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Renato, poeta, Pacheco

(i) Canto zero

De dezembro de 1946 a fevereiro de 1947 Jorge de Lima deu um curso de extensão universitária na Faculdade Nacional de Filosofia, no Rio.

E daí?

Daí que poderia ter sido um desses milhares de cursos de extensão que se perdem na urina dos tempos, não fosse isto: Renato Pacheco estava lá. E não só estava lá, como tinha dezoito anos e estava doido pra ser poeta. E sei lá o que disse Jorge de Lima naquele tórrido verão carioca, sei lá o que meteu na cabeça daquele jovem de província, que Renato voltou para o Espírito Santo com a corda toda. “E foi então que a poesia se expressou” — escreveu ele, mais tarde, referindo-se àquela experiência. É de crer que se teria expressado com ou sem Jorge de Lima e seu curso de extensão. Mas isso não importa; importa é que foi ali, e então, e assim, que tudo começou, e pronto. Donde se pode concluir, sem risco de dizer besteira, que, porque o início foi assim, e não de outra forma, tudo que veio depois também foi do jeito que foi, e não de forma diferente.

Renato nunca mais esqueceu de se lembrar de Jorge de Lima. É só fuçar a sua obra poética que a gente tropeça em Jorge a três por dois. A Jorge, por exemplo, coube um sexto da dedicatória de Poesia entressonhada, de 1948, primeiro livro de Renato. E em 1953, dois dias após a morte de Jorge, Renato canonizou-o em versos derramados de circunstância:

Mira-Celi sabe, entanto, o quanto de nós mesmos
morreu na matéria, evolou-se, evanesceu-se,
por entre a ascensão gloriosa de
São Jorge de Lima.

Anos e mais anos depois, a presença de Jorge de Lima passa a ser mais direta e mais literária na obra de Renato. É do texto de Invenção de Orfeu que ele vai retirar as epígrafes para a primeira das partes — ou mementos — dos Cantos de Fernão Ferreiro, de 1985, bem como, pra fechar o poema, a palavra Explicit, que também fecha o poema de Jorge (por sinal, velha fórmula medieval de finalizar um texto, pois significa acabou). E no texto mesmo do poema espalha Renato um punhado de referências e alusões, veladas ou não, a Jorge, inclusive esta, logo de tampa, no Canto Zero:

Ah! Se Jorge de Lima soubesse onde está sua Invenção
arrepender-se-ia de ma haver enviado.
Ninguém jamais a lerá naquele castelo antigo,
entre freiras diligentes mas avessas às letras.

Tudo isso, porém, nada mais é que sequelas da influência que o homem e o poeta deixaram em Renato, desde os dias fulgurantes do verão de 1947. O que há, porém, de transcendente, de quase mágico, na relação entre Jorge e Renato, é o paralelo que pode ser traçado entre as trajetórias de um poeta e de outro. Senão vejamos.

O poeta Jorge de Lima, na verdade, são dois poetas completamente antípodas e cronologicamente estanques: onde finda um, começa outro. Pra reduzir tudo à expressão mais simples, o primeiro Jorge dessa dinastia de dois é o poeta menor de “Nega Fulô” e, sim, de “Mira-Celi”; o segundo Jorge é o senhor poeta do Livro de sonetos e, sobretudo, de Invenção de Orfeu. Pouco há, ou quase nada, de um no outro; pode-se dizer que na primeira fase escreve o médico: na segunda, escreve o monstro: um monstro doente, com o poema na cabeça e a morte nas entranhas.

E o poeta Renato Pacheco? Sua primeira fase começa em 1947, com um poema engajado, “Bilhete para Cervantes”, prossegue com mais poemas engajados — a trilogia incluída em Pobres crianças do Brasil —, passa pelo seu primeiro livro, Poesia entressonhada, de 1948, e se encerra em 1968, com Presentes de Natal para três pessoas simples, reunindo poemas escritos entre 1947 e 1967, vinte e um anos de produção magra e esparsa.

Depois de longo hiato de mais de quinze anos, em que Renato não dá nem espirro de poema, retorna o poeta para a sua segunda fase. Só que retorna completamente transmudado. A mudança é complexa. Primeiro, não é mais Renato Pacheco quem ali está, mas um certo ilustre desconhecido, um heteronímico Fernão Ferreiro. Segundo, Renato — ou Fernão — entra na marra com um longo e ambicioso poema épico nos moldes dos Cantos de Ezra Pound. Terceiro, a imaginação furiosa à solta no poema é, creio eu, prima-irmã da do Jorge de Lima de Invenção de Orfeu — poema igualmente épico e igualmente dividido em cantos. Em suma, vem o poeta agora oculto sob nova identidade, encarnando nessa transfiguração uma trindade poética: Fernando Pessoa, Ezra Pound, e Jorge de Lima.

Vamos dar uma bispada d’olhos nessas duas fases da poética de Renato Pacheco.

(ii) Versos condoreiros

A primeira fase de Renato Pacheco como poeta começa em 1947 com o folheto “Bilhete para Cervantes”. É um poema político (descrito em subtítulo como “tentativa de poema social…”, com reticências e tudo), em que o poeta, bem à la Castro Alves, invoca Cervantes a que, general que é, se junte à marcha triunfal pra acordar a bela Espanha adormecida — ou direi, entorpecida? — da época do regime franquista. “Vem antes de Outubro / que Felipe quer matar Espanha!” — diz o poema, e eu, que não sei lhufas de história espanhola, não saberia dizer, se perguntado, que outubro é esse, nem se Felipe é metáfora pra Franco, como tudo indica, nem se o poema deve ser lido à luz da guerra civil de doze anos antes ou se algum evento de 1947 está por trás de toda essa marselhesice. Deve ter feito furor — ainda mais com uma dedicatória como “Aos que tombaram” — entre os membros da Academia Capixaba dos Novos, de que Renato era um dos principais militantes. Depois de quinze anos de linha dura sob a regência de Vargas estavam-se saboreando, no Brasil, os caramelos da democracia, e era poeticamente correto sacudir o dedo no nariz dos tiranos do mundo inteiro e até incomodar o sono secular de justos como Cervantes.

A seguir, no mesmo ano, Renato se alia a outros poetas locais pra uma tentativa de poesia social em grupo: Pobres crianças do Brasil. Renato contribui com três poemas — “Balada da que morreu de fome”, “Bolhas de sabão”, e “Poema dos meninos barrigudos” —, todos eles contendo, aliás, algum quê de qualquer coisa que já anuncia o futuro sociólogo. O primeiro é uma elegia; a que morreu de fome é uma menina de oito anos: “Quero cantar em versos condoreiros / a pobre menina que morreu de fome.” Apesar do tom sentimental, o poema expõe, nas cinco estrofes seguintes, de maneira bastante incisiva, toda a tragédia dos humilhados e ofendidos do Brasil e, visto em retrospecto, da perspectiva da calamidade pública que é o menor abandonado de hoje em dia, tem um travo dolorosamente profético. O segundo é um poema narrativo, construído em cima da dicotomia entre opostos, tão cara às fábulas (é só lembrar do diálogo entre o cachorro magro, mas livre, e o cachorro gordo, mas preso à corrente). Um antropólogo como Geert Banck chamaria, talvez, de “estratégia de sobrevivência da arte lúdica infantil” a maneira como se vira o menino pobre pra fazer suas bolhas de sabão:

O canudo de baga eu “panho” ali no morro,
e o sabão é raspa, que mamãe,
que é lavadeira, ganha na fábrica.

Já “O poema dos meninos barrigudos” contém o que talvez seja uma das primeiras experiências metalinguísticas de Renato Pacheco:

O sino da capela bate…
Bate meu coração também,
e, sem querer, em margem de revista,
olhando coisas e não vendo nada,
escrevo o poema dos meninos barrigudos,
cujos estômagos pulsam em rápidas batidas…

Tudo isso está inserido no que me ocorre chamar de poética da fome e da pobreza. Em Poesia entressonhada, seu primeiro livro solo, de 1948 (ano referencial na trajetória poética de Renato Pacheco, como veremos adiante), Renato volta ao tema com o “Poema do menino marmiteiro”, que interessa mais pelo prólogo e pelo epílogo metalinguísticos. Diz o epílogo:

O poema era este.
Quem leu primeiro foi doutor Guilherme.
Quem lê por último é você, leitor…

Esse final desmonta a seriedade filantrópica do poema por meio de uma brincadeira com o leitor, que tanto pode ser lida como paráfrase — lê melhor quem lê por último — do conhecido provérbio ou remeter à velha parlenda infantil que dizia “o último é mulher do padre”.

Nesse seu primeiro livro Renato faz, sob a forma de “Carta ao Nélio”, uma tentativa de explicar a sua arte poética. “Não posso trair o instante que corre. Que diria o crítico do ano 2000 (ó quanta species!) se eu escrevesse versos medidos e rimados? Que eu, eu que nasci após a primeira guerra, eu que assisti à de 39, eu que talvez assista à terceira guerra, diria que eu não espelhei em meus versos a hora em que vivi…” É por aí que justifica, pura e retoricamente, seus “versos ‘modernos’ —: sem métrica, sem rima, sem ritmo convencional, sem forma, de duvidoso fundo…” Justificativa análoga dão hoje, quando dão, os roqueiros do heavy metal, hardcore & beyond: o mundo é uma merda, façamos uma música que tenha o som e o cheiro dessa merda. Na verdade, Renato estava simplesmente viajando no estribo do bonde de 22, e pisando fundo nas pegadas de Manuel Bandeira. Querem versos mais bandeirosos do que estes, de “Beijo roubado”?:

A moça do Kolynos,
na capa da “Careta”,
ria, ria, ria para o Poeta.

Na virilidade macha do sexo nascente
em seus catorze anos,
o Poeta queria beijar uma mulher.
(Não uma mulher-mãe,
ou uma mulher-irmã ou uma mulher-tia).
Ele queria beijar uma mulher-mulher.

E foi assim que beijou, beijou, beijou
a moça dos dentes alvos com Kolynos
que ria, ria, ria para ele.

(Agora que publicitários com merda na cabeça mudaram o nome de Kolynos pra Sorriso, esse poema seria impossível.)

Nada tem a ver com Bandeira, porém, carinhoso que era com todas as putas do mundo, o poema “Noturno das mulheres quase-nuas”, a começar pela escolha da epígrafe, de um tal Emiliano Perneta, felizmente esquecido hoje: “Sangue e lodo / E podridão, / O mundo torcia-se todo / No meio da imundície da dissolução.” O poema, moralista até mais não mais poder mais, termina assim:

Homens! É tempo: esquecei-vos dos bordéis.
Para todo o sempre, fechai os lupanares!

Releva esse poema o fato de que Renato — lembrem-se — estava com dezenove anos. Aos dezenove anos perdoa-se tudo, até um noturno das mulheres quase-nuas.

Durante os vinte e dois anos seguintes Renato não publica mais nem uma linha de poesia. Está casado, está pai, está sociólogo, está juiz, está nômade por conta das várias comarcas — Conceição da Barra, Mantenópolis, Guaçuí, Domingos Martins — em que está juiz, e está se dedicando a outro gênero, o romance. Em 1964 sai A oferta e o altar, de conteúdo regional, de concepção neo-realista, construído a partir de suas observações de juiz em Conceição da Barra — a Ponta d’Areia do romance. Sua publicação por editora de fora, a GRD, provocou um arrepio nos meios intelectuais da província. O livro foi lançado na Livraria Âncora, já então instalada na ladeira Nestor Gomes, e foi lançado com toda pompa e circunstância, com direito a discurso de intelectual e a olhos verdes de Ivanilda, a jovem gerente da loja.

Em 1968, entretanto, sai em rústica edição mimeografada feita em Guaçuí uma coletânea reunindo poemas escritos entre 1947 e 1967: Presentes de Natal para três pessoas simples. O livro, em certos aspectos, é um replay do primeiro. Outra carta a outro amigo tenta “explicar o inexprimível”: “Resumo, nestas páginas, vinte anos de fidelidade à Poesia”. Resume, também, todos os sumos que deram no caldo que era então a poesia de Renato Pacheco. Menciona o curso de extensão com Jorge de Lima (“foi então que a poesia se expressou”), a influência de Manuel Bandeira, “admiração antiga”, a escolha, com atraso, do “verso livre de 1922”, o pé-atrás em relação às igrejinhas “(exceto o exercício semanal na Academia Capixaba dos Novos — 48/53)”. Descreve-se: “Poeta municipal seja. Poeta de circunstância, com algo de anedótico, em alguns passos, admito. Porém fiel, fidelíssimo, à chegada da Poesia. Onde e quando Ela quer. Não brinco com ela.” E termina com a esperança de alcançar — de novo com atraso, acrescento eu — o bonde da geração de 45: “Chegarei, amigo, a 1945, e vou sair para meus Primeiros poemas. Tenho a vida inteira para recebê-los.”

Que temos nesse livro em que se fecha um ciclo? Em primeiro lugar, um leque de experimentos formais meio à galega, abrangendo cantiga d’amor, cantiga d’amigo, lai, pastorela — de tudo isso apenas unzinho de cada — e mais uma cesta de poemas em prosa. Em segundo lugar, clichês temáticos como a falsa modéstia do poeta (“Roubei a poesia dos céus, / e, infelizmente, não a sei usar.”), a apologia do poeta como espécie rara (“Poeta vê através de mil olhos, / espalhados pelo corpo todo, / e tem um grande coração. / Não há de sofrer ser tão diferente?”), conclamação planetária (“Uni-vos, homens de todas as classes, e haverá lágrimas de alegria em todos os corações.”), mais tentativa de poema social (“Estória de latifundiário”), carta à órfã Caroline Kennedy, homenagens a Jorge de Lima, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, e até um cisco de concretismo no poema “Na clareira da mata”. Uma salada de poemas de circunstância, com algo de anedótico, e, num poema chamado “Busca”, o que poderia ser uma definição, esta, sim, de bater palma, do poeta e da poesia: “A tua busca não cessa? / Onde encontrarás o que dentro de ti está?”

“Chegarei, amigo, a 1945,” diz Renato na apresentação desse livro, “e vou sair para Meus Primeiros poemas. Tenho a vida inteira para recebê-los.” O que ele queria dizer, e não sabia, era: “Chegarei, amigo, a 1984, e vou sair para os Primeiros poemas de Fernão Ferreiro. Tenho um verão inteiro para recebê-los.”

De 1968 a 1983 Renato Pacheco foi romancista, foi contista, foi folclorista, foi o diabo a quatro, menos poeta. Aí fez outro curso de extensão — a leitura dos Cantos de Ezra Pound e, no tórrido verão vitoriense de 1984, assumiu um novo nome e uma nova identidade, pra produzir, de uma assentada, sua obra maior, sua invenção de Orfeu, os Cantos de Fernão Ferreiro.

(iii) Ferreiro e Fernão, sim, por que não?

É o próprio Renato que informa, na nota prévia que incluiu na edição do livro: “Fernão Ferreiro me diz que nasceu em Colatina, ES, às margens do Rio Doce, em 2 de janeiro de 1948.” O ano é mágico: não só é um anagrama (se é que o termo se aplica também a números) do ano então em curso, 1984, o ano apocalíptico de George Orwell, mas também remete ao nascimento do poeta Renato Pacheco como autor de um primeiro livro impresso, já que Poesia entressonhada também é, como vimos, de 1948. Colatina foi escolhida sei lá por quê, talvez porque, sendo verão, e muito quente, a associação com Colatina, essa nossa caldeira do diabo, tenha sido imediata.

Na mesma nota prévia, Renato enumera as preferências do poeta heterônimo, e nos oito nomes citados temos as pistas básicas do mosaico intertextual do poema: dentre os poetas de língua portuguesa estão Camões, Pessoa, Bandeira e Jorge de Lima e, dentre os demais, Homero, Dante, Eliot e Pound.[ * ]

Todo mundo aí está afinado com todo mundo. Homero e Dante representam a tradição clássica que Eliot e Pound tentam reproduzir e perpetuar em suas próprias obras. Camões é o representante português dessa tradição clássica, e Invenção de Orfeu tem vários pontos de ligação com os Lusíadas. Pessoa, é óbvio, está na raiz da condição heteronímica do poema — sem esquecer que sua dupla nacionalidade poética (legitimada por The English Poems) permite-lhe formar um triângulo com Pound e Eliot. Jorge de Lima e Bandeira são os poetas conterrâneos com quem o autor (aí entendido Renato e/ou Fernão) manteve laços de inspiração e de amizade: Bandeira, aliás, mereceu por isso um grande e inesperado abraço: “Mamãe, tão alegre, amando esta vida, / uma vez quase sufocou Manuel Bandeira / com abraço capixaba, no Parque Laje.” (Canto 57)

Ezra Pound é, pra todos os efeitos, o modelo por excelência. Atestam-no o título e a estrutura do poema, bem como toda a carga evocatória da antiguidade clássica, bem de acordo com a linha poundiana. Assim, o suado poema que Renato Pacheco, sob o heterônimo de Fernão Ferreiro, produz por todos os poros nesse verão de 84 é um poema épico dividido em cantos, como os Cantos de Pound, sim, mas também como Invenção de Orfeu, como os Lusíadas, como os poemas de Homero.

E quanto ao heterônimo, Fernão Ferreiro? Haverá explicação pra esse nome? O que há por trás e por dentro dele?

Comecemos pelo sobrenome. Diz Renato, abrindo a nota prévia a que voltamos a recorrer, que Fernão “nasceu Ferreira, mas tantas fez o moço, que exigiu chamar-se Ferreiro, ‘meu vulcânico nome’, ele me disse.” Repete essa informação na entrevista que deu a Oscar Gama Filho para a revista Você, da Ufes, de outubro de 1997: “Aí, eu recebi Fernão Ferreiro. Gozado que ele era Ferreira. Depois, ele mesmo falou: ‘Não, eu sou ferreiro, aquele que trabalha o ferro. O primeiro artesão, que fez as armas, que fez os arados.’ “

Trata-se, portanto, de sobrenome imposto ao criador pela própria criatura ou, em outras palavras, imposto pelo próprio processo gradual de descobrimento da criatura e da obra em construção. O que, exatamente, fez Renato perceber que Fernão era Ferreiro e não Ferreira, só perguntando a ele. Como essa pergunta não me cabe, porque não quero obter respostas mas adivinhá-las, passo a viajar na maionese desse sobrenome.

Ora, o primeiro dos ferreiros, e o mais célebre, foi Vulcano, que era manco e corno (no que nada tem a ver com o nosso Fernão), mas contava entre suas realizações o fato de ter aberto a cabeça de Júpiter pra dar à luz Minerva, a deusa das artes e da sabedoria: Vulcano foi, assim, o parteiro das artes.

Já o dicionário Aurélio é sucinto na definição de ferreiro: “artífice que trabalha em ferro.” Simples e direto, sem opções figuradas ou metafóricas. No entanto, pode-se entender que poeta trabalha a palavra como ferreiro o ferro, sendo uma e outro as suas respectivas matérias-primas. Se considerarmos que martelar tem também o sentido figurado de trabalhar com insistência, é só juntar a isso o suor profuso do ofício do ferreiro e podemos usá-lo com propriedade pra descrever o ofício do poeta que trabalha duro, que sua em bicas, pra produzir o seu texto.

Esse nome vulcânico então nos leva, por associação, à árdua tarefa que foi a composição dos cantos, no verão de 1984, em que o calor de Vitória adquiriu dimensões mitológicas comparáveis ao calor da oficina de Vulcano. Os cantos foram, portanto, obra de ferreiro em oficina de ferreiro: feitos a ferro e fogo, suados por todos os poros, martelados incansavelmente pelo poeta na bigorna da sua própria cabeça dura de poeta.

Além disso, não custa lembrar que Fernão Ferreiro é natural de Colatina (onde nasceu a 2 de janeiro, ou seja, em pleno verão tropical), lugar reconhecidamente quente como uma ferraria: não é por nada que os árabes — é o que se vê no filme Lawrence da Arábia — chamavam a um trecho de deserto especialmente escaldante de “bigorna do sol”. Ferreiro, portanto, pode ser entendido até como uma espécie de gentílico, porque o calor do verão colatinense parece capaz, como o fogo de uma ferraria, de derreter metal.

Podemos ainda, finalmente, visualizar a composição dos cantos como uma erupção vulcânica: uma erupção de dois meses de duração, que produziu como resultado esse mar de lava poética que é o texto do poema. Erupção tanto mais porque a composição dos cantos, projetada pelo poeta pra fazer-se ao longo de dois a nove anos, acabou, misteriosamente, “por pura compulsão [ou convulsão?] interna”, completando-se em dois meses sísmicos.

Ou seja, se temos, no jazz, o estilo hot e o estilo cool, podemos usar essa dicotomia pra definir, sem ponta de dúvida: os Cantos de Fernão Ferreiro são um poema hot. A tanto nos autorizam o sobrenome do autor, seu nascimento em pleno verão num braseiro dos trópicos, a vulcânica composição do poema, também em plena jurisdição do verão, e, por fim, a própria essência do poema, comparável a sucessivos caudais de lava incandescente.

E Fernão, por que Fernão?

Em primeiro lugar, creio que se trata de uma homenagem a Fernando Pessoa, já que Fernão nada mais é do que forma apocopada do nome Fernando. Paga o poeta, assim, e em muito boa moeda, a dívida que contraiu com Pessoa ao optar pelo jogo heteronímico.

Em segundo lugar, o nome Fernão remete imediatamente, pelo que tem de arcaísmo, ao passado épico de Portugal. Remete a Fernão Lopes, o grande cronista da batalha de Aljubarrota e de outras façanhas domésticas dos portugueses da Idade Média, cronista que, na minha opinião mais-que-suspeita, está pau a pau com Jean Froissart, seu contemporâneo trecentista de língua francesa. A sombra desse pioneiro da prosa em português se vislumbra tanto nos Lusíadas como em Invenção de Orfeu, por conta sobretudo da história de Inês de Castro, a que depois de morta foi rainha. Afinal, esse Fernão medievo foi o primeiro, que se saiba, a registrar por escrito a história trágica da rainha morta, que Camões reconta no Canto III dos Lusíadas e Jorge de Lima no canto IX — “Permanência de Inês” — de Invenção de Orfeu, compondo aliás, aí, uma verdadeira paráfrase de Camões, com oitava rima e tudo.

O nome remete ainda, e talvez sobretudo, à aventura marítima portuguesa do início da Idade Moderna, em que os fernandos ainda eram, com frequência, fernões. Remete, nesse caso, a Fernão de Magalhães, que empreendeu a primeira viagem de circunavegação do planeta — tendo morrido antes de completar a viagem, completaram-na em seu nome os seus comandados —, e a Fernão Mendes Pinto, que não só cirandou longa e largamente pelas ásias da vida como registrou tudo que fez e que viu no livro Peregrinação, provavelmente esticando muito, aqui e ali, em benefício da fantasia, a pobre da verdade. (Chamavam a este Münchhausen português, por troça, assim: Fernão, Mentes? Minto.)

Ora, direi, o nosso Fernão Ferreiro terá sido batizado com esse nome anacrônico porque, a exemplo de tantos outros fernões, também ele é, à sua maneira, um navegante, assim como o seu poema também é nau e também é viagem: com o poeta ao leme, o leitor é conduzido a percorrer os mares da memória do poeta, esses mares de sargaços em que se encontram reminiscências pessoais e elementos de teor regional de mistura a todo tipo de aquisição feita ao legado histórico e cultural da humanidade.

(iv) “A história mal-dormida de uma viagem”

Esse livro é portanto a história de uma viagem.

Não é à toa que a epígrafe da primeira parte do poema, tirada de Jorge de Lima (canto I), diz: “Contemos uma história. Mas que história? / A história mal-dormida de uma viagem.” (Mal-dormida por quê? Porque feita de insônias, de sonos inquietos, de sonhos fantásticos, de pesadelos: Fernão Ferreiro é também uma onírica viagem pessoal e universal, como Finnegans Wake, de Joyce.)

O próprio poeta, no canto-sinótico I, define: “Os cantos são uma viagem: Cabral e Ulisses. / Mas não uma viagem de turismo ou de negócios. / Uma autêntica viagem de descobrimento do eu.” Todo o canto 19 trata dessa viagem poética, viagem “sem sair do lugar”, cujo objetivo é a descoberta do mundo e a autodescoberta:

No princípio — Alfa — a divindade.
No fim — Ômega — a divindade.
Agora a divindade inacessível dorme
transubstanciada em sua própria criação
aguardando, paciente, que o tempo passe,
e este mundo se esvaia em direção a quê?

Para saber, viajo sem sair do lugar,
imóvel, sem refúgio, calado ando.
Descubro paisagens, cheiro cores, tateio sons,
ouço imagens de mil gostos, sentidos loucos,
e tenho nove olhos abertos neste corpo-asa.

Miguel Depes Tallon apresentou, no curso de Mestrado em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo, monografia intitulada “A heteronímia em Renato Pacheco”, leitura obrigatória pra quem quer que se interesse pelo assunto. Ali, atribui aos Cantos de Fernão Ferreiro uma correspondência com a “metáfora da navegação”, termo cunhado por Luiza Lobo pra definir toda uma tradição épica que remonta a Homero e Virgílio. Citemos aqui uma parte da citação de Luiza Lobo feita por Miguel Tallon: “a metáfora da navegação épica se faz para dentro da terra e nas superfícies das águas.”

Ora, o roteiro da viagem de Fernão Ferreiro passa, inclusive, no Canto 22, pelo centro da terra: é preciso, como dantes Orfeu e como dantes Dante, descer aos infernos. Fernão Ferreiro se sente purificado nas proximidades do coração ardente do planeta:

O outro mundo, nosso mundo de poluição fica em cima,
aqui tudo é puro, flambado por mil graus celsius,
quem não for homem não venha, que o gato é um bicho,
e no Centro da Terra eu renasço, usando, sem disfarce,
mil máscaras diferentes de tragédia grega.
Com meu coração selado a ozônio,
numa casa sem porta nem janelas,
só vejo o sol quando me viro em água,
só vejo a lua quando o desejo aperta,
e nenhum amor se compra com dinheiro nenhum.
Eis…

Em “Viagem iniciatória”, estudo que fez sobre Viagem ao centro da Terra, de Jules Verne, Marcel Brion estabelece paralelos entre essa aventura e a de Teseu no labirinto minoico e a dos cavaleiros andantes na busca do santo graal. Os personagens de Jules Verne também estão em viagem de auto-descobrimento: “A razão da procura é, como em todas as viagens iniciatórias, o descobrimento do centro, sendo o ‘centro’ o ponto em que se encontram o procurado e aquele que procura e onde, contemplando-se mutuamente, como num espelho, concluem por sua mútua identidade.” Citemos aqui estes versos pertinentes do canto 20 de Fernão Ferreiro:

Astronauta sem nave e sem chave
viajo para dentro de mim mesmo.
E através de milhares de anos-luz,
ingresso no cerne de cada átomo
em busca de saber feito de mim.
[…]
Nessa procura sem-fim de porto-enseada
que fica lá no fundo, bem lá dentro,
e cuja derrota me escapa pois não tenho mapa,
ou nunca tive o portulano, guardado alhures,
e o canto chega ao fim cheio de luz.
Catai, Catai, em ti a música entressonhada,
em ti, esperança e alegria, o nauta chega,
aporta o barco, e em terra recomeça a caminhada,
passo a passo, para um nada, para um tudo.

Por falar em graal, a busca desse cálice sagrado também faz parte do itinerário do poeta, como se lê na abertura do Canto 14:

José d’Arimatéia lançou, em fonte perdida,
o cálice com o sangue, o amor e a vida.
Em vão procuro este perdido olho d’água,
que já secou, já secou faz um milênio.
E eu cheio de dúvidas, cada vez maiores,
prossigo na busca desse rubro graal.

Martelemos mais um pouco o mesmo assunto. Na orelha do livro, Renato Pacheco faz uma descrição sucinta mas efetiva do poema de Fernão Ferreiro: “A composição é caótica: amor e morte, filosofia, ciências e artes, folclore, mitologia, apocalipse, meditação, fluxo do inconsciente, dia-a-dia, uma grande viagem, com um plano, mas quase nunca se percebe que é um épico sem herói, com uma estrutura polifônica final que se assemelha aos últimos e tumultuosos dias deste século XX.” Não grifei lá, mas grifo aqui, fora da citação: uma grande viagem, com um plano.

Grande viagem está se tornando, também, e indevidamente, esta apresentação. Pra encurtá-la, quero destacar três pontos apenas da grande circunavegação do poeta pelos mares interiores de sua própria cabeça: a presença do mistério; o umbigo do poema; e o reencontro dos dois poetas.

(v) “O mistério pede licença e entra.”



Parece ter sido Murilo Mendes o primeiro leitor de Invenção de Orfeu, ainda “datilografado em leves folhas de papel”. O efeito da leitura do poema sobre esse leitor inaugural foi atordoante. Diz Murilo: “Eu queria surpreender o núcleo do livro, sua profunda razão de ser, queria habituar-me à sua temática, sondar sua unidade, ligá-lo ao resto da inumerável obra — em prosa e verso — de Jorge, descobrir o encadeamento de um capítulo a outro, ou então os motivos que informam as páginas autônomas. Desesperava-me de não poder agarrar o monstro com as armas da intuição, da sensibilidade crítica, da lucidez e da estreita afinidade que me liga ao companheiro da selva escura.”

Murilo Mendes estava atônito diante do quê? Diante do mistério do poema. Na verdade, prefiro ver nesse pasmo um pasmo retórico, um pasmo ritual. Que importam o núcleo do livro, sua profunda razão de ser, sua temática e sua unidade? Tudo vã filosofia, a não ser como exercício crítico enriquecedor do próprio mistério do poema.

Porque o mistério de um poema, ao contrário do mistério de um romance de mistério, não está ali pra ser desvendado: o leitor de um poema não é um detetive, nem o poeta um criminoso a ser entregue à polícia. Tampouco poema algum é uma esfinge que exija do leitor: decifra-me, ou devoro-te. O leitor, diante do enigma de um poema, pode experimentar a sua decifração pessoal, única, sua só, ou simplesmente ler o poema como quem lê uma partitura musical ou uma equação algébrica, sem conhecer, nem de música nem de matemática, nem mesmo os rudimentos dos rudimentos.

Assim, o recado do poema ao leitor seria: devora-me, ou te decifro, seja lá o que isso quer dizer; ou, indo menos longe: decifra-me se puderes, ou se quiseres.

Os Cantos de Fernão Ferreiro são também um poema de mistério. Em sua nota prévia, diz Renato Pacheco: “Mas a temática será, tanto quanto possível, nossa, desde que o leitor penetre no mistério.”

Desde que o leitor penetre no mistério, diz o autor, o que não significa, creio eu, que o leitor elucide o mistério, mas sim que o aceite como coisa corriqueira, como parte da mobília do poema: o mistério é uma poltrona onde o leitor pode sentar e sentir-se à vontade. Ou, ao contrário, pra citar verso de Fausto Barbosa, outro dos heterônimos de Renato, o que acontece é que “o mistério pede licença e entra” — pede licença e entra na quotidiana, na corriqueira sala de estar do leitor. Entra pra fazer-lhe sala, pra conversar com ele, pra trocar ideias, dizendo: Trouxe alguns mistérios pra você ver.

Pois o mistério de Fernão Ferreiro não é um bloco monolítico: está sim consubstanciado em milhares de micromistérios e no macromistério do poema em si. Cada verso apresenta um enigma em separado, ou até vários enigmas avulsos, que se conjugam, se entrelaçam, pra constituir o mistério maior do poema, e que podem, ou não, sem prejuízo da leitura, ser decifrados pelo leitor. Vejamos, a título de exemplo, uma parte do Canto 57:

Nessa mesa, comungam, em fotos, meus vivos
e meus mortos mais chegados e queridos.
[…]
Olá, Vellozo amigo, Vellozão, esse outeiro
é mais fácil descer do que subir.

Quem conhece Renato Pacheco sabe da grande amizade que o ligava a Paulo Vellozo, seu concunhado, um dos seus “mortos mais chegados e queridos”. A referência a esse Veloso capixaba se mistura, porém, à citação de Camões (“Olá, Veloso amigo, aquele outeiro / É melhor de descer, que de subir”), que remete a outro Veloso, partícipe das grandes explorações marítimas dos portugueses — que, por incrível que pareça, se chamava Fernão, Fernão Veloso (Canto V, 30-36). Além disso, o Veloso camoniano se particulariza por ser, em poema tão solene, um personagem cômico, que nessa passagem do outeiro revela o gume de fina ironia — como também sempre foi mordaz e irreverente o nosso Paulo, um dos autores, por sinal, daquela coletânea de poemas fesceninos de arrasar quarteirão, Cantáridas. E se lembrarmos o fato de que Thiers Vellozo, o pai de Paulo, era grande admirador dos Lusíadas, de que sabia — e declamava — largos trechos de cor, expande-se ainda mais a cadeia de significações permitida — mas não exigida — por esses dois simples e despretensiosos versos do poema.

O mistério de Fernão Ferreiro é construído de muitas associações e significações desse tipo. Elementos extraídos da dimensão doméstica e regional do autor se projetam a outra dimensão histórica ou literária pra abrir um leque de possibilidades de leitura poética. É o que ocorre, também, no Canto 5, na reconstituição da lenda de Midas, cujo segredo — o de que o rei tinha orelhas de burro — era conhecido apenas do seu barbeiro, que é logo identificado com Manduquinha, conhecido barbeiro da Vitória dos anos 50. Essa interpenetração de tempos e espaços, criando uma dimensão mítica especial, é uma das principais características do mistério de Fernão Ferreiro.

(vi) “Ando por esse Espírito Santo, canto por canto”

Oscar Gama Filho, na apresentação dos Cantos, já faz as devidas definições: “Este é um poema épico regional: o centro do mundo é o Espírito Santo (o ponto comum a todos os conjuntos) e o centro do Espírito Santo é Fernão Ferreiro (Canto 30), já que é a partir desses dois centros que o poeta lança seu olhar pelos arredores constituídos pelo resto do planeta.”

Os habitantes da ilha da Páscoa, perdida no meio do Oceano Pacífico, chamavam a sua terra de umbigo do mundo. Nos Cantos de Fernão Ferreiro, o umbigo do mundo é, inegavelmente, a ilha metafórica do Espírito Santo, cercada pelo oceano cultural de toda a humanidade.

Trata-se, portanto, de uma obra umbilical. Através de um cordão umbilical este poema espírito-santense se liga ao ventre maternal da história e da cultura mundiais de que se nutre. O que se infiltra assim no texto do poema é todo um conjunto de elementos intertextuais, paródias, paráfrases, citações, alusões, referências, associações, personagens históricos e literários, livros, filmes, quadros, peças musicais de todos os tipos, enfim, uma algaravia intertextual que a própria estrutura de enumeração caótica do poema legitima e consolida. Em contraponto, o poeta rebate com um tesouro de elementos peculiares à sua província e à sua experiência pessoal, como bem assinala Oscar Gama Filho: “De fato, muito mais do que mitologias, gírias, lugares, cultura popular e termos regionais do mundo e do Brasil, o autor cita principalmente as coisas capixabas que tão bem conhece: bares, cantigas, rezas, folclore, praias, portos, rios, pássaros, cidades, favelas, artesãos, igrejas, artistas, vultos históricos, diversões, ruas, cemitérios, lendas, etc.”

Quero crer, portanto, que o poema de Fernão Ferreiro é por excelência um poema espírito-santense. Toda a experiência histórica e cultural da humanidade apenas legitima a nossa experiência de vida local. Tudo converge pro umbigo do mundo, através do qual a experiência humana é digerida e reciclada. Fernão Ferreiro coloca o Espírito Santo dentro da mitologia do planeta. Ou melhor: se apropria da mitologia do planeta, e a devolve recheada com a nossa própria mitologia insular. Fernão Ferreiro faz da sua ilha a razão de ser, em termos poéticos, da humanidade inteira.

Assim, essa cor local aparece no poema não só nas centenas de referências de todo tipo que Oscar Gama Filho nomeia mas até na presença sutil de certos termos da linguagem regional que servem como signos de identidade específica. Exemplos disso são o substantivo cachoeiro, nos Cantos 32 (“o poema, qual cachoeiro, ruge na cabeça,”) e 46 (“meus cachoeiros continuam a cachoeirar,”) e o verso “sol e sal, badejos na moqueca, com coentro, salsa não”, do Canto 40, em que o signo regional não é a moqueca, mas sim o coentro, tempero tipicamente capixaba, muito usado em nossa culinária, pra desespero de paulistas e de outros tantos irmãos estrangeiros.

Nesse particular, Fernão Ferreiro fez um poema de amor à terra natal. Não admira. Renato Pacheco ama esta terra e, por amor a ela, sobre ela escreve. “Eu assumi, há 50 anos,” diz ele, na entrevista a Oscar Gama Filho, “o compromisso de escrever sobre o Espírito Santo, sentindo a falta que havia aqui de escritores que procurassem fazer trabalhos de ficção mais profundos e abrangentes sobre a nossa terra. Então, minha visão é só o Espírito Santo, basicamente o Espírito Santo.” Esse amor, que permeia toda a sua obra, inclusive os Cantos, é explicitado no fecho do Canto-sinótico II:

Ando por esse Espírito Santo, canto por canto,
embora invente uma fictícia ilha, que nem Jorge,
é esta terra que eu amo, esta terra que é minha.
Vitória: eis-me chegado, enfim, a Trapisona.

Também Miguel Tallon, na monografia já citada, chama a atenção pra esse aspecto dos Cantos: “Metáfora maior ainda e subjacente à da navegação é a da ilha. Na verdade, os Cantos de Fernão Ferreiro são uma longa viagem em busca da ilha ideal, como em Invenção de Orfeu e mais precisamente na Utopia, de Thomas Morus. O que o poeta procura é a ilha sem inflação, sem corrupção, sem empresários avarentos em busca de seus lucros, sem ditadura, um Xangrilá. E essa ilha, que o poeta inventa ‘que nem Jorge’, é a sua Vitória.”

(vii) O reencontro dos dois poetas

“Poeta municipal seja. Poeta de circunstância, com algo de anedótico, em alguns passos, admito.” Assim Renato Pacheco defende a sua condição de poeta em carta ao amigo Alfredo Augusto Rebelo Leite, na apresentação de Presentes de Natal para três pessoas simples. Esse poeta municipal está presente, também, no Canto 38 de Fernão Ferreiro:

O poeta municipal na madrugada indormida
sonha com poesia? Não, pensa no dinheiro a receber
com o qual construirá uma piscina no quintal.

O verso dá o que pensar. O poeta não é municipal tão somente por valorizar poeticamente as coisas da sua província e elevá-las a uma dimensão universal. O poeta é municipal porque, em muitos aspectos, continua sendo o mesmíssimo poeta da primeira fase, aquele antigo autor de, entre outros poemas, “Balada da que morreu de fome”. Sim, se desconsiderarmos as diferenças de concepção poética e de dimensão estrutural, o Renato Pacheco dos Cantos de Fernão Ferreiro continua sendo o mesmo poeta da primeira fase, o poeta engajado, o “poeta de circunstância, com algo de anedótico”. Muito do que vimos nos poemas da primeira fase reaparece nos Cantos, embora tenham passado por um processo de transfiguração, de redimensionalização, que é o mesmo sofrido pelo poeta em si.

O poeta engajado, por exemplo, continua presente em versos como: “e a pobre velha senhora envergonhada, / recolhendo, do chão, sobras de feira.” (Canto 15) e “De novo Gilles de Rais chega a meu quintal, / e vejo legiões de homens e mulheres andando em desertão / com fome e sede, clamando por sobejos, / enquanto estolas de ouro se perdem no cassino.” (Canto 24) e “Com doze anos, prenhe, barriga empinada, / sandália de dedo, coque na cabeça, / seu orgulho é tanto que ofusca o sol brilhante.” (Canto 25) e “Poeta algum ainda cantou quanto comove / a nave descendo no Aeroporto de Goiabeiras, / nem a força hercúlea do menino vendendo picolé.” (Canto 31)

Esse pequeno vendedor de picolé será irmão do menino marmiteiro da primeira fase. Sim, o socialista Renato continua envolvido com os pequenos e grandes humilhados e ofendidos da sociedade, mas a forma como os incorpora ao seu poema é totalmente diferente, porque agora a intenção poética está visivelmente acima de qualquer denúncia social.

Há indícios de outro tipo que também revelam a presença, nos Cantos, do poeta da primeira fase. O desejo em floração, que aparece, por exemplo, em “Praia”, de 1965 — “Areia grossa e onda forte. / Eulália, diabo negro de maiô vermelho, / com enfeite—: uma borboleta amarela.” — retorna no Canto 36 de Fernão Ferreiro, também em contexto praiano: “Ângelas, Solanges, Eulálias todas pretas, / com maiôs vermelhos e enfeites amarelos, / correm, mancas, pela praia do Filó, no Jucu: / uma lembrança insiste em me ferir.” e no Canto 42: “Belfegor que me enganou travestido de mulata”.

E, quem diria, até alguma coisa do “Noturno das mulheres quase-nuas” (“E as mulheres quase-nuas / mostram as pernas variceladas, / como objetos, à venda, pelas ruas.”) reaparece, recontextualizado, nos Cantos: “A catadora de lixo, sem saber, apenas intuindo, / dá um grand jeté en avant e suas pernas variceladas / se abrem no ar, na extensão maior: suspense na terra, / […]” (Canto 47)

Quanto ao anedótico, que Renato Pacheco aprendeu com Manuel Bandeira, pululam os exemplos no texto do longo poema. Basta citar, quase aleatoriamente, folheando o texto de trás pra frente, a colisão entre o caminhão do delegado e o jipe do juiz (Canto 68), o apelido dado pelo povo ao Monumento às Bandeiras (Canto 65), a surpresa do menino nordestino ao ver pela primeira vez um temporal (Canto 62), as tiradas do agrônomo paulista (Canto 60), a prisão e soltura de Bertrand Russell (Canto 56), enfim, inumeráveis. Às vezes o anedótico é mesmo intertextual, tirado explicitamente de outro texto, como a história do tratador de animais e dos macacos do Canto 59: Renato cita Chan Tzu através de leitura feita em texto de Thomas Merton.

Os versos de circunstância podem ser encontrados igualmente. O que é o roubo da Belina (Canto 46, abrindo o segundo memento) senão versos de circunstância? Da mesma forma o é o início do Canto 68, que fala do incêndio de uma favela. Outro exemplo seria o bife na chapa do canto defectivo, o 29:

De novo Vivaldi, Veneza em decadência
vale menos que o chiar do bife na chapa.
São 10 hs, não é cedo para almoçarmos?

Que tem direito a variante logo a seguir:

Vivaldi, Veneza, bife chia, e nessa variante sem RAP,
ouço o som peculiar do bujão de gás batendo no chão.

Por tudo isso, creio que temos, em Cantos de Fernão Ferreiro, um poema épico regional, pra usar a expressão de Oscar Gama Filho, com algo de poesia de circunstância e muito de poesia anedótica, o que revela a persistência, no poeta maduro, dos cacoetes e tendências adquiridos desde o início do aprendizado poético, ainda na adolescência.



(viii) “Agora tudo é novo, e ao longe nos conduz”

Os Cantos de Fernão Ferreiro se encerram por um canto penúltimo, com direito a antelóquio, canto e cólofon — cólofon que serve também para o poema como um todo. “O penúltimo canto […] registra encontro simbólico entre animus e anima, encerrando-se toda dialética”, diz o autor na orelha do livro. É a descrição das núpcias do poeta com a Bem-Amada, narrado em estilo algo bíblico, sobretudo na seqüência de versos paralelísticos que integra a parte do canto. Ora, a Bem-Amada é a Morte, encarnada na figura de uma bela mulher, o que remete ao filme All That Jazz, de Bob Fosse, assim como todo o texto que descreve o encontro, embora contido, tem algo a ver com o final dionisíaco daquele filme, em que se celebra a chegada da Morte no estilo apoteótico das grandes produções musicais americanas.

Se o penúltimo canto é o encontro com a Morte, o último, que não se canta, mas vive-se, seria a experiência da morte em si, a transformação final:

Este é o penúltimo canto. O último
não se canta, vive-se, naquele instante único
em que o ser sozinho, tal qual nasceu,
pisa no abismo, devolve ao todo a pouca energia
que lhe foi emprestada, que lhe moveu durante anos
as células, as vontades, o coração e demais vísceras,
as glândulas, os ossos, a carne, a pele, o farol dos olhos,
os outros sentidos, os motores da vida, o cérebro,
e entra no país do estado incerto, na terra do crepúsculo,
no reino do não mais, do nunca mais, nunca mais.

Parece-me, porém, que há outro final, mais sutil, nos Cantos de Fernão Ferreiro. É um final que remete ao início do poema, tornando-o um poema circular. O próprio poeta anuncia essa circularidade, no Canto I, em imagem que roça de leve, inclusive, na teoria da relatividade de Einstein:

Corri, à volta do profundo fosso,
buscava a mim mesmo, perdido em cismas,
e, ao chegar à ponte, encontrei-me pelas costas.

Esse encontro do poeta consigo próprio (que pode ser lido, ainda, como encontro de Fernão Ferreiro com o poeta municipal) está também implícito no final do Canto 71:

É quase o fim: o poeta farricoco tira as vestes,
entrega a trombeta ao zelador da Irmandade,
e, com fome e sede, nu como nasceu,
caminha para o ponto Ômega,
dá entrevista e ouve um canto tão triste, o seu.

Ouve um canto tão triste, o seu. Fecha-se o círculo. Começa tudo de novo: everything old is new again: agora tudo é novo e ao longe nos conduz.

(ix) Epílogo

Além de Fernão Ferreiro, Renato Pacheco criou dois outros heterônimos, o jovem Fausto Barbosa, nascido em Santa Leopoldina em 1960, e o velho Antão Reis, nascido em Vila Velha em 1887. Os poemas desses dois poetas menores foram incluídos no volume Cantos de Fernão Ferreiro e outros poemas heterônimos, de 1985. À época, Barbosa andava em Berkeley, fazendo seu doutoramento em Literatura na Universidade da Califórnia, enquanto o velho Reis, quase centenário, morador em conjunto do BNH, aguardava filosoficamente a morte, que, atenciosa que é, não deve tê-lo deixado esperar muito.

Todos esses heterônimos — e mais o poeta ortônimo, o próprio Renato Pacheco — são minuciosamente estudados na monografia, já citada, de Miguel Depes Tallon, A heteronímia em Renato Pacheco, a que remeto o leitor interessado.

Depois da publicação dos Cantos, Renato não abandonou totalmente a prática da poesia. Continuou produzindo uns que outros poemas e publicando-os de forma avulsa, aqui e ali. Na coletânea Torta Capixaba II, de 1989, publicou o que chamou de “Últimos poemas”, entendendo-se o adjetivo não como finais mas como mais recentes. Em edições do boletim da Academia Espírito-santense de Letras (abril de 1989, julho de 1989, e novembro de 1990), também fez incluir alguns poemas de Fausto Barbosa e outros sob seu próprio nome. Em dois folhetos natalinos, que circularam entre os amigos em dezembro de 1992 e dezembro de 1993, com o título “Europa revisitada”, Renato publicou poemas escritos em 1990, por ocasião de viagem à Europa. Na edição de novembro de 1997 da revista Você, volta Fernão Ferreiro, ressurrecto depois de doze anos de silêncio, a dar o ar de sua graça, com o poema “Baton Rouge”. Finalmente, em dezembro de 1997, Fausto Barbosa teve sua vez, publicando, na Coleção Almeida Cousin, do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, um livrinho todo seu, intitulado Castelo de Yama, com subtítulo que pode ser lido como “desagravo” da criatura contra o criador: “Vida e Morte de Renato Pacheco, Poeta Menor”. Inéditos, com possibilidade de saírem ainda este ano pelo IHGES, estão os Poemas da Montanha, que Renato escreveu, em sua capacidade oficial, em Santa Rita do Sapucaí, MG.

Entretanto, em muitos desses poemas pós-Fernão Ferreiro, quer assinados por Renato Pacheco, quer por Fausto Barbosa, encontra-se, nitidamente, a impressão digital do grande poeta épico. Fernão Ferreiro não se encerrou nos Cantos, mas assombra tudo e qualquer coisa que Renato Pacheco escreva em forma de verso. Fernão Ferreiro veio pra ficar: o crítico do ano 2000 terá, certamente, muito que dizer a seu respeito.

[ * ] Escreve Renato Pacheco na sua nota prévia aos Cantos de Fernão Ferreiro: “A leitura do Poema Graciano de Reinaldo Santos Neves e dos Cantares de Ezra Pound desencadeou seu [de Fernão] processo criativo dos Cantos…” Seria muito idiota da minha parte deixar de mencionar, por modéstia, um crédito tão generoso, e aproveito pra fazer meus os versos do próprio autor: “é honra muita, / é muita honra para um pobre marquês.” (Canto 55)

[Apresentação do livro Porto final, antologia poética de Renato Pacheco, Edições Galo Branco, Rio de Janeiro, 1998. Reprodução autorizada pelo autor.]

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Reinaldo Santos Neves é escritor com vários livros publicados e foi responsável pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Literatura do Espírito Santo, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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