anchieta talvez só possam ser compreendidas se aceitas como manifestações do Barroco primitivo ou Pré-Barroco, fruto do conflito dualístico entre Renascença e Idade Média. É inegável, porém, que suas peças eram herdeiras dos autos e dos mistérios medievais.”[ 16 ]

No que diz respeito ao Espírito Santo, se podemos considerar como parte da produção literária local uma obra composta aqui e (ou) versando assunto local, a maioria dos autos de Anchieta pode ser incluída nessa classificação. Assim, tem cabimento dizer que foi ele o primeiro autor a produzir literatura no Espírito Santo. Sua ligação com o Espírito Santo ainda se estreita pelo fato de ter ele vivido nesta capitania os três últimos anos de vida e ter morrido na aldeia de Reritiba, hoje Anchieta, no sul do Estado. Dali, em 6 de março de 1596, ele enviou ao padre Manuel Viegas, catequista dos índios maromomis, a última carta que dele se conserva, pela qual se sabe que continuava seu ofício de escritor, compondo uma história da Companhia de Jesus no Brasil, obra que não chegou até nós:

Eu escrevo agora a história da Companhia de Jesus destas nossas partes cá, e tenho tirado um traslado em limpo para mandar a Roma, como de lá pedem. E nele faço menção do princípio da conversão dos Maromomis e do bom progresso deles e de quantos estão já na glória e caminham para lá cada dia, e da arte, vocabulário e doutrina, que está feita em sua língua por V. Rev., nomeando-o em particular e do grande fruto que se espera. V. Rev. tenha mão, Deus diante em tudo. Tene quod tenes. Nemo tollat candelabrum tuum de loco suo, pois é posto por lucerna destes pobres cegos, ut videant lucem Dei per te, grande Apóstolo dos Maromomis, para entregar muitos deles a Cristo Nosso Senhor, que por eles morreu, e elegit te ad tantum opus. Do Espírito Santo, 6 de março 1596, de V. Rev. frater in Cto, José.[ 17 ]

O companheiro mais velho e menos carismático de Anchieta, Manoel da Nóbrega, também deixou um documento literário inspirado no trabalho da catequese, o Diálogo da conversão do gentio, escrito, assim se supõe, em 1559. Não há qualquer registro do local onde teria sido escrito, mas é lícito tentar puxar a brasa para a nossa sardinha e especular sobre as possibilidades de que o foi na capitania do Espírito Santo ou, pelo menos, de que é ela o cenário nuclear de onde Nóbrega constrói as suas reflexões sobre as dificuldades de converter os nativos brasileiros ao cristianismo. A primeira pista está na apresentação dos interlocutores, em que Nóbrega cita Gonçalo Álvares como companheiro “a quem Deus deu graça e talento para ser trombeta de sua palavra na Capitania do Espírito Santo”.[ 18 ]  A segunda, logo a seguir, na primeira e única didascália do diálogo: “Entra logo o Irmão Gonçalo Álvares, tentado dos negros do Gato e de todos os outros; e, meio desesperado de sua conversão, diga;”[ 19 ]  – a que se segue a fala inicial de Álvares. “Negros”, aí, é termo aplicado aos indígenas, e os “negros do Gato” só podem ser os índios da tribo dos temiminós do Espírito Santo chefiada pelo cacique Maracajaguaçu, ou Gato Grande – fato não mencionado pelo editor do Diálogo, Mecenas Dourado. Maracajaguaçu, por sinal, acabou convertido e batizado, tendo como padrinho o donatário da capitania, assumindo-lhe o nome, Vasco Fernandes. Uma terceira pista estaria na seguinte passagem do diálogo:

Gonçalo Álvares: Ora isso deve ser, porque não sei a qual ouvi, que quando vinham na nau imaginavam-se um S. João Baptista junto de um rio Jordão a batizar quantos a êles viessem…


Mateus Nogueira: Se foram tainhas do Piraiqué pudera ser![ 20 ]

Aí se pode admitir a possibilidade de que o rio citado fosse o Piraquê-açu, que deságua no Atlântico cerca de cem quilômetros ao norte de Vitória. Além disso, Serafim Leite teria sugerido (in História da Companhia de Jesus no Brasil, volume I, p. 575) o ano de 1559 como data de composição do Diálogo devido à presença de Gonçalo Álvares, nesse ano, na capitania do Espírito Santo.[ 21 ]  A tudo isso se podem somar informações como as de Afonso Brás sobre as dificuldades de conversão dos indígenas dessa capitania (o que, é claro, não lhes dá o monopólio da esquivança à doutrinação dos missionários): “Não ouso aqui [na capitania do Espírito Santo] batizar estes gentios tão facilmente, ainda que o pedem muitas vezes, porque me temo de sua inconstância e pouca firmeza, senão quando estão em artigo de morte. Tem-se cá muito pouca confiança neles porque são mui mudáveis, e parece aos homens impossível poder estes vir a ser bons cristãos, porque aconteceu já batizar os cristãos alguns, e tornarem a fugir para os gentios, e andam lá piores que dantes, e tornaram-se a meter em seus vícios e em comer carne humana.”[ 22 ]

Caso o Diálogo da conversão do gentio tenha sido composto no Espírito Santo, passa a ser Manoel da Nóbrega, e não Anchieta, o primeiro autor a produzir literatura no Espírito Santo.

c) Dois séculos de quase nada

Se a produção literária desenvolvida no Espírito Santo no século XVI já não é (nem poderia ser) volumosa – basicamente reduzida aos oito autos de Anchieta –, menor ainda seria nos dois séculos seguintes.

Um dos poucos autores que podem ser citados – sem ter produzido, contudo, obras literárias – é Pero de Castilho, nascido na capitania do Espírito Santo em 1572, que começou seu noviciado como jesuíta em 1587 na Bahia, tendo tido longa e destacada carreira na Companhia de Jesus. Participou de entradas no sertão, escrevendo sobre uma delas a Relação da Missão do Rio Grande: 1613-1614. Dominava perfeitamente a língua indígena, que aprendera em menino; é tido como possível autor de um Vocabulário da língua brasílica, manuscrito datado de 1621. Após esse ano não se tem mais notícia de Castilho.[ 23 ]

Outra figura digna de nota é a de Manoel de Andrade de Figueiredo (c.1674-1735). Nascido na capitania do Espírito Santo (segundo informação de Diogo Barbosa na Biblioteca Lusitana), Figueiredo foi autor de um texto didático, Nova escola para aprender a ler, escrever e contar, e de poemas visuais. Sobre ele informa Oscar Gama Filho que foi calígrafo e educador da corte portuguesa, e que seu pai, Antônio Mendes de Figueiredo, ocupou o cargo de capitão-mor do Espírito Santo de 1667 a 1671. E define:

O único representante do barroco maduro, voluptuoso, no Espírito Santo, é Manuel de Andrade de Figueiredo, primeiro capixaba nato a ser poeta, escritor, calígrafo e educador. Esse pioneirismo múltiplo foi conquistado graças à publicação da sua Nova escola para aprender a ler, escrever & contar, em Lisboa, no ano de 1722 (156 pp.). Ana Hatherly [in A experiência do prodígio, pp. 247-9] nos informa que Figueiredo, juntamente com Manuel Barata, foi um dos principais cultores da escrita e da caligrafia do barroco português.

Na Nova escola para aprender a ler, escrever & contar, há, entre os exercícios para os alunos, dois poemas visuais assinados por Andrade. O primeiro deles está escrito no estandarte que um cavaleiro carrega. É uma quintilha em redondilha maior:

O exercício, e louvor
das letras, que o mundo aclama
tem na nobreza o melhor
berço, a que ilustra a fama,
por mais sagrado esplendor.

Ainda que possamos fazer objeção a serem barrocos os versos, compostos na medida velha, lembramos ao leitor que deve ser considerado o conjunto de verso e gravura, elementos que transformam as obras de Figueiredo em poemas visuais bem ao gosto dos autores barrocos, dignos de serem incluídos – como realmente o foram – na já citada A experiência do prodígio. Encontramos de novo duas quintilhas na gravura 21, também com a assinatura de Andrade. Estão dispostas em vinhetas guardadas por dois soldados:

A perfeição da harmonia
na mais douta solfa está
o sol é gala do dia;
e a discreta ortografia
é quem alma às letras dá.

A pena que é mais polida
tanto aumenta à fama a glória,
que na pedra endurecida,
ou na estampa mais luzida
faz mais eterna memória.

Assegurando a autoria destes poemas, encontramos escrito na última gravura, a de número 44: “Manuel de Andrade de Figueiredo fez, escreveu e inventou na era de 1718.”.”[ 24 ]

Quanto a Gonçalo Soares da França, que muitos autores consagraram como primeiro poeta nascido no Espírito Santo, Oscar Gama Filho provou que se trata do poeta baiano Gonçalo Soares da Franca (1676 ou 1677-1724?).[ 25 ]


d) O Poema Mariano

Se Domingos Caldas é ou não o mesmo poeta arcádico Domingos Caldas Barbosa (1740-1800), autor da Viola de Lereno, é assunto que intriga os estudiosos desde Afonso Cláudio a Oscar Gama Filho. Também há informações contraditórias quanto ao ano (1738 ou 1740) e ao local (Rio de Janeiro ou Bahia) do seu nascimento. Não sendo natural da capitania do Espírito Santo, nem tendo aqui residido, a inclusão de seu nome nos tratados sobre a literatura local se deve exclusivamente a um dos textos a ele atribuídos, o Poema Mariano, datado de 1770, que Afonso Cláudio considera “a primeira composição poética sobre assunto local”.[ 26 ] Trata-se de um longo poema de 126 estrofes em oitava rima em que o autor descreve o convento de Nossa Senhora da Penha, em Vila Velha, e faz o relato dos milagres da santa. Bem no estilo da poesia épica, Caldas inclui no poema a presença de entidades mitológicas como Saturno, Netuno e Plutão, que comparecem como inimigos da Virgem, empenhados na sua perda. Ainda segundo Afonso Cláudio, esse poema teria circulado no Espírito Santo em cópias transcritas em cadernos de particulares até ser publicado em 1854 pelo padre Inácio Félix de Alvarenga Sales — edição de que não se conhece nenhum exemplar — e em 1888 por Joaquim José Gomes da Silva Neto (1818-1903) como parte do seu As maravilhas da Penha.[ 27 ] Em 1934 foi impressa uma terceira edição, prefaciada e anotada pelo padre Ponciano Stenzel. Domingos Caldas, com seu Poema Mariano, foi quem inaugurou, portanto, o vasto ciclo — erudito e popular — de literatura em louvor de Nossa Senhora da Penha. Não foi à toa que, a partir de meados do século XX, alguns críticos irreverentes passaram a rotular a literatura do Espírito Santo como “literatura do convento da Penha”.

Convento da Penha. Desenho de Leonardo Bicalho, 2012.
Convento da Penha. Desenho de Leonardo Bicalho, 2012.

_____________________________

NOTAS

[ 4 ] Pero Lopes de Sousa [1979], p. 32.
[ 5 ] Idem, ibidem, p. 32-3.
[ 6 ] Idem, ibidem, p. 33.
[ 7 ] Pero de Magalhães Gândavo [1980].
[ 8 ] Idem, ibidem.
[ 9 ] Idem, ibidem.
[ 10 ] Padre Fernão Cardim [1978], p. 203-7.
[ 11 ] Gabriel Soares de Sousa [1938], p. 70-80.
[ 12 ] Ambrósio Fernandes Brandão [1943], p. 74.
[ 13 ] Oscar Gama Filho [1991] analisa criteriosamente a poesia latina e os autos de Anchieta, a quem considera “figura máxima do pré-barroco brasileiro”. Cf. p. 21-8. Ver também Oscar Gama Filho [1981], p. 39-64.
[ 14 ] Edith Pimentel Pinto [1978], p. 199.
[ 15 ] Idem, ibidem, p. 201.
[ 16 ] Oscar Gama Filho [1990], p. 558.
[ 17 ] Apud Guilherme Santos Neves [1997], p. 94-5.
[ 18 ] Mecenas Dourado [1958], p. 175.
[ 19 ] Idem, ibidem, p. 175.
[ 20 ] Idem, ibidem, p. 177.
[ 21 ] Idem, ibidem, p. 12.
[ 22 ] Idem, ibidem, p. 68-9.
[ 23 ] Félix Pacheco [1935], em que transcreve carta de Serafim Leite dando-lhe informações sobre Pero de Castilho.
[ 24 ] Oscar Gama Filho [1991], p. 28 e 31.
[ 25 ] Oscar Gama Filho [1984].
[ 26 ] Afonso Cláudio [1912], p. 42. Oscar Gama Filho [1991] também analisa o poema — que considera pré-romântico — e a questão de sua autoria (p. 54-7).
[ 27 ] Afonso Cláudio [1912], p. 43-4.

Reinaldo Santos Neves é escritor com vários livros publicados e foi responsável pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Literatura do Espírito Santo, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

Deixe um Comentário