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Quarta parte: De 1951 a 1978

Renato Pacheco.
Renato Pacheco.

l) Cenário cultural nos anos 50 e 60 

Se se permite a metáfora, pode-se dizer que o Espírito Santo cruzou o meridiano da década de 50 com bons auspícios, inclusive na área cultural. Tomou posse como governador, em 1951, Jones dos Santos Neves (1901-1973), que trazia consigo um projeto de desenvolvimento abrangente. Em seu primeiro ano de governo fez comemorar, com um grande programa cultural, o quarto centenário de Vitória, embora a história oficial indicasse o ano de 1550 como ano de fundação da cidade. Na área do ensino superior, começou por criar uma série de faculdades e escolas – inclusive a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras –, como base para a fundação da Universidade do Espírito Santo, projeto que concretizou em maio de 1954. Já em 1944, como interventor federal, preocupado com a valorização da identidade local, dera guarida à iniciativa de João Calazans de publicar uma Coleção Autores Capixabas, de que só saiu o primeiro volume, com recursos da interventoria. Como governador, custeou em 1951 a edição da História do Estado do Espírito Santo, de José Teixeira de Oliveira, que continua sendo, até hoje, instrumento indispensável para o estudo da história do Estado.[ 77 ] Convidou, também, Rubem Braga e Carybé para fazerem uma viagem pelo Espírito Santo e produzirem um livro. Esse livro, Uma viagem capixaba de Carybé e Rubem Braga, viria a ser publicado somente em 1981, pelo Departamento Estadual de Cultura em parceria com a Aracruz Celulose. Ele mesmo, Jones, produzira alguns poemas na mocidade, compondo o retrato amistosamente satírico de colegas do Rotary Club de Vitória – empreendimento que lembra o de Mendes Fradique em Hipocratéia, no qual retratara os colegas do curso de medicina. Os poemas de Jones foram reunidos, juntamente com outros de autoria de Francisco Sarlo (daí o pseudônimo Jota-Esse), no livro Roda de perfis, de 1935.

O candidato de Jones dos Santos Neves para suceder-lhe, Eurico de Aguiar Salles, não foi eleito, o que de certa forma sustou o seu plano de desenvolvimento sócio-econômico e cultural para o Espírito Santo. A Universidade, porém, era uma realidade irreversível, e continuou a exercer influência cultural sobre a comunidade capixaba, especialmente sobre as novas gerações.

Renato Pacheco, que no começo da década mantém na Vida Capichaba uma coluna literária com o nome “Pólo Norte… Pólo Sul… – Notas de literatura”, parte em 1951 para um empreendimento ousado, as Edições Renato Pacheco, ensaio de editora local que, ao encerrar suas atividades, tinha cinco títulos em catálogo: Fragmentos (1951), poemas de Antenor de Carvalho; Cariacica, ensaio de Omyr Leal Bezerra (1951); Pretos e brancos: poemas traduzidos (1952), de Eugênio Sette; Praça Oito (1953), crônicas, também de Eugênio Sette; e Impressões sobre arte (1955), conferência de Luiz Derenzi.

 Cabeçalho do 'Boletim Âncora'.
 Cabeçalho do Boletim Âncora.

O cenário cultural em meados da década de 50 em Vitória apresenta tendências divergentes. Nas fileiras da Tradição, o Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo e a Academia Espírito-santense de Letras continuam em atividade, o primeiro mantendo com persistência a sua Revista, a segunda empossando sucessivas levas de imortais em cerimônias revestidas de pompa e circunstância. No entanto, a revista Vida Capichaba, depois de mais de trinta anos de presença marcante nesse cenário, será vendida a um grupo que a manterá circulando com grande irregularidade até o final da década, quando se extingue definitivamente. Não se criam espaços similares para a difusão do beletrismo local, que fica circunscrito aos suplementos literários dos jornais. Nas fileiras da Novidade, abre-se, em meados da década, a Livraria Âncora, com grandes expectativas de se tornar um núcleo de divulgação e de debate de idéias. A livraria, de propriedade dos padres pavonianos, gerenciada por Nestor Cinelli (falecido em 2002), mantém o Boletim Âncora, “boletim bibliográfico” que conta com a colaboração de “todos os intelectuais do Estado”. O seu número 5, de janeiro de 1960, inclui uma crônica de Carmélia M. de Souza, um poema de Renato Pacheco, uma “Bibliografia do folclore capixaba”, de Guilherme Santos Neves, e uma resenha de Lolita, de Vladimir Nabokov, escrita por Jair Dessaune, entre outras colaborações. A livraria promove também um ciclo de palestras aos sábados pela manhã, que se tornou conhecido como as “Sabatinas Âncora”. Torna-se o ponto de encontro dos intelectuais de Vitória, tanto dos veteranos como dos mais jovens: representantes de ambas as correntes proferem palestras nas sabatinas, programa obrigatório das elites intelectuais da cidade. Os intelectuais mais jovens passam a ocupar espaço nos suplementos literários – Luiz Guilherme Santos Neves mantém em A Gazeta uma coluna de crítica literária, “Literatura e História”, e Wilson Borges Miguel (falecido em 2000), que publicara crônicas na Vida Capichaba, no início dos anos 40, com o pseudônimo Wilson Maranguape, agora publica como Fabrício Lima em O Diário – e nas rádios – produzido por Ivan Borgo e Aly da Silva, vai ao ar durante cerca de um ano, pela Rádio Capixaba, um programa radiofônico com o nome euclidiano de “Contrastes e confrontos” (Ivan Borgo descreve a experiência numa das crônicas que publicou com o pseudônimo de Roberto Mazzini).[ 78 ] Lê-se e discute-se a literatura contemporânea, desde Guimarães Rosa a Gustavo Corção, desde Somerset Maugham a Graham Greene, mas a preferência reverente é para o triunvirato dos autores americanos, William Faulkner, John Steinbeck e Ernest Hemingway. Cogita-se da publicação de uma antologia de contos, que incluiria trabalhos de Ivan Borgo, Luiz Guilherme Santos Neves, Wilson Borges Miguel, José Luiz Moreira Cacciari, Renato Pacheco e outros, projeto que não foi adiante.

O que os novos não fizeram, fizeram os velhos. Repetindo a ousadia de Renato Pacheco dez anos antes, a Livraria Âncora dá início a uma editora cooperativa, e em 1962 edita, em grande estilo, a coletânea Torta capixaba, incluindo onze autores, dez deles membros da Academia Espírito-santense de Letras (Eugênio Sette, a exceção, entraria na Academia mais tarde). O livro é uma miscelânea de ensaios, contos e poemas, assinados por Augusto Lins, Beresford Martins Moreira, Christiano Ferreira Fraga, Eugênio Sette, Eurípedes Queiroz do Valle, Geraldo Costa Alves, Guilherme Santos Neves, José Paulino Alves Júnior, Nelson Abel de Almeida, Renato Pacheco e Ruy Côrtes.

À semelhança do projeto mirabolante da Coleção Autores Capixabas, de João Calazans, o projeto da Editora Âncora era também ambicioso, pois da sua programação editorial constavam quatro coleções, como se lê no prefácio de Antônio Simões dos Reis à Torta capixaba: “As coleções programadas dão bem uma noção do trabalho orientado: uma coleção de assuntos capixabas, uma coleção de traduções de livros internacionais, uma coleção de livros didáticos, uma biblioteca das obras dos grandes viajantes que visitaram o Espírito Santo.[ 79 ] E encerra o prefaciador: “Só nos resta agora apelar para o povo do Espírito Santo, para que nos dê a mão e nos empreste seus olhos atentos, assim atingiremos o seu espírito nesta luta de frutos fartos e vitórias sem mancha. Uma luta só de vitoriosos, com o livro e pelo livro.[ 80 ] Se a Coleção Autores Capixabas, vinte anos antes, ficou no primeiro livro, a programação da Editora Âncora foi um pouco mais longe: ficou no segundo – uma História do Espírito Santo, de Maria Stella de Novaes (1894-1981), publicada pela editora já como Fundo Editorial do Espírito Santo, sem indicação de data –, se não contarmos uma ou outra co-edição com a Organização Simões, do Rio de Janeiro.

A coletânea Torta capixaba pode ser vista como o canto de cisne da velha geração literária do Espírito Santo, produtora, principalmente, do que se convencionou chamar “literatura do convento da Penha”. A partir daí as coisas começariam, ainda que quase imperceptivelmente, a mudar.

m) A geração de 45

Geir Campos (1924-1999), nascido em São José do Calçado, radicou-se no Rio de Janeiro e ali se tornou um dos principais representantes do que se convencionou chamar geração de 45. Sua obra poética é bastante vasta, incluindo, entre outros, os livros: Rosa dos rumos (1950), Arquipélago (1952), Coroa de sonetos (1953), Da profissão do poeta (1956), Canto claro & poemas anteriores (1957), Tema com variação (1957), Operário do canto (1959), Canto provisório (1960), Cantigas de acordar mulher (1964), Cantar de amigo: ao outro homem da mulher amada (1964), Metanáutica (1970), Canto de peixe & outros cantos (1977), Tarefa (1981, coletânea). Publicou também: Pequeno dicionário de arte poética (1960, reeditado em 1965 e 1978), O vestíbulo (1960, reeditado em 1976), contos, e Conto e vírgula (1982), contos. Publicou traduções de Rilke, Kafka, Defoe, Brecht, Whitman, Shakespeare e Hesse. Maria Thereza Coelho Ceotto estudou-lhe a obra em Geir Campos e a geração de 45 (1992).

Expatriada também é Marly de Oliveira (1935–), que iniciou na poesia com Cerco da primavera (1957). Sua obra poética tem cerca de quinze títulos, entre os quais Explicação de Narciso (1960), A suave pantera (1961), A vida natural – O sangue na veia (1967), Contato (1975), Invocação de Orpheu (1980), Aliança (1980), A força da paixão & A incerteza das coisas (1982), O banquete (1988), O deserto jardim (1990) e O mar de permeio (1997). Francisco Aurelio Ribeiro a considera uma legítima herdeira da geração de 45 e a define como cultora da linguagem objetiva e da reflexão.[ 81 ]

n) Audífax e depois: a poesia dos anos 60 e 70

 Auto-retrato de Audífax de Amorim.
 Auto-retrato de Audífax de Amorim.

Em fevereiro de 1963 José Carlos Oliveira veio a Vitória para o lançamento de seu primeiro livro, Os olhos dourados de ódio, uma coletânea de crônicas.[ 82 ] Dez anos antes, José Carlos deixara Vitória, sua cidade natal, com uma mão na frente, outra atrás, para tentar a carreira de escritor no Rio de Janeiro. Retornava agora na condição de cronista do Jornal do Brasil, aclamado, ao lado de Rubem Braga, como um dos grandes cultores do gênero no país.

José Carlos pertencia à mesma geração que muitos dos jovens promissores da década anterior – Ivan Borgo, Luiz Guilherme Santos Neves, Aly da Silva, Audífax Amorim, entre outros. Fora ele a única promessa que frutificara: sempre quis ser escritor, e era. Os demais se tinham transformado em pais de família e andavam ocupados em ganhar a vida, deixando a literatura para quando Deus desse bom tempo. Exceção era Audífax de Amorim (1933-1964) que, embora pai de família como os outros, continuava publicando poemas e crônicas nos jornais de Vitória, principalmente no semanário Sete dias. Inovador por excelência, Audífax, segundo Oscar Gama Filho, “renovou a poesia capixaba com a sua ânsia de experimentar novas formas e suas incursões pelo Concretismo”.[ 83 ] Sua morte aos 31 anos interrompeu uma carreira totalmente fora dos padrões vigentes na literatura local. Seu único livro, Poemas (1982), resulta do esforço de José Augusto Carvalho para reunir seus poemas inéditos e aqueles publicados em jornais e dar-lhes forma definitiva.

Na esteira de Audífax, uma geração de novos poetas tentava sacudir as rígidas estruturas da poesia capixaba em busca de inovação. Xerxes Gusmão Neto (1942–), então estudante na Faculdade de Direito, Cláudio Antônio Lachini (1941–), diretor do jornal da Faculdade, Jus, e Carlos Chenier de Magalhães (1938-1989), dublê de poeta e pintor, ligados pelo inconformismo diante da estagnação cultural capixaba, resolveram promover a I Semana dos Novos, uma espécie de reedição da Semana de Arte Moderna de 22 que, segundo eles, não chegara ao Espírito Santo. A Semana, realizada em fevereiro de 1963 na Faculdade de Filosofia, com apoio do Departamento de Educação e Cultura da Ufes, incluiu conferências e leituras de poemas de vanguarda, seguidas de debates, além de apresentações musicais; entretanto, nenhum dos escritores convidados – Ferreira Gullar, Geir Campos e José Carlos Oliveira (este último presente em Vitória para o lançamento do seu primeiro livro) – compareceu.[ 84 ]

A esse primeiro evento seguiu-se um Seminário Cultural da Juventude Capixaba, em abril. De mais prático, o que se conseguiu foi a adesão de outros poetas de vanguarda – Domingos de Azevedo, Zélia Stein, Newton Copolillo – e o convite de Jeová Barros, então presidente do que restava da Academia Capixaba dos Novos, para uma aliança. Embora tivessem participado das reuniões da Academia, os poetas de vanguarda acabaram por criar uma ala própria, o Clube, ou Grupo, do Olho, publicando seus trabalhos na “Coluna dos Novos” no semanário Folha Capixaba. Segundo Oscar Gama Filho, esse grupo literário produziu um manifesto que, “dotado de preocupações estéticas e sociais, apesar de escrito, nunca foi publicado na íntegra”.[ 85 ] Como os jovens intelectuais de uma década antes, também se discutiu a possibilidade de publicação de uma antologia, tendo havido contatos em Vitória, com a Editora Âncora, e no Rio. A antologia, que reuniria poemas de Xerxes Gusmão Neto, Carlos Chenier, Cláudio Lachini, Olival Mattos Pessanha, Fernando Tatagiba, Renato Viana Soares, Ronaldo Alves, Domingos de Azevedo, Sérgio Régis e Arlindo Castro Filho, três poemas de cada, não chegou a se transformar em livro.

O advento da ditadura militar, em 1964, contribuiu para inibir esses poetas novos, quase todos eles adeptos de ideologias de esquerda; muitos deles saíram de Vitória, como Cláudio Lachini, Renato Soares, Sérgio Régis e Arlindo Castro Filho. Quem reaparece no cenário da poesia nessa época é o príncipe dos poetas capixabas de 1947, Geraldo Costa Alves, que publica Cem quadras em 1965 e A árvore em 1966; deste último disse José Augusto Carvalho: “Poemas de grande beleza, alguns de exaltação cívica de raro lirismo, em que a árvore é tema único em seus múltiplos aspectos. Mesmo as imagens superconhecidas e as comparações superexploradas aparecem aqui com rara felicidade, sem lugares-comuns chocantes. O objetivo fundamental da obra é condenar a destruição sistemática de nossas reservas florestais.[ 86 ] No sul do Estado, a partir de 1960, Evandro Moreira (1939–) publica livros de poesia numa linha tradicionalista, como A lenda das rosas (1960), Cárcere de almas (1965), A outra face do espelho (1966), a que se seguiriam, nas décadas seguintes, Operário morto (1974), Cantempo (1978), Ofertório (1981) e Taça vazia (1983). Já Kátia Bento (1941–), também do sul do Estado (Castelo) mas radicada no Rio de Janeiro, publica alguns livros de poesia mais sintonizada com as vanguardas da época, como O azul das montanhas ao longe (1968), Principalmente etc. (1972), Romanceiro de Amuia (1980) e Contrafala (1982).

Em 1967, quando a Universidade Federal do Espírito Santo lança o primeiro número de sua Revista de Cultura (de que, nessa primeira fase, só sairiam sete edições), Cláudio Lachini é o diretor-assistente da revista. A seção de literatura desse primeiro número inclui um poema seu e outro de Xerxes Gusmão Neto, além de ensaios de José Augusto Carvalho (“De Kafka a Rubião”) e de Dieter Woll (“Influência de Nietzsche e Schopenhauer no Canaã de Graça Aranha”). Na seção de resenhas, José Augusto Carvalho faz o registro do melhor que se publicou no Espírito Santo entre 1965 e 1967: quinze títulos, de autoria de Margarida Pimentel, Ciro Vieira da Cunha, Levy Rocha, Geraldo Costa Alves, Samuel Duarte, Neida Lúcia Moraes, Evandro Moreira, Clóvis Ramalhete e Augusto Lins, entre outros. Prosa, a maior parte.

Em 1967 uma entidade de nenhuma tradição na área de literatura, o Museu de Arte Moderna do Espírito Santo, toma a iniciativa surpreendente de se propor a editar uma antologia de poetas capixabas. Quem o anuncia é José Augusto Carvalho, que deu à iniciativa a medida exata de seu valor:

Os nomes que nela se incluem, alguns claudicantes ainda na expressão de suas idéias, são mais do que poetas. São todos eles nomes de valor e de mérito. Se, às vezes, o valor e o mérito não se exprimem em ato, exprimem-se em potência, pela força de vontade, pelo idealismo. Não é fácil produzir nem criar num ambiente estéril, provinciano, falho de recursos, desprezado pelas autoridades. A verdadeira poesia, o verdadeiro grande poema que cada um desses poetas escreveu, não está na Antologia, mas na luta para que a Antologia seja publicada. E se a Antologia for publicada, não o será para elevar seus nomes e poemas em letras de forma, numa vaidade despudorada, mas para mostrar aos que vivem, e aos que viverão, em Vitória, que alguma coisa foi feita para, mesmo precariamente, tirar o Espírito Santo da fossa da Idade Média.[ 87 ]

A cautela e o ceticismo de José Augusto Carvalho tinham razão de ser. A antologia do Museu de Arte Moderna do Espírito Santo não passou, como tantas outras, da intenção.

1967 é o ano em que toma posse como governador do Estado um dos membros da velha Academia Capixaba dos Novos, Cristiano Dias Lopes Filho, que ali se destacara como implantador, no Espírito Santo, da Campanha Nacional dos Educandários Gratuitos. Cristiano fora assessor de Jones dos Santos Neves durante a administração deste; ao assumir o governo, começou a pôr em prática o seu próprio plano de desenvolvimento para o Espírito Santo. Foi ele quem criou as condições infra-estruturais para a instalação do Centro Industrial de Vitória que serviriam, posteriormente, para atrair para o Estado os chamados Grandes Projetos – a Companhia Siderúrgica de Tubarão, a Aracruz Celulose, e outros mais – que mudariam a face do Espírito Santo, social e economicamente, de forma irreversível. As consequências dessa revolução industrial no Estado não podiam deixar de atingir o setor cultural, como acentua Oscar Gama Filho:

Com a implantação do capitalismo, surgiu – principalmente em Vitória – o capital cultural industrial, que permitiu a estruturação de um aparelho ideológico cultural dinâmico e definitivo. Pela primeira vez em sua história, o movimento cultural capixaba se tornou ininterrupto, melhorando em qualidade e aumentando em número de manifestações. Nascem, a partir de Dias Lopes, a Fundação Cultural do Espírito Santo, a Editora da Fundação Ceciliano Abel de Almeida/Ufes, a Editora Ímã e as revistas Sim, Letra, Ímã e Cuca.[ 88 ]

Essas consequências ainda levariam alguns anos para se fazerem sentir. Ao final da década, em 1968, um grupo de poetas encabeçados por Olival Mattos Pessanha (1946-1993) e Fernando Tatagiba (1946-1988) cria o Clube de Poesia do Movimento Artístico Capixaba, que promove quatro recitais de poesia (na linha do movimento Catequese Poética, de Lindolf Bell, segundo José Augusto Carvalho), o último dos quais em setembro de 1971. Do terceiro recital, realizado em 29 de março de 1969 no salão nobre da Faculdade de Filosofia (Fafi), com declamação a cargo do Grupo Geração, foi impressa, em mimeógrafo, uma antologia, com introduções assinadas por José Augusto Carvalho (“A poesia é necessária?”) e Olival Pessanha (“Há lugar para a poesia neste mundo despoetizado?”. Participam da antologia Xerxes Gusmão Neto, Ronaldo Alves, Domingos Azevedo, Delano Câmara, Izabel Helena de Oliveira, Amílcar Haddad Alves, Fernando Tatagiba, Miguel Depes Tallon, Freddy Guimarães, Cláudio Lachini, Carlos Dorsch, Carlos Chenier e Olival Pessanha.[ 89 ]

Em 17 de dezembro de 1972, numa promoção do Serviço de Turismo da Prefeitura de Vitória, com apoio da Fundação Cultural do Espírito Santo, foi realizada no Teatro Carlos Gomes uma montagem de textos de poetas capixabas, a que se deu o nome de Ultimato. A montagem incluiu os seguintes autores: Olival Pessanha, Fernando Tatagiba, Osmar Silva, Carlos Chenier, Bernadette Lyra, Wanda Santos Sily, Walter Brumatte, Joel Laranja, Antônio Roberto Simões, João Amorim Coutinho, José Luiz do Amaral e Fernando Achiamé. É mais uma vez de Olival Pessanha a apresentação, lançada em termos poético-dramáticos, com o título Ultimato:

lutar pela vida, para os homens
abrir caminhos por entre a cidade sitiada e o tempo morto
para plantar esperanças e nascentes no poente
colher o filho do povo e a mulher do povo
para um sonho eterno e terno nascer do pão repartido
ser mão e irmão no ultimato dos mesmos ideais
a empunhar punho ou afago diante do inevitável
a poesia é gênero de primeira necessidade:
coma poesia! use poesia! consuma poesia! antes que acabe!
não é o estar-na-vida que faz do homem um ser vivente ou
SOBvivente: é a fome de vida é o insaciável nada
pregamos apenas este prego em nós mesmos
na nossa poética violada de todos os dias adiados
não temos senão a paisagem como cúmplice
de nossas vontades inconsumadas
e aqui lançamos o ultimato poético contra
o desamor, a violência, a indiferença, a fome, o silêncio,
o medo, a chama apagada, a fuga e a mentira
o lugar é este, agora e sempre, e nós somos
os escolhidos para o ultimato do último amor...[ 90 ]

Na década de 70 os poetas capixabas vão encontrar apadrinhamento na Fundação Cultural do Espírito Santo (criada em 1968, durou até 1980, quando se transformou em Departamento Estadual de Cultura, hoje Secretaria Estadual de Cultura), que em 1973 promoveu um concurso para tentar “reunir o melhor da poesia que o capixaba de todo o Espírito Santo está produzindo hoje”. O concurso teve, na comissão julgadora, Maria Tereza Lindenberg Coelho Ceotto, representando a Ufes; Xerxes Gusmão Neto, representando o Clube de Poesia do Espírito Santo; Gilson Sarmento, representando a Fundação Cultural; e, como convidados especiais, os escritores Geir Campos e José Augusto Carvalho. Foram selecionados 16 poetas, a maioria deles constituída por nomes jovens. Seus poemas, antes de serem reunidos em livro publicado em 1974 com o título prosaico de Poetas do Espírito Santo, foram interpretados em público pelos Jograis da Fundação Cultural, “tendo obtido”, segundo se lê na apresentação da coletânea, “entusiástica acolhida do público em geral e especialmente dos estudantes de 2° grau e universitários”. São os seguintes os 16 autores: Bernadette Lyra, Carmem Lúcia Có, Delano Câmara, Delton Souza, Fernando Achiamé, Joaquim Beato, Joel Laranja, José Irmo Gonring, José Luiz Teixeira do Amaral, José Maria Coutinho, Julmar Cruz da Fonseca, Luiz Fernando Tatagiba, Mariângela Pellerano, Rita de Cássia Fernandes Rosa, Roberto Almada e Ruy Côrtes. Dentre eles, Ruy Côrtes aparecia como representante isolado da Academia Espírito-santense de Letras, enquanto outros sete (se aí incluirmos José Irmo Gonring) tinham vivido a era dos recitais do Clube de Poesia. Bernadette Lyra e Fernando Tatagiba (na prosa de ficção) e Roberto Almada (na poesia) se revelariam como autores de ponta na década seguinte. José Irmo Gonring publicaria seu primeiro livro de poesia (A água dos dias e o curso do rio) somente em 1989, enquanto Fernando Achiamé (1950–) publicou o seu, A obra incerta, somente em 2000, com recursos da Lei Rubem Braga. Os demais não deram continuidade à sua obra poética ou, se deram, não divulgaram.

Dentre os autores que partiram para a publicação em livro na década de 70 está Sebastião Maciel de Aguiar (1952–) que, com A sede de cada dia, publicado em 1970, dá início a uma série de livros de poesia que prossegue com Remanso em velhos rumos (1971), O anjo acidentado (1972), Andança (1977), A poeira do tempo (1978), Porto das águas e das mágoas (1979), A toada do barabandi (1980) e O labirinto das horas (1982), além da antologia Poemas para a liberdade (1991). A poesia de Maciel de Aguiar, em que se notam com freqüência características da poesia popular, como o paralelismo, tem profundas raízes no legado cultural familiar e capixaba – sobretudo do norte do Estado: Conceição da Barra e São Mateus –, sem perder de vista referências estéticas e históricas do mundo exterior. Dela disse Jorge Amado: “Sua poesia carrega a angústia e a esperança do dia de hoje: ‘a cólera, a anarquia e o consolo’, porque o poeta sabe que ‘amanhã é o dia que faltava no mundo’. Uma poesia madura, sumarenta e generosa.[ 91 ] E Assis Brasil: “Um jovem poeta como Maciel de Aguiar, o que procura fazer, independente, é aproveitar o que chamo de ‘tradição nova’, para marcar o seu próprio mundo poético, com os recursos de uma linguagem simples, coloquial e não menos inventiva.[ 92 ]

Paralelamente, Xerxes Gusmão Neto publica Poesias de Xerxes em 1977 pela Fundação Cultural do Espírito Santo; Renato Viana Soares (1944–) publica Poesia seqüestrada em 1978 em Portugal, onde se auto-exilara, e Sentido da volta em 1982 em Vitória.

Nos últimos anos da década de 70 os jovens poetas capixabas – em sua maior parte pertencentes à geração subseqüente à dos recitais – vivem um clima de efervescência criativa que se traduz em vários projetos e atividades, alguns deles dirigidos à viabilização de alternativas editoriais. Em 1978 Oscar Gama Filho criou a Associação Cooperativa de Escritores Capixabas, destinada a viabilizar a publicação dos seus afiliados, dentre os quais se encontravam Miguel Marvilla, Marcos Tavares, Benilson Pereira, Gilson Soares e outros. A iniciativa não teve sucesso, mas inaugurou, com encontros na Aliança Francesa, a era das oficinas literárias. Subseqüentemente, alguns desses poetas passam a divulgar seus trabalhos por meio de edições marginais mimeografadas. Benilson Pereira inicia, com Expressão poesias (1978), uma longa série de publicações alternativas que o tornarão conhecido como o mais ativo autor marginal do Espírito Santo. Oscar Gama Filho e Miguel Marvilla, depois de uma primeira experiência em parceria, De amor à política (1979), partem para publicações individuais: Oscar publica Congregação do desencontro (1980); Miguel, A fuga e o vento (1980) e Exercício do corpo (impresso sem data de edição, saiu em 1981). Marginais, sim, mas desejosos da chancela acadêmica. José Augusto Carvalho, doutor em Letras pela USP, prefacia o livro de Oscar; Tânia Chulam, mestre em Comunicação pela UFRJ, prefacia Exercício do corpo, de Miguel; ambos são, na época, professores do Departamento de Línguas e Letras da Ufes. Também no final da década Valdo Motta, poeta que deixará marcas profundas na literatura do Espírito Santo, inaugura com Pano rasgado, de 1979, uma série de publicações alternativas que culminará em 1984 com Salário da loucura.

A par disso, esses e outros poetas continuam aproveitando todo e qualquer espaço impresso para a divulgação de seus poemas, desde jornais diários como A Gazeta e A Tribuna, até revistas como a Revista de Cultura da Ufes, além, naturalmente, de participarem dos concursos promovidos pela Ufes e outras instituições, onde sempre lhes cabe, pelo menos, uma menção honrosa, que depreciam como “menção honrorosa”. Oscar Gama Filho descobre outros meios de divulgação, como a “exposição poético-plástica de arte ambiental” intitulada Varais de edifícios, que promoveu em 1978. Atraído pelo teatro, escreve e encena duas tragicomédias, A mãe provisória (1978) e Estação Treblinka Garden (1979).

Na “primavera de 1978” Jairo de Britto (1952–) lança, com João Amorim Coutinho, a revista Sim – revista de contos e poesia, com parênteses para ensaios, resenhas, depoimentos etc. – de que saíram dois números. No que chamou “Pré-fácil”, escreveu ele, com muito bom-senso, modéstia e sinceridade:

A ideia é simples e antiga: reunir poemas e contos de capixabas; guardar espaço para ensaio, resenha ou entrevista; selecionar material estrangeiro para eventual publicação e reservar também espaço para um contista convidado a cada número.
A execução não é tão simples: temos que investir em tempo e dinheiro. Não pretendemos um compromisso maior com a periodicidade, embora cultivemos a discreta proposta de uma publicação trimestral.
A seleção do material é parcial: publicamos aqui o que eu e Amorim gostamos. O que acreditamos ser significativo nas letras capixabas contemporâneas. Sem preconceitos mas com nítida reserva – lemos diariamente péssimos poemas e contos medíocres. Entre nós e alhures. Infelizmente, o bem fazer literário não é uma mera questão de gosto, coisa que, ao contrário de muitos, acho bastante discutível. Diria que tão discutível quanto a conveniente baboseira da “imparcialidade editorial”.
A pretensão não é grande: mas gostaríamos que Sim resultasse numa antologia útil do que por aqui se escreve. E sabemos que isso seria possível num mínimo de dez edições. Gostaríamos também de contar com uma opção de leitura de ficção que não pretenda ser panfletária nem parnasiana, como muitas daquelas que nos atravessam o caminho e que facilmente se perdem no pobre mar das boas intenções.
Assim, espero que Sim frutifique. Na primeira vez que pensei em editar uma revista de ficção me associei a um amigo. Um artista das artes gráficas que sem dúvida enriqueceria qualquer publicação no Brasil ou no exterior, como aliás o fez. Corria o ano da desgraça de 1974 e Hélio Dutra morreria no ano seguinte. O projeto foi engavetado, outras tentativas resultaram frustradas e finalmente Sim chega às suas mãos, pobre e pequena, porém decente. Aos contistas e poetas aqui reunidos devemos esta homenagem.
Leia, Sim?[ 93 ]

Na terceira capa, João Amorim Coutinho assina um “pós-fácil” que ressoa como um depoimento típico dos angry young men da época:

Em 1973, eu e Rubinho Gomes iniciamos uma proposta editorial que morreu no número zero. Tratava-se de “A ilha”, uma publicação cheia de sonhos e contradições, que não deu em nada e não poderia mesmo dar. É claro que saiu um número, Carmen Miranda na capa, no corpo Caetano, Augusto, David Bowie e até Akira Kurosawa, deu muito comentário, grilos e ressentimentos.
E, provavelmente, só.
Em 1978, tudo isso não importa mais, agora os caminhos são outros, embora as pedras sejam as mesmas. Agora, Sim, cinco anos depois, as estrelas são outras: Carlos Chenier, Fernando Tatagiba, Amylton de Almeida, João Amorim Coutinho, Bernadette Lyra, Osmar Silva, Jairo de Britto, Olival Pessanha, José Irmo Gonring, Paulo Torre.
Esses estão, há pelo menos 10 anos, escrevendo duro. Em geral, legítimos filhos da festiva e fervilhante década dos 60. E são os que de verdadeiramente significativo tem a moderna (e viva) literatura capixaba. Dos nossos dias. Por isso, serão os obrigatórios habitantes desse espaço chamado Sim. Porque mantêm-se ativos, na labuta literária. Porque realmente escrevem, esperam, acreditam, a literatura está no fundamental de suas vidas. Há ainda outros, como Xerxes Gusmão Neto, Carmélia, Paulo de Paula, Milson Henriques, Arlindo Castro, Luiz Tadeu Teixeira, Ewerton Guimarães e poucos, bem poucos além.
No mais, a quase totalidade [da] minoria alfabetizada dos 1,5 milhões de capixabas gostam de escrever: um poema, uma crônica, um algo qualquer sem classificação de gênero. E podem até publicar, de vez em quando lemos coisas assim. Mas não significa nada, nada. Que me desculpem possíveis bons inéditos que pode haver por aí. Se existem, que apareçam pois. Que vengan los toros, que essa arena é nossa. Sem morrer de medo, porque hoje, Sim, há prenúncio de primavera no ar.[ 94 ]

O primeiro número divulgou contos de João Amorim Coutinho, Álvaro José Silva, Fernando Tatagiba e Bernadette Lyra, e poemas de Carlos Chenier, Jairo de Britto, Osmar Silva e José Irmo Gonring, além de um ensaio de Paulo de Paula sobre tradução de Cecília Meirelles e de um conto de Jeferson de Andrade como autor convidado.

O segundo número, lançado no “inverno de 1979”, com “pré-fácil” em duas partes, assinadas por um e outro editor, incluiu contos de Paulo Eduardo Torre, Jayme Santos Neves e, como autora convidada, Maria Amélia Mello, e poemas de Xerxes Gusmão Neto, Roberto Almada, Olival Mattos Pessanha e Arlindo Castro Filho, além de um excerto de romance (“ainda sem nome”) de Amylton de Almeida.

E foi só.

o) A redescoberta do romance e outros sinais de prosa nos anos 60 e 70

O primeiro sinal de mudança na prosa de ficção capixaba quem anuncia é Renato Pacheco. Com a publicação, em janeiro de 1964, de seu romance A oferta e o altar, pela editora carioca GRD, Renato Pacheco ao mesmo tempo reintroduz na literatura local um gênero literário praticamente intocado desde o século XIX e inaugura o moderno romance regional capixaba, além de garantir a edição do seu livro por uma editora de grande centro. Fato é que, desde os anos 30, a Editora Pongetti, do Rio de Janeiro, agasalhava autores capixabas sob sua égide, mas eram, quase todas, senão todas, edições financiadas pelos autores, esquema que Renato Pacheco consegue subverter mediante um contrato profissional entre editora e autor.

O jovem Renato Pacheco em desenho de Haroldo Zaluar.
O jovem Renato Pacheco em
desenho de Haroldo Zaluar.

Renato Pacheco (1928–) iniciara-se como poeta, com Poesia entressonhada (1947), a que deu sequência bem mais tarde com Presente de Natal para três pessoas simples (1968). Valendo-se de seu olhar de sociólogo, de um conhecimento enciclopédico sobre o Espírito Santo, e de sua passagem, como juiz de direito, por diversos municípios do Estado (dentre eles Conceição da Barra e Santa Leopoldina), dedicou-se a criar uma obra de interpretação ficcional do Espírito Santo, de que fazem parte: A oferta e o altar (1964; reeditado em 1973 e, com duas tiragens, em 1983); Fuga de Canaã (1981); Reino não conquistado (uma trilogia, 1984, composta por O manuscrito de Joseph Koster, Portal de ouro e Folhas ao vento, de que a primeira e a terceira parte foram publicadas em folhetim em A Tribuna, respectivamente entre 18 de maio e 7 de setembro de 1980 e entre 26 de julho e 29 de novembro de 1981). Mais recentemente vem-se dedicando à literatura juvenil, tendo publicado Eu vi nascer o Brasil (1997, de que saíra uma edição alternativa, com o título Vilão farto, em 1991) e Tião Sabará (1999), este último em parceria com Luiz Guilherme Santos Neves. Numa tríplice parceria com o mesmo Luiz Guilherme e com Reinaldo Santos Neves, produziu três textos informativos sobre o Espírito Santo, patrocinados, respectivamente, pela Companhia Vale do Rio Doce, Xerox do Brasil e Chocolates Garoto: Espírito Santo: Impressões (1991), Espírito Santo: Brasil (1994) e Vila Velha de Nossa Senhora da Penha (1997). É também autor de uma Antologia do jogo de bicho (1957). Quanto à sua retomada da poesia, veja-se o item “A década de 80: poesia”.

No mesmo ano em que foi lançado A oferta e o altar, 1964, Virgínia Tamanini (1897-1990), que até então se dedicara à poesia e ao teatro, lançou um romance também na linha regionalista, Karina. A autora valeu-se de todo um acervo de informações familiares sobre a imigração italiana em terras do Espírito Santo para compor esse romance, que se tornou imediatamente um clássico capixaba, tendo tido onze edições até 1985 e, em 1980, uma tradução para o italiano pelo Museo degli Usi e Costume della Gente Trentina S. Michele All’Adige, Trento. Segundo Luiz Busatto, “o romance Karina é um repositório altamente significativo de toda uma ideologia do sistema cultural italiano. Uma das marcas mais importantes deste sistema, por exemplo, está na imagem da ‘nonna’. A ‘nonna’ sempre tem uma autoridade moral maior que nenhum homem, sobretudo nos momentos cruciais. […] Impulsiva, Karina é primária pela autenticidade. Acredita em si, na sua intuição, nas suas estratégias e até na sua força física. É uma mulher de bem consigo mesma e que luta para estar de bem com o mundo. Mas a rudeza exterior não anula sua visão frequentemente política e sentimental da vida”.[ 95 ] Na mesma linha temática a autora publicou um segundo romance, Estradas do homem, em 1977.

Levy Rocha (1916–), mais conhecido pela sua numerosa produção na área de história do Espírito Santo – Viagem de Pedro II ao Espírito Santo (1960; reeditado em 1980); Crônicas de Cachoeiro (1966); Os Vieira da Cunha e o jornal “O Martello” (1969); Viajantes estrangeiros no Espírito Santo (1971; reeditado em 1972); De Vasco Coutinho aos contemporâneos (1977) – publicou um romance regionalista, Marapé (1978).

Outros romancistas surgidos na década de 60 são Armando Oliveira Santos, Margarida Pimentel (1936–), Samuel Duarte (1934–) e Neida Lúcia Moraes (1929–), que exploram, em quase todos os seus romances, temáticas urbanas. Armando Oliveira Santos publicou Targo (1961), memórias de um cão de circo (obra inspirada, provavelmente, em Jack London), e uma biografia romanceada, Solar de Itaparica (1963); Margarida Pimentel publicou os romances Apenas um homem (1965) e Adultério sem flagrante (1968), além de um livro de crônicas, Vento macho (1967); Samuel Duarte é autor do romance Ilha de fim de mar (1966). Os dois primeiros não publicaram outras obras; Samuel Duarte, depois de um longo hiato de 35 anos, publicou um segundo romance, As duas faces de Eros (2001). Neida Lúcia Moraes foi, dos quatro, quem manteve uma regularidade de produção. Sua obra novelística inclui Olhos de ver (1968), que pode ser classificado como romance regionalista, Sete é número ímpar (1971), Simbiose (1987), além dos romances de ambientação histórica O mofo no pão (1994), traduzido para o romeno, e O sentido da distância (1997).

O grande acontecimento dos anos 60, portanto, é a redescoberta do romance. O autor capixaba perde, por assim dizer, o medo desse gênero literário, desmistifica-o e dessacraliza-o. A partir de Renato Pacheco, outros autores, principalmente dentre as fileiras mais jovens, escolherão o romance como gênero principal de seus projetos literários ou chegarão a ele como seqüência natural de suas experiências com o conto. E mais: quase todos os autores capixabas de prosa de ficção nas décadas subseqüentes tentarão realizar seus projetos dentro das propostas da modernidade.

Já no início dos anos 70, Amylton de Almeida e Reinaldo Santos Neves publicam prosa de ficção buscando fugir aos padrões convencionais de estrutura e linguagem. Amylton publica, em 1972, em edição independente, o romance Blissful agony, e no mesmo ano conclui sua obra-prima, Autobiografia de Hermínia Maria, romance que só seria editado em 1994. Em 1977 publica um terceiro romance, A passagem do século. Reinaldo estréia em 1971 com Reino dos medas, que em 1973 lhe valeu menção honrosa no Prêmio Nacional de Ficção, do Instituto Nacional do Livro, na categoria obra publicada. No final da década, em 1978, publica seu segundo romance, A crônica de Malemort, em que desenvolve uma proposta de recuperação da linguagem portuguesa arcaica, mediante um simulacro de crônica medieval. Um terceiro autor que estréia no romance nessa década é José Augusto Carvalho, com A ilha do vento sul (1973). Todos eles buscam e conseguem editar seus livros em centros maiores (no caso de Amylton, A passagem do século), ainda que por editoras de menor expressão.

Radicado no Rio de Janeiro desde 1952, José Carlos Oliveira (1934-1986), cronista emérito do Jornal do Brasil, estréia no romance em 1972 com um texto de grande força dramática e poética, O pavão desiludido, cujos capítulos, no entanto, podem ser lidos como crônicas autônomas. José Carlos continuará nas trilhas do romance com Terror e êxtase (1977), que ganhou versão cinematográfica, Um novo animal na floresta (1979) e Domingo 22 (1984), além do livro de contos Bravos companheiros e fantasmas, publicado postumamente em 1986, no qual se dá o capricho de incluir um prefácio escrito por uma de suas personagens, Iael Askasuna. Em vida José Carlos publicou três livros de crônicas selecionadas: Os olhos dourados do ódio (1962), A revolução das bonecas (1967) e O saltimbanco azul (1979); o Diário da patetocracia: crônicas brasileiras 1968 foi organizado e publicado postumamente em 1995. Em 1999 Jason Tércio publicou Órfão da tempestade: A vida de Carlinhos Oliveira e da sua geração, entre o terror e o êxtase, biografia fundamental do homem por trás e por entre o escritor.

Como cronista, uma das grandes vozes a surgir no final dos anos 50 e a consolidar-se na década seguinte foi a de Carmélia Maria de Souza (1936-1974), que publicava em jornais textos em que alternava a melancolia e o deboche. Suas crônicas foram reunidas por Amylton de Almeida no livro póstumo Vento sul (1976), editado pela Fundação Cultural do Espírito Santo. Dela disse Francisco Aurelio Ribeiro: “Vivendo intensa e apaixonadamente a contestação da juventude dos anos 60, Carmélia personifica o espírito dessa geração de transição dos ‘anos dourados’ do pós-guerra aos ‘anos rebeldes’ dos revolucionários de 68. […] Suas crônicas refletem o lado sobretudo humano da vida, que estava sendo massacrado pela tecnocracia que se implantava num país dominado pelos militares e pela cultura norte-americana. Carmélia escrevia com a paixão, o coração, mais do que com a razão. Suas crônicas não são só jornalísticas mas, principalmente, repletas de sentimento de abandono, ódio, amor, compaixão.[ 96 ]

Também cronista, Marcos Alencar (1946–) começou a escrever em jornais de Vitória em 1968, publicando em 1978 Três anos de chorinho: retrato crítico de uma época, em branco e preto e sem retoques, a que se seguiria mais tarde Adoráveis peruas (1990). Nos anos 90 Marcos Alencar se torna cronista de A Gazeta e reúne em Aceita um lexotan? (1996), publicação da Secretaria de Turismo da Prefeitura de Vitória, crônicas publicadas entre 1991 e 1995 naquele jornal. Seu livro seguinte, O segredo da grã-fina (2000), também de crônicas, saiu pela Divisão Cultural da Gráfica Espírito Santo.

A Fundação Cultural do Espírito Santo, que dera algum apoio aos poetas capixabas com a publicação da antologia de 1974, fez o mesmo com os contistas do Estado ao editar, em 1979, a Antologia dos contistas capixabas. Em sua apresentação, o diretor presidente da Fundação, Marien Calixte, anuncia mais um “projeto de edições de livros, que se tornou viável em virtude de um convênio com a Fundação Ceciliano Abel de Almeida, da UFES, que se responsabiliza pela composição e impressão das obras”.[ 97 ] Explica ele, a seguir, que a seleção dos contistas da antologia se baseou em dois concursos de contos realizados pela Fundação nos dois anos anteriores, mais um texto de Rubem Braga (a crônica “Aula de inglês”), como convidado especial. Além de Rubem Braga, estão presentes na antologia Jayme Santos Neves, Fernando Tatagiba, Miriam Leitão, Carlos Chenier, Paulo de Paula, Carmen Schneider Guimarães, Álvaro José Silva, Bernadette Lyra e Marien Calixte.

A imprensa de Vitória, nessa década, procurou fazer um pouco mais do que abrir-se como espaço passivo para o autor local. Na edição de A Gazeta de 4 de setembro de 1977 editorial do Caderno Dois anuncia que, “a partir de hoje, estamos abrindo as portas para autores novos inéditos. A exigência é apenas ‘uma mente arejada’, para ser selecionado e ter seu trabalho publicado.[…] Está aberto, portanto, o Caderno Dois para universitários, bancários, escriturários, motoristas, balconistas, enfim a todos os escritores novos capixabas.[ 98 ] Em duas páginas reeditaram-se vários textos em prosa de autores novos publicados no Caderno Dois, “numa homenagem à abertura desse suplemento ao escritor novo inédito, a quem nunca negamos valor, mas por quem agora decidimos lutar juntos.[ 99 ] Os autores incluídos na “homenagem” são Bernadette Lyra, João Amorim Coutinho, Carlos Chenier, Álvaro José Silva, Oscar Gama Filho, Lauro Antônio Puppim e José Maria Batista, este último participando com uma reportagem, como “um exemplo de um estilo jornalístico, seguro, preciso e humano, antimanchete e por isso mesmo literário”.[ 100 ]

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NOTAS

[ 77 ] Uma segunda edição revista pelo autor foi lançada em 1973 pela Fundação Cultural do Espírito Santo.
[ 78 ] Ivan Borgo [1995], p. 121-4.
[ 79 ] Antônio Simões dos Reis [1962], p. 6.
[ 80 ] Idem, ibidem.
[ 81 ] Francisco Aurelio Ribeiro [1998], p. 193.
[ 82 ] José Augusto Carvalho [1982].
[ 83 ] Oscar Gama Filho [1990], p. 559.
[ 84 ] José Augusto Carvalho [1982].
[ 85 ] Oscar Gama Filho [1990], p. 559.
[ 86 ] José Augusto Carvalho [1967], p. 74.
[ 87 ] José Augusto Carvalho [1967b].
[ 88 ] Oscar Gama Filho [1991], p. 110.
[ 89 ] Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Ufes [1969].
[ 90 ] Pessanha, Olival Mattos et alii [1972].
[ 91 ] In Maciel de Aguiar [1982], orelha.
[ 92 ] Idem, ibidem.
[ 93 ] Jairo de Britto [1978].
[ 94 ] João Amorim Coutinho [1978].
[ 95 ] Luiz Busatto [1994].
[ 96 ] Francisco Aurelio Ribeiro [1998], p. 64.
[ 97 ] Marien Calixte, [1979], p. 5.
[ 98 ] A Gazeta [1977], edição de 4 de setembro.
[ 99 ] Idem, ibidem.
[ 100 ] Idem, ibidem.

Reinaldo Santos Neves é escritor com vários livros publicados e foi responsável pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Literatura do Espírito Santo, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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