Voltar às postagens

Senhor Kurtz, morto (romance)

“Insulamania é uma aflição das pessoas que acham as ilhas irresistíveis: os que nascem insulamaníacos são descendentes dos atlantes, e é pela perdida Atlântida que seu subconsciente clama.” [Lawrence Durrell, Reflexões sobre uma Vênus marinha]

“Nós somos os homens ocos
Os homens empalhados
Uns nos outros amparados
O elmo cheio de nada. Ai de nós!”
[T. S. Eliot, “Os homens ocos”]

“O destino de um homem é o da criatura a quem, quando é gerada, lhe entregam um livro selado, escrito antes de sua concepção.Ele traz esse livro em seu coração até morrer e, enquanto está submetido ao Tempo, não sabe nada de seu conteúdo.” [Abdul’l – Madsad Madschd Sana’l]



ABERTURA: FUNERAL NO MAR

Motim e fúria sempre se completam.

De Vitória, levaram-me para outro calabouço, escuro e fétido. Pressenti que estava na antiga Cadeia Pública da Intendência dos Reis Magos. Descobri, ainda, que na cela havia outro prisioneiro.

Quando meus olhos se acostumaram à semi-escuridão, tateando, explorei as paredes úmidas de minha prisão. Do fundo, à entrada bloqueada de um velho túnel, que dava fuga aos jesuítas, para o mar, vinham fracos gemidos.

Forçando a vista, cheguei a um monte de palha, em que jazia um velho homem, alto e esquálido.

Era o Senhor Kurtz, meu padrinho.

Só que não era mais o ditador de Santa Maria do Atlântico.

Não, não era ele. Fora ele grandalhão, gordo, faces coradas, homem risonho, feliz com a vida, senhor de si e satisfeito com os píncaros a que chegara.

Era um Kurtz quixotesco, em seu leito de morte, só pele e ossos. Tentei falar-lhe mas não deu sinal de vida.

Em seu delírio, dizia:

— Quero morrer, quero morrer.

E, como o herói de Conrad:

— Horror, horror…

Três dias depois embarcaram, a ele e a mim, no amplo estuário do rio, no pequeno navio de guerra apreendido aos portugueses. Íamos para o Brasil, exilado Kurtz, o Libertador, e eu como médico encarregado de mantê-lo vivo, durante a travessia.

— Não queremos mártires, — disse-me o Coronel Cascudo.

A saída foi dramática: caía sobre o porto um daqueles temporais tropicais de verão, de que todos, até pescadores e marinheiros, tínhamos medo, e a ressaca do mar levantava grandes ondas sobre o molhe. A idéia era que houvesse sigilo total, mas, numa venda próxima, bebedores habituais olhavam para aquele cortejo quase fúnebre. Um menino que brincava na enxurrada, vendo aquele aparato bélico, perfilou-se e bateu continência para o Senhor Kurtz, trôpego, porém vestido com o uniforme de gala de almirante.

Sim, o Senhor Kurtz sempre fora mestre de lancha, da travessia de Vitória para Vila Velha, mas, depois de vencedor, os bajuladores elevaram-no ao almirantado.

Na viagem tormentosa, enjoou o tempo todo. Perto dos Abrolhos, desmaiou, pulso zero. Eu já avisara ao comandante do torpedeiro, o antigo pescador José Lira, que meu padrinho não resistiria a uma travessia, com tempo tão ruim.

Assim aconteceu.

Fiz tudo para trazê-lo, de novo, à vida.

Consegui por breve instante. Ele falou e estava totalmente lúcido. Mas também, retrato fiel do Senhor Kurtz, sua alma estava louca, ele se via todo poderoso em Santa Maria do Atlântico. Suas últimas palavras foram enigmáticas:

— A força, a força está bem no fundo…

Desmaiou outra vez e não mais voltou a si. Faleceu meia hora depois.

Envolvido na bandeira rosa e branca, sem as honras de um inexistente caixão, tendo como marcha fúnebre o hino que começa “surge ao longe a estrela prometida”, o Senhor Kurtz foi lançado ao mar, “única sepultura digna de um almirante santamarinense”.

Gaivotas giravam em torno do navio, quiquiricando da fraqueza humana, tudo que nasce no devido tempo deve afundar-se na perdição.

Cismarento, na amurada do barco, olho para leste, para os lados de minha ilha natal, minha Ítaca, e, prisioneiro dos revolucionários, continuo liamado à eternidade, ao Senhor Kurtz, por fios invisíveis.

Pelo título que dei a estas memórias, pode parecer que vou falar do Senhor Kurtz, sua vida e obra. Não esperem isto. Vou contar fatos que ocorreram comigo, muitos ligados a meu padrinho, é verdade, mas tudo que passou é brisa, é vento, é água passada, não move moinho.



1. MÉDICO EM PRINCESA



— Então, meu rapaz, que tal ser um médico afamado, nesta nova república?

Olhei para o Libertador, promovido a almirante de Santa Maria do Atlântico, meu protetor e, dizem as más línguas, meu pai.

Às escondidas só o chamava de Senhor Kurtz, pois ele me parecia uma reencarnação da personagem de Conrad, imponente em seus quase dois metros, embriagado pelo poder, louco que não se reconhecia como tal.

Apertei-lhe, efusivamente, a mão que me era estendida, de sua cadeira de imperador, sobre um estrado, nos fundos do salão nobre do palácio, que fora, um dia, residência dos jesuítas.

Constâncio Alves fora mestre de lancha, que ligava a pequena ilha de Vitória à ilha maior de Santa Maria do Atlântico. Quando da Revolução Gloriosa contra os portugueses, com seus marinheiros tomara o único navio de guerra lusitano, atracado no porto. Vitoriosa a guerra de independência, fora ele aclamado presidente perpétuo, mais que um rei de uma ilha que vivia, predominantemente, da exportação do café, sujeita às oscilações das bolsas do hemisfério norte.

Aprendi a amá-lo quando, menino, me mandou estudar no Rio de Janeiro, e o batizei, definitivamente, de Mr. Kurtz, uma personagem conradiana, numa alegre tertúlia de estudantes metidos a literatos, tomando chope no Bar Lucas, posto 6, praia de Copacabana, Rio. Discutia-se sobre os escritores de fala inglesa, nascidos fora da Inglaterra, e sobre Kurtz, personagem central de The Heart of Darkness, obra de Conrad, que era polonês, e Roberto Mazzini, um dos componentes do grupo, disse que ele era “aquele cidadão isolado na África, cumprindo uma missão comercial, que num determinado momento se torna um visionário e, na realidade, enlouquece”.

Igualzinho a meu padrinho, natural da Vila Nova de Gaia, perto do Porto, que veio vender vinhos em Santa Maria do Atlântico, apaixonou-se pelo mar e acabou, missionário político, querendo fazer, de nossa atrasada ilha, país do primeiro mundo.

Mandou que me sentasse e, mudando o tom de voz, falando baixo, em conciliábulo, disse:

— Vou nomear você ministro da Saúde…

Tremi nas bases. O suor frio veio-me às mãos. Recém-formado, que diria a esquerda oposicionista? Recusei-me. Disse-lhe:

— Preciso pelo menos de um ano de prática, no interior.

— Embora o Dr. Faria não me esteja agradando, concordo com você por um ano. Enquanto isto, vou nomeá-lo chefe do Centro de Saúde de Princesa, prédio recém-inaugurado por mim, com todo o conforto moderno.

Aceitei, e nem desfiz as malas que estavam no Hotel Europa. Desci as escadarias do palácio e dirigi-me à rodoviária, aos fundos do parque Moscoso.

No guichê dois havia uma placa:

Viação Princesa Ltda.
Linha Vitória-Princesa
via
Dois Irmãos e Mundo Novo

Os ônibus têm um motorista e um trocador, verdadeiro fac-totum: limpa o vidro, põe água no radiador, coloca as malas no bagageiro, vende passagens intermediárias, acomoda galinhas no veículo, enfim, se vira.

Os passageiros fomos convidados a empurrar o carro, num atoleiro, à entrada de Dois Irmãos, e houve demorada espera para baldeação em Mundo Novo. Motorista muito hábil, porém muito corredor. As paradas para remuniciar de água o radiador eram freqüentes, à beira de qualquer córrego. Estrada de chão, poeirenta, após as chuvas de verão.

Em Jabaquara, ponto de café, Alfeu, o motorista, que me conhecia de menino, falou:

— Vamos tomar um café com leite e canela, doutor? É ótimo para dissolver a poeira da estrada…

Aceitei. Ele aproveitou e disse:

— Este carro está uma merda. Vai para a oficina para colocar uma nova carroceria e um motor diesel. Ele é um beberrão de gasolina, e foi feito a partir de um caminhão velho. Mas a empresa já encomendou, do Brasil, dois ônibus Alfa-Romeo. Aí sim é que o senhor vai ver…

Dos trinta e dois passageiros iniciais, quase a metade ficou em Mundo Novo, estudantes em férias e moradores da capital que vinham para a festa de São Sebastião, conhecida por seu folclore, jogos e bailes, além, é claro, da famosa procissão.

Enquanto o ônibus corria, mais andava do que corria, ia relembrando dez anos de Rio de Janeiro. Meu padrinho custeou meus estudos, desde o chamado curso científico, que fiz no Santo Inácio, famoso colégio de jesuítas. Durante a guerra de libertação de Santa Maria a mesada não veio e me virei dando plantão em clínicas particulares, passando por médico sem ainda o ser, o que foi muito bom para minha formação profissional. Sou acordado de meu devaneio pelas fofocas dos passageiros:

— A Boite Vagalume tem um cassino clandestino que funciona abertamente, embora haja uma proibição do Libertador…

— Heleninha, da alta sociedade, casou-se grávida de dois meses, de vestido de noiva, véu e grinalda. Uma vergonha, minha filha, um escândalo.

— O padre não quer que a feiticeira de Iguape trabalhe. Ela cura todo mundo e só faz caridade…

— O Prezotti, em Princesa, com o jogo de bicho está multimilionário.

— Está tudo ruim. Inflação danada. Estou com saudade dos portugueses…

— A Maria Vinhas encontrou o marido na cama com a Luizinha Soledade, — disse a mesma mulher fofoqueira que denunciara, instantes antes, o casamento da moça grávida.

O tempo virou. O vento nordeste amainou e passou a soprar um frio vento do sul. O que tiver de ser será.

A fofoqueira continua:

— O Dr. Alegria, vindo da boite, deu uma batida num poste. Fraturou a perna de uma acompanhante, que não era a mulher dele…

Caio no sono.

Em Safra, a direção sul-norte é substituída pela oeste-leste. Nova parada de quase uma hora, ao todo cinco horas de viagem para percorrer escassos cem quilômetros.

O novo trecho é de asfalto, estão fazendo uma experiência com um tratamento superficial mais barato, máquinas na pista que só complicam a viagem. Vamos indo ao largo do rio Grande do Norte, olarias, plantações de milho, serrarias, e um posto Shell pós-revolucionário, novinho, pertencente ao dono da Viação Princesa. Deve ser o tal braço avançado do capitalismo internacional que chega atrás de nosso petróleo, recém-descoberto.

Transpusemos o rio Amarelos, um filete d’água que deveria ser chamado de riacho ou córrego.

O ônibus pára na praça Jerônimo Ribeiro, nome de um político local, que foi governador geral no tempo do domínio português.

Hospedo-me no Hotel Toledo, quarto 32. Logo me espanto com as gentilezas dos donos, um casal de portugueses, Dona Elza e Seu Edgar, que se desculpam pela pobreza das instalações. A notícia de que sou afilhado do Libertador por certo chegou, aqui, antes de mim, e se espalhará, sem dúvida, como fogo em capim seco.

Diária, casa e comida, 14 dinheiros, ou 14d como se escreve agora, cada dinheiro valendo 25 centavos do dólar americano. Como vou receber 2000d por mês, nada mal. Vou tomar banho. O hotel só tem quartos, com o banheiro ao fundo do corredor. Passo um susto porque esqueço de todo o meu dinheiro, um mês pela frente, no banheiro. Corro lá, com o coração aos pulos, e minha carteira está intacta onde a deixei. Ou pouca gente ou honesta gente…

Amanhã, vida nova. Vou substituir o Dr. Batalha, o primeiro sanitarista da região, que se aposentou. Mas vou pedir-lhe que continue no Centro de Saúde até que me adapte à chefia.

Bons sonhos me embalem. Vou dormir. Um alto-falante canta:

Bota a sua cabecinha no meu ombro e chora…

2. SOBRE PRINCESA E ADJACÊNCIAS



Se excluirmos os documentos contemporâneos ao descobrimento da ilha, em 1460, assim como as notícias de viajantes e cartas de jesuítas, o relato mais antigo sobre o Rio Grande do Norte foi feito pelo Desembargador Cláudio Tomás de Navarro no Itinerário que fez, pela costa, em 1808, do Rio Grande do Norte ao Rio Grande do Sul, na Ilha de Santa Maria do Atlântico, por ordem do Príncipe Regente Dom João”, republicado na Revista do Instituto Histórico de Princesa, tomo VII, Princesa, 1931, que encontrei na mesa de recepção do Hotel Toledo e passei a ler, enquanto esperava o jantar.

Diz o magistrado: “Depois de andar quatro léguas, cheguei ao Rio Grande do Norte, próximo à povoação de Maraí. Nas margens do mesmo rio estão situados seis engenhos grandes de fabricar açúcar. As mesmas margens são fertilíssimas. Por este rio se sobe até as minas do rio Pardo, que, em outro tempo, foram muito freqüentadas, e nelas havia grande povoação e igreja; o ouro dali tirado era de 24 quilates, mas os moradores desampararam-se pela incursão do gentio bárbaro; no entanto hoje se principiam a retrabalhar com bastante concorrência. O dito Rio Grande do Norte admite embarcações até sumacas pequenas, que sobem até o Quartel e Porto do Cachoeiro.”

Fica aí o relato. Porém em 1817, em sua Memória estatística, o Governador Geral Alberto Rubim é mais preciso, como vi na Revista do mesmo Instituto, tomo V, Princesa, 1927:

“O primeiro cachoeiro desse rio tem bom porto e dista seis léguas da vila de Maraí. Determinei fosse reativado ali o quartel antes existente, na parte sul, guarnecido com 1 inferior e 15 soldados do Corpo de Pedestres, que, em homenagem a S. A. a Princesa D. Ana, denominei Quartel da Princesa. As margens do rio, até o quartel, estão povoadas de grandes fazendas, com nove engenhos reais e uma engenhoca coberta de sapê, denominados Areia, Cardoso, Cotia, Boa-Vista, Barra Seca, Passo-Grande, Paineiras e São Gregório da Ribeira. As belas margens do Rio Grande do Norte seriam incultas como outras muitas em vários rios desta ilha e capitania de Santa Maria do Atlântico, se as invasões dos selvagens guanchos não constrangessem aos habitantes das Minas do Rio Pardo, estabelecidos num afluente do referido rio, os quais foram obrigados a fugir, estabelecendo-se a meia légua distante do mar, trazendo para ali a imagem de Nossa Senhora do Amparo, que colocaram no dito lugar, levantando-se nova Matriz, começando, por conseqüência, a atual povoação, há pouco mais de 30 anos.”

E conclui que no dia 28 de junho de 1815 chegou ao Quartel o alferes João do Monte, com uma tropa de 12 bestas, carregadas de toucinho, carne seca e tabaco de fumo, e inaugurou uma venda nos morros acima do porto fluvial, erigindo-se matriz em honra de São Pedro…”

Em poucos minutos me inteirei dos episódios primeiros da vida urbana de Princesa: começamos com um quartel, um pequeno empório comercial de escambo, e hoje somos uma bela intendência, com 85 mil moradores, nas zonas urbana e rural.

Passou um barulhento carro elétrico à porta do hotel e Seu Edgar, jocosamente, me informa que há dois veículos, o Upa e o Cupa, segundo a versão do povo. E jocosamente conclui com a blague local:

— Quando o Upa sobe o Cupa desce.

3. APRESENTO-ME AO CENTRO DE SAÚDE



A primeira refeição matutina do hotel oferece ao hóspede café, leite, pão e manteiga, espartana, sem as frutas, doces, queijos, embutidos, sucos de frutas, de outros hotéis que frequentei.

Saio para a rua ensolarada.

Um rapaz diz-me que procura uma égua que fugiu do pasto e que o pai vai brigar muito se não atrelá-la logo logo à carroça.

Resolvo brincar com ele:

— Por que você mesmo não puxa a carroça?

Um homem alto e forte me recrimina:

— Moço, o senhor não está vendo o rapaz está aflito?

Desculpo-me de minha impensada brincadeira e sigo meu caminho.

O Centro de Saúde fica pouco além da estação da Estrada de Ferro. Encontro à porta o preto alto que me chamou a atenção no caso da égua do menino: é o Zacarias Emiliano da Silva, servente da repartição. Quando descobre que eu sou o novo chefe, porta-se com a dignidade de um príncipe africano e eu o tranquilizo:

— Você tinha absoluta razão na porta do hotel. Eu me excedi ao brincar com a desgraça alheia.

Entro para falar com o antigo chefe, recentemente aposentado. É o Dr. Batalha, médico português, magrinho e velho, que me recebe cheio de atenções e salamaleques. Depois dos cumprimentos de praxe, saímos para conhecer o estabelecimento: prédio novo, construído depois da independência. Sedia o distrito sanitário norte, e dispõe de auditório, biblioteca (não instalada) e salas especializadas, inclusive ambulatórios.

Naquela hora da manhã há pouco movimento.

— À tarde, a coisa esquenta, — diz-me o ex-chefe.

No laboratório sou apresentado a duas enfermeiras laboratoristas, Augusta Ramos e Lourdes Santos, jovens e falantes. Fizeram curso na Faculdade de Higiene, em São Paulo, no Brasil. Ganham 600 dinheiros por mês, mas disseram que as promessas eram maiores. Gostam do serviço e o realizam com dedicação. Nas horas de folga estudam português e matemática, segundo disseram, para fazer concurso de fiscal de rendas, carreira mais promissora.

O Centro de Saúde tem, também, uma horta, cuidada pelo gigante Zacarias Emiliano. Há alface, couve, cebolinha, salsa e surpreendentemente cravos de defunto. Mandam a produção para a Santa Casa ou, sorrateiramente, levam para casa.

Minha jornada de trabalho, na chefia, é de seis horas. Decidi aumentá-la para oito horas, quatro de manhã, quatro à tarde. Terei que fazer, também, uma visita periódica ao Asilo dos Velhos e ministrar aulas de educação sanitária, nas escolas locais.

À falta de médicos fui dar atendimento no ambulatório. Não me esqueço de minha primeira paciente, Isabel Almeida, de 35 anos, gravidez de risco. Faço os exames de rotina, dou-lhe um vidrinho de amostra grátis de um multivitamínico e sais minerais, e anoto seus dados. É uma cabocla forte; casou-se aos 15 anos com um italiano, das levas de imigrantes que chegaram 20 anos atrás e ainda usa sua aliança de latão. O homem morreu, picado de cobra. Deixou-lhe um filho, débil mental, deficiente como se diz agora, ou lelé da cuca em seu linguajar. Aos nove anos, manifesta os primeiros sintomas e ela deixou a roça para interná-lo aqui.

— Apresentei os papéis naquela delegacia de Polícia ali, — e aponta o velho prédio que se vê, pela janela aberta, do outro lado da rua. — Fiquei em casa de D. Maria Cavatti, tia de meu marido. Trataram-me muito bem. Toda comida que eles comiam eu comia também.

E, sem intervalo, olhando para mim, fixamente:

— Passei a lavar, no rio, a roupa deles. E fazia, em casa, de um tudo. Mais tarde a filha de D. Maria maldou que eu havia roubado uma pulseira dela e fui morar no porão de um sírio, meu filho no Asilo, e eu lavadeira de muita gente boa. Nunca perdi nem estraguei nenhuma peça de roupa. Meu filho, já com 20 anos, fugiu do Asilo, e o turco disse: Não quero este maluco aqui. Foi uma injustiça. Deram pontapés no pobre coitado, que fugiu e anda por aí ao léu. Dei queixa ao Sargento Ceripes, mas que é que a gente pode fazer com quem tem dinheiro? Fui morar no meio do lixo, no sobrado arruinado ao lado do campo de futebol. Fiquei três meses, até que um moço com mulher e quatro filhos chegou e disse que era o dono, e fui para a rua, de novo. Aí o jeito foi me juntar com um rapaz bem mais moço que eu, e deu no que deu… Assim como o senhor me vê, seu doutor, estou lavando três roupas, uma por 35 e duas por 20. O ruim é que moro num barraco, no morro, e lavo roupa cá em baixo, no valão. Quero ver se trago meu filho para casa, ele é bonzinho. Quero ver se tenho esse novo filho legalzinho… Meu filho doido é bem mandado, não é malcriado, não conhece dinheiro. Fala tudo ligado: Um avião caiu Vitória fez buraco. Mandei fazer duas camisas de zefir para ele, no primeiro dia vendeu as duas, e continua andando, por aí, sem camisa…

Não sei como recomendar repouso a essa Isabel Almeida, tão carente. Para melhorar-lhe a alimentação, autorizo o Zacarias a dar-lhe verduras duas vezes por semana. Digo a ela:

— Faça uma sopa com todas as verduras…

Terminei meu expediente matutino e ia sair para almoçar, quando o dentista do Centro, Dr. Duílio Rocha, me convida para ir, à noite, à Sociedade Vicentina. Católico não sou, tornei-me agnóstico no Rio de Janeiro, mas acedo ao convite, sempre é bom conhecer as pessoas do lugar.

— Então, colega, à noite eu o pegarei no hotel.

Estranhei o tratamento de colega, dado por um dentista, mas me lembrei que ele se formara em Portugal, onde os dentistas são médicos especializados.



4. DE CONFERÊNCIA VICENTINA E OUTRAS CONFRARIAS MENOS PIAS

Desço a ladeira e chego à beirada do rio. Admiro-me de ver, em meio às pedras do leito, dezenas de mulheres. Algumas lavam roupa, outras quebram pedras.

Quase todas são moças, com seus filhos pequenos ao lado, em pequenas cabanas improvisadas com galhos e folhas de árvores.

Os raios do sol reverberam em cima do filete de água que passa entre as pedras do antes caudaloso Rio Grande do Norte. Quando há enchentes é desespero dos moradores ribeirinhos.

Na volta para o hotel, paro na Pharmacia e Drogaria Popular, um grande estabelecimento comercial, deve haver muito doente por aqui é o que penso, móveis de jacarandá lavrados, e todos aqueles vidros e potes antigos, com nomes em latim, que fazem a delícia dos antiquários do continente.

O farmacêutico se apresenta:

— Meu nome é Bonesi, e o senhor, por certo, é o novo médico.

Confirmo e ele diz, de supetão:

— Por que o senhor não vem trabalhar também aqui? Seu colega que se aposentou clinicava aqui. Eu cedo o consultório gratuitamente, é sempre bom ter um facultativo por perto.

— Digo que vou pensar. O farmacêutico faz confidências:

— Herdei esta farmácia de um tio materno, o Francisco Thines, conhecido como Dr. Chiquinho. Ele era tudo aqui: farmacêutico, médico, juiz, conselheiro do povo. Depois que ficou viúvo deu para freqüentar as mulheres damas e, como diz o povo, “velho apaixonado, reumatismo esquecido”. Teve um derrame e foi tratado, com desvelo, por uma cria da casa, com a qual acabou se casando. Eu fiz o curso em Niterói, no Brasil. Quando voltei o Dr. Chiquinho estava nas últimas, a Carmem, viúva, me vendeu a meação dele, e aqui estou faz quinze anos… Olha, doutor, não deixe de estudar minha proposta, é vantajosa para as duas partes.

— Almoço bem mais farto que o café da manhã: feijão, arroz, carne bovina, salada de alface e tomates, chuchu, macarrão, bolinhos de carne, pão, manteiga, de sobremesa banana e goiabada, e cafezinho.

— Fiz uma sesta, depois escrevi uma longa carta a meu padrinho, relatando-lhe minhas primeiras impressões sobre Princesa.

— À tarde voltei ao Centro de Saúde e, de fato, o movimento era bem maior, porém nada de matar um cristão.

— Às 19 horas em ponto, o Dr. Duílio me pegou num velho Ford 28. Vamos à Conferência Vicentina, reunião de católicos que fazem caridade.

— A sede ficava em um belo sobrado pequeno e elegante, no lado norte da cidade. Enquanto esperávamos, o dentista me conta que fora convidado para apresentar uma pesquisa sobre fluoração em próximo Congresso Internacional a reunir-se no Hotel Quitandinha, em Petrópolis, Brasil. Incentivo-o a que vá.

— Descubro que o prédio é a Casa Paroquial, e o padre cede o salão para as reuniões vicentinas. O presidente é o Sr. Adão, fiscal de rendas. Seis são os demais membros. A todos sou apresentado. Há muita cordialidade entre eles. A reunião dura uma hora. Inicialmente lê-se um trecho da Imitação de Cristo:

— Jesus Cristo – Filho, não te peses se vires honrar e engrandecer a outros, e tu seres desprezado e abatido. Levanta teu coração a mim que estou no Céu, e não te entristecerás de que os homens te desprezem na terra.

A alma – Senhor, em grande cegueira vivemos, e a vaidade facilmente nos engana…

(Proféticas palavras para mim!)

Depois há a prestação de contas, recolhem-se os donativos e fazem-se exames de consciência: tantos terços, tantas missas, tantas comunhões. Ao final as orações, inclusive um Padre Nosso a mim dedicado, a ovelha desgarrada.

A paróquia, dizem-me, é dividida em lado norte e sul, sendo a divisa no rio. Ao sul, comandam os padres agostinianos, de origem espanhola, há mais de um século na região. Seculares exercem sua função no lado norte e, atualmente, o Padre Murilo quer que Princesa seja elevada a bispado.

À saída, vejo movimento inusitado de povo à porta de um açougue, ainda aberto àquela hora. Curioso, vou ver do que se trata. É uma venda de carne de porco, a preços abaixo da tabela oficial. O açougueiro, descubro com satisfação, é o Walter Moreira, meu condiscípulo no Ginásio Santa Maria, vinte anos atrás. Depois do reconhecimento me diz:

— Aqui o açougueiro é marchante ao mesmo tempo, de modo que não precisa roubar no peso. Só tenho medo dos seus fiscais do Centro de Saúde…

Convida-me para dar uma volta com ele, tão logo feche o açougue, o que me leva a despedir-me do Dr. Duílio, que parece não apreciar o meu novo companheiro.

Dez minutos depois, Moreira fechas as portas de aço do açougue, a mercadoria fora toda vendida , e me diz, rindo:

— Vamos, que a noite é uma criança!…

Descemos até a praça Jerônimo Ribeiro, e pegamos um carro de praça.

— Para onde, Seu Walter? — pergunta o motorista.

— Ora, Bebeto, para o de sempre, z-o-zo; n-a-na, zona.

Subimos, em marcha lenta, para o Alto do Aquidabã, uma ladeira sem fim. Lá em cima, um grande portão. Através da grade e nas folhagens do jardim eu via centenas de borboletas douradas esvoaçando sobre o gramado, em torno de uma fonte de luz.

— A moça que nos atende diz:

— Só podem entrar, se for para trabalhar.

Walter confirma e diz que vai falar com a Belinha, a dona.

Um rapaz que eu conheço de vista, de Vitória, sai abotoando a braguilha. Pergunta-me se sou “turco”.

Há quatro mulheres na sala, muito jovens, talvez menores, e uma delas fala:

— O “Gostosão” não é mais o meu amigo… — Aponta para o açougueiro: — Vou me amigar para sempre com o senhor, não é, Seu Waltinho?…

E ri, mostrando dentes falhados.

Um jovem preto, efeminado, nos serve uma cerveja e, num pratinho, traz uns pedacinhos de queijo.

Walter dança com a desdentada três vezes, ao som de uma eletrola. Eu fico só observando. As outras moças dançam, desanimadas, entre si.

Walter traz a moça com quem dançou para a mesa e conta uma anedota:

— Depois de um concerto de harpa, só com músicas de Schubert e Beethoven, o concertista ofereceu um número, a pedido da platéia. Um coronelão da roça se levantou e pediu para ele tocar 17 e 700, música popular muito em voga na época.

Risos gerais, mas quem mais ri é o próprio Walter. Aviso-lhe que tenho que voltar, pois amanhã é dia de branco e tenho que trabalhar cedo. Ele já está com a féria no bolso, eu sou funcionário do governo de nossa nova república.

Saímos. Na volta Walter me diz:

— Eu canto toda a mulher que me é apresentada. Sessenta por cento caem na cantada.

O motorista íntimo se vira:

— É por isso que o senhor tem o apelido de Come-quieto…

Walter diz:

— Recolha-se a sua insignificância, ô Bebeto.

Walter perto do hotel me convida para outras noitadas. Prometo que sim, que vou.

— Quando chego ao hotel o trem noturno passa, ofegante, pela ponte. Agora já é outro dia, terei poucas horas de sono.

5. A LOUCA DE PRINCESA



Combino com a diretora de Educação da Intendência de Princesa, D. Zaira de Oliveira Braga, o cronograma de minhas palestras de educação sanitária nas escolas.

Subo uma escada íngreme, de um prédio ainda não concluído. Lá parece que minha fama de protegido do Libertador já chegou. A moça que me atende se desfaz em gentilezas, oferece-me café e água gelada e pede que eu espere um instantinho, pois a diretora está em visita a obras nos colégios.

Enquanto aguardo, volto ao Rio, cinco a seis anos atrás. Estou em minha pensão, na rua do Catete, onde um telefonema me convoca para ir ao encontro do Sr. Kurtz, no Hotel OK. Pego um bonde e salto na Cinelândia.

A guerra contra Portugal estava no auge. Kurtz sentiu-se agravado porque o governador geral português dera em cima da amante dele Kurtz, Maria Pia, teúda e manteúda na rua do Rosário. Kurtz contratou três marinheiros que deram uma sova de pau no governador. Em seguida, organizou um comício, na praça 8 de Setembro, contra os lusitanos. Ele, que nunca se metera em política, mestre de lancha que era, se levantou como líder incontestável contra um opressor de quatrocentos anos.

Os grandes proprietários das fazendas de café logo lhe deram apoio. Os comerciantes, em sua maioria portugueses, eram contra a emancipação, alegando — não sem certa razão — que a ilha logo seria anexada ao Brasil. Diziam mais que com a independência os ex-escravos, quase metade da população, tomariam o poder. Em virtude do analfabetismo do povo e de sua falta de consciência política, a participação da massa foi mínima, salvo a de um pequeno, porém bravo, Partido Comunista, que reunia meia dúzia de intelectuais locais.

A resignação e apatia foram sacudidas e vencidas pelo Sr. Kurtz, com sua vibrante fala no comício da praça 8. O povo se exaltou e partiu para o quebra-quebra das casas comerciais portuguesas; depredaram as Lojas Unidas, a Escolar, de Seu Gonçalves, um homem bom, e até o Bar e Café Estrela, de Seu Manoel Ribeiro, um amigo dos estudantes, a quem fiava até cafezinho com leite.

O governador geral fugiu, o Sr. Kurtz tomou o navio de guerra português que estava no porto — um caça-minas ou contra-torpedeiro, não me lembro bem —, e jogou os marinheiros fiéis à Metrópole no mar.

O entusiasmo foi geral, parecia até que Santa Maria tinha ganho o Campeonato Mundial de Futebol, coisa impossível de acontecer.

Em treze dias, delegações tripartites — o Brasil entrou como moderador — iniciaram as gestões para a Independência, e Salazar não teve outra alternativa senão libertar-nos do “jugo português”.

Kurtz estava no Rio para as negociações. Disse-me:

— Queriam que as plenárias fossem em Lisboa, mas lá na santa terrinha não vou eu.

E fez-me a proposta inusitada

— Quero que você, meu rapaz, seja meu secretário, você conhece mais esta grande cidade do que eu…

Perdi muitas aulas, durante meio mês, mas não podia deixar de colaborar com meu padrinho e com meu país.

Meu devaneio terminou com a chegada da diretora, uma cabocla baixinha de óculos com lentes muito grossas. O assunto que poderia ter sido resolvido em quinze minutos arrastou-se por mais de duas horas, considerando-se que eu era um interlocutor privilegiado, o que se dizia ali poderia (e deveria) chegar à Capital.

D. Zaira é típica professora rural, solteirona, de meia-idade, fala pelos cotovelos. Difícil acompanhá-la, o Ministério estava ajudando pouco; ela estava em choque com todas as professoras relapsas; uma servente de Grupo Escolar mandou-me para o inferno, e eu a exemplei, na hora, com dois tabefes. Os políticos são contra mim pois estou alfabetizando o povo, muitos fazendeiros dizem que vão dar terras para escolas, mas na hora de assinar a escritura, pernas para que te quero, somem; uma professora matou três meses de aulas e depois contratou alunos mais adiantados para fazerem provas pelos seus, descobri e botei-a na rua; resultado, mais uma inimiga; em outra escola, aos domingos, havia jogos de azar, patrocinados por um chefão local, fui lá e joguei tudo, dados, roletas, fichas, dinheiro, joguei tudo no rio, montei um cassino para os peixes…

Ela ri da própria piada, e continua:

— Eu tenho feito muita gente progredir, muita gente me traiu; um inspetor de alunos ficou tuberculoso, eu fiz um bando precatório pelas ruas, arrecadei quase 3.000 dinheiros, ele foi para o sanatório, ficou bom e hoje é o chefe da oposição contra mim; meu trabalho aqui já foi reportagem no Courier da Unesco, isto é o que dá raiva ao povinho daqui, dizem que sou louca, que bom, eu sou a louca de Princesa, mas ainda não rasgo dinheiro, mas eu sou é vaidosa do meu trabalho. Tenho ou não tenho razão?

Confirmo com a cabeça, em enfático sim. Ela não me dá folga:

— Meu irmão, o maior poeta daqui, o Altivo, conhece?, é humilde, não liga para a glória, e ninguém lhe dá o merecido valor; é uma ciumada de dar dó, os alunos ouvem os fuxicos e me contam, eu sei de tudo; quando eu construí aquelas trinta casinhas — a assistência social também está a meu cargo — aquelas na parte baixa do Aquidabã, o senhor sabe, não?, queriam incendiá-las com querosene e disseram que eu roubei 30.000 dinheiros, que foi o montante gasto no aterro, aquilo era um brejal sem fim, louca eu posso ser, mas ladra, nunca… O que eu quero, doutor, é a melhoria do zé-povinho, o senhor vai me ajudar, não?

Faço-lhe as maiores juras de aliança perpétua, marco meus dias de palestras, e me escafedo, mais que depressa. Ufa!

6. JANTAR FESTIVO COM DIREITO A FLERTE



Lá no Centro de Saúde, Lourdinha Santos me diz que, na última edição da revista O Cruzeiro, o repórter David Nasser propõe a anexação de Santa Maria do Atlântico ao Brasil.

— Que absurdo, — objetei. — Temos que ser nacionalistas. Podemos ter vida própria, inda mais agora que descobrimos petróleo em São Mateus e Linhares.

A conversa morre por aí, mas sinto que a enfermeira tem uma vontade secreta de tornar-se brasileira, ao menos carioca.

Sobre minha mesa um convite para ir a um jantar festivo do International Club, associação de que não ouvira nunca falar, mas parece que tem filiais em todo o mundo ocidental. Resolvo ir.

Meu colega médico do Centro, Rage Miguel, me pergunta à queima-roupa:

— Jader, você é o braço avançado do Libertador em Princesa?

Olho-o, espantado, e ele diz que eu fui visto tirando fotografias da cidade, de cima da caixa d’água do Hotel Toledo. Rio, muito, e tento explicar-me.

— Trabalho para o governo, meu caro, e no que isto implica fidelidade ao Libertador, eu sou fiel. Mas não sou espião de ninguém. Apenas gosto de fotografar, e a vista do rio lá de cima é espetacular. Falta do que falar dos eternos fofoqueiros, que há em toda cidade pequena.

Se ele acreditou, ou não, fica por conta dele. Depois acrescenta:

— Sou secretário do International e fui eu quem deixou o convite aí. Você vai?

Confirmei minha ida.

Nesse meio tempo fomos chamados à portaria: um velho chegou num caminhão pois ficou sob um trem, na área de exposição de gado. O neto que o acompanha informa que a esposa do avô sofre do coração, pede remédio para ela também.

O velho perdeu as pernas e não podemos tratar dele aqui. Mando que o levem, imediatamente, ao Hospital da Santa Casa. Um doente, que está num banco, comenta:

— Este não escapa…

— Escapa, sim, — digo-lhe. — A cirurgia está muito eficiente, agora.

À tarde, soube que o velho perdera tanto sangue que morrera.

O servente me diz que já pediu ao Dr. Batalha, inúmeras vezes, uma mangueira para aguar a horta, e um pouco de salitre do Chile e farinha de osso para adubar a terra vermelha. O chefe sempre dizia que não havia verba, e fazia ouvidos de mercador. Tudo por causa de míseros dez dinheiros. Dou-lhe uma nota do meu bolso, e encerro o assunto.

Já notei, olhando pelas janelas do consultório, que as pessoas humildes que examinamos, quando saem, mostram as receitas e os remédios dados ao Zacarias Emiliano, para que ele dê sua opinião. Quando ele veta o tratamento, soube que os pacientes jogam os remédios no latão da esquina e vão tratar-se nos “centros” da linha do trem. Hei de averiguar isso direitinho.

Quando vou para o almoço, paro numa banca de jornais para comprar a revista a que a enfermeira se referira. Há o jornal local, e três livrinhos de cordel sobre a Cruz da Ana, uma milagreira do interior, Chico Arranca-mundo, um ex-soldado que se tornou bandido rural, e A visita que o Libertador fez ao céu. Compro este último para mandar a meu padrinho, glorificado até na poesia popular local.

Uma velha pergunta:

— Tem livro de sonhos?

— Não, vamos receber semana que vem. Pergunto-lhe, enxerido:

— Com que a senhora sonhou?

Resposta pronta:

— Sonhei que um moço vestido de branco, com uma bolsinha, ia me dar cinco dinheiros…

Que coisa! Duas facadas na mesma hora. Será que tenho jeito de bobo. Dou-lhe dois dinheiros e vou embora, depressa, antes que outro pedinte apareça.

À noite, coloco, pela primeira vez, desde que cheguei, paletó e gravata, e vou à posse da nova diretoria do International Club. Chego meia hora antes, no Caçadores Carnavalesco, onde se reúnem os “internacionalistas”. Um mestre de cerimônias me convida a entrar.

Digo-lhe quem sou, recebe-me com as mostras de apreço a que me tenho acostumado e lhe pergunto:

— No Rio, conheci do Rotary e o Lions. É do mesmo tipo, um clube de serviço?

— É um pouco diferente. A sede é em Des Moines…

— No Novo México?

— Não, em Iowa, mas a força maior é em Chicago. Temos um jantar por mês, e nosso objetivo é incentivar a correspondência entre os jovens do mundo inteiro, considerando que a guerra se faz, primeiramente, na mente dos homens. Damos endereços, papel de carta, envelopes, selos do correio, só aqui de Princesa temos cerca de trezentos jovens correspondentes.

Depois somos interrompidos pela chegada do juiz de Direito, Dr. Miranda Filho, recém-promovido a ouvidor, na Capital.

— Não vou transferir-me para Vitória, vou encerrar a carreira aqui mesmo. Aqui tenho casa, aqui meus filhos estudam de graça. Trabalho desde os doze anos, comecei como escrevente de cartório, cinqüenta anos atrás.

Chega o presidente, Dr. Mário Serrano, advogado na cidade. Depois chega o Sr. Orlando Andrade, gerente da agência local do Banco do Estado. Logo que me foi apresentado convida-me para abrir uma conta com ele, pois meus vencimentos, assim, serão creditados em conta. Mas reclama:

— Os políticos daqui querem minha transferência. Vou deixar a gerência e passar a simples funcionário, depois de onze anos. Procure saber o que fiz aqui. Criei o Jardim da Infância, o primeiro da ilha. Modernizei, com ajuda de amigos, o campo de pouso do Aero Clube. Fizemos as obras na marra, sem nenhum dispêndio para os cofres públicos.

Chegam muitos outros sócios, alguns acompanhados por suas esposas. E chega, com uma senhora, uma mocinha linda que me sorri, longos cabelos pretos caindo sobre os ombros desnudos. A velha senhora justifica a ausência do marido, cujo nome não percebo, que está muito gripado.

Flertamos todo o tempo do jantar, eu e ela a poucos passos um do outro. Da salada com rocambole ao arroz com costeleta de porco, flertamos deslavadamente.

O Sr. Serrano dá posse ao novo presidente, Professor Jair Rezende. Este pede que todos os presentes, de pé, cantem o hino nacional. Durante a execução causou hilaridade o modo tonitruante com que as palavras iniciais — “Surge ao longe a estrela prometida…” — foram entoadas pelo Rage Miguel.

A meu lado, um cidadão que não identifico diz que está matando os gatos vadios com bolas — bolos envenenados de carne — e, por azar, matou um cão pastor alemão de um vizinho, de pedigree, valiosíssimo; o assunto está na justiça.

O dentista Rocha — sempre no meu pé — fez uma saudação a mim dizendo que eu sou a estrela prometida da medicina de Santa Maria.

O gerente do Banco do Estado faz a palestra do dia, falando do deflorestamento, secas, dos anos de vacas magras que certamente virão, opinando que nossas chuvas vêm do Pólo Sul e não são de trovoadas. Conclui pela descrença no progresso de nosso país, se não se cuidar da educação do povo, nosso primeiro problema, como diz a comadre D. Zaira Braga. E conclui:

— Até a mocidade só está pensando no presente, não tem espírito revolucionário.

Meu vizinho me cutuca e comenta:

— Todo esse pessimismo, porque ele vai voltar a soldado raso. Até ontem eram só elogios a nossa terra e nossa gente…

Quando termina a reunião o Dr. Serrano fala-me sobre a nova sede do Caçadores Carnavalescos, pois a atual tem pequena pista de dança, não tem área esportiva, as pessoas ficam sem conforto. Uma senhora diz que o jeito é comprar um terreno fora do centro da cidade e vender títulos patrimoniais. A moça com quem flertei, e por quem continuo me derretendo todo, lembra que o pai dela, no loteamento que está fazendo, vai reservar 15.000m2 para dar aos Caçadores, de que ele é um dos fundadores.

Minha timidez me impede de perguntar, a ela ou a alguém mais, o nome, e quando me volto, ela já desapareceu no meio dos convidados que descem a ladeira.

Meu coração bateu mais forte esta noite.



7. CONHEÇO ALTIVO DE OLIVEIRA BRAGA

Dona Stella Soares, chefe das enfermeiras do Centro de Saúde, me fala da epidemia de tifo de 1951: “Em fevereiro, calor ardente, o pessoal estava brincando o Carnaval, na praia, e nós aqui vacinando. Entre profissionais e voluntários éramos dezoito; fomos de casa em casa. Só com a fluoração da água, controlada pelo Dr. Duílio, é que o tifo, que era endêmico, diminuiu. Mas os esgotos precários são, ainda, um problema.”

Pergunto-lhe quando será feita nova campanha de vacinação e ela me diz que depende do governo central. Anoto para cuidar do assunto.

Depois do jantar, que repete o almoço, vou fazer o “footing” na avenida Princesa, que o povo, por motivos óbvios, teima em chamar de Beira-rio. Estou ficando “habitué”.

A avenida desemboca na praça Jerônimo Ribeiro. À noite, é interditada ao tráfego de veículos. O passeio público começa por volta das dezenove horas, depois da missa vespertina. Há uma centena de pessoas sentadas nos bancos das calçadas. Um dos bancos é chamado “dos velhos” e só idosos sentam-se nele.

Debaixo de uma árvore conversam o farmacêutico Bonesi e um senhor atarracado que não conheço. Dou-lhes boas noites, e me junto à palestra. Falam mal do Banco do Estado, que cobra juros muito altos. Encerrado este assunto, o Bonesi, pedindo desculpas porque não o fez antes, apresenta-me ao Sr. Regis, que vem a ser um dos quatro intendentes recém-eleitos. Continua o político:

— A seca tem arrasado o pequeno produtor. De sessenta quilos de café, com broca, eles recebem, na máquina, dois. A Argentina compra nosso café inferior. Por que exigir tipo? O nosso é a metade do preço do exportado pelo Brasil. O governo central deveria ter um corpo consultivo, apolítico. A maioria dos governantes não entende de lavoura. Um fiscal do café foi demitido como ladrão, mas a Justiça o absolveu. Quando o Furtado, ministro da Agricultura, esteve aqui chamaram-me para falar com ele. Eu não queria vir, sou homem da roça. Mas tanta foi a insistência que eu vim e o Furtado, que é advogado e de lavoura neca, me disse, no palanque, que o mal dos lavradores é que eles são muito calados. Mais tarde, na Cooperativa, depois da demagogia de muitos, eu fui convidado a falar. Pedi desculpas ao falar sentado, pois levara uma chifrada de boi na perna, que só agora está sarando. — Levanta a perna da calça e mostra o curativo. — Disse: “Vossa Excelência acha que os lavradores não falam. Eu vou falar. Há três tipos de lavradores: há os profissionais liberais que têm fazendas só para usufruírem dos benefícios fiscais e serem chamados de “fazendeiros”; há os fazendeiros que moram na cidade, têm parceiros e mesmo que haja seca recebem a sua parte, meia ou Terça (confesso que estou entre eles). Porém há os pequenos lavradores que são os mais sacrificados, pegam na enxada e estão morrendo à míngua. Estes é que merecem ser auxiliados, e nem ficha cadastral da Coletoria conseguem tirar. O Banco do Estado deve prorrogar seus contratos de empréstimos (a multidão vibrava e batia palmas). Como intendente estou careca de fazer ofícios e ninguém responde…” Fui o mais aplaudido. Quando encerrou a reunião o ministro me chamou à parte e disse que eu era um autêntico líder, e que ia tomar em consideração o meu apelo em favor dos pequenos proprietários. Foi para Vitória e se esqueceu da promessa… Eu fiquei com raiva porque, apesar de intendente e cooperado com 30% das quotas, ferido na perna, não me convidaram para a mesa. Mas o senhor pode crer, fui o mais cumprimentado, porque só eu falei o que o pessoal queria ouvir.

Pediu licença, tinha um compromisso, e saiu apressado.

— O compromisso dele, — disse-me o Bonesi, é o pôquer na casa do Caiado. Este homem está podre de rico. Só de restituição de uma taxa do café que a Corte Maior aboliu ele recebeu mais de cem mil dinheiros.

Então me perguntou:

— Como é, doutor, pensou na minha proposta? Quer trabalhar em minha farmácia? Uma hora por dia, se tanto… Ora que, como diz o povo, “casa quanto caiba, dinheiro quanto haja”.

— Estou primeiro conhecendo a cidade, aceitando os compromissos regimentais, depois lhe dou uma resposta. Quase certo que sim.

O farmacêutico abriu um grande sorriso. E, sem transição:

— Vem chegando o Altivo Braga, jornalista e poeta. Vou apresentá-lo ao senhor.

O Braga, ainda jovem, acabara de levantar-se do banco dos velhos.

— Aí é que estão as melhores notícias, — disse rindo.

É baixinho, moreno, careca. Se tivesse uma peruca seria igualzinho à irmã, a diretora de Educação, que o povo chama de “louca de Princesa”. Já foi tabelião e escrivão, substituindo o pai, mas ficava na varanda do fundo do cartório, pescando, com uma vara sobre o rio, enquanto o jovem Edmar Baião cuidava dos clientes. Depois um juiz, o Dr. Lemos, exigiu que ele, como titular, fosse ao fórum todos os dias, de paletó e gravata. Ele demitiu-se ou aposentou-se, não sei, montou uma estação de rádio e dirige o jornal Tribuna do Norte , que é oficial.

Conversamos trivialidades, ele fala do jogo de bicho, invenção brasileira que é uma praga aqui, e da dança negra do jongo. Convida-me para ir à Rádio e prometo ir no dia seguinte.

— É bom, amanhã temos programa de calouros… São nove da noite e a avenida rapidamente se esvazia. Todos têm compromissos, ou simplesmente vão para casa, dormir. Eu também.

8. FRACASSO COMO PROFESSOR, MAS ME TORNO PLANTONISTA DE HOSPITAL

Dois filhos da terra, os irmãos Barbosa, ex-alunos do Seminário do Caraça, em Minas Gerais, Brasil, voltaram, trinta anos atrás, para Princesa, incapacitados que foram para o sacerdócio.

Com apoio de um dos homens mais ricos do lugar, Hermolan Cunha Melo, fundaram o Liceu Filomático de Princesa, escola de nível médio, que o povo aqui chama unicamente de Liceu, glória do ensino local. É uma escola particular, porém fiscalizada pelo governo.

Este Hermolan, segundo me contam, era bancário e caçador amador. Um domingo subira aos morros circundantes à cidade, em busca de pacas e tatus, cotias não. Seu perdigueiro acuou um tatu, e quando o buraco foi escavado, Hermolan descobriu uma incalculável fortuna em pedras preciosas. Deixou o banco oficial, fundou um particular, criou uma imobiliária, manda e desmanda, seu dedo toca em todo o corpo social da cidade, é o que se chama “dono do pedaço”.

Por ter brigado com o velhíssimo Padre Miguel, já falecido, bandeou-se para os batistas, da Missão Norte-americana, contra a vontade da mulher, uma carola, e ingressou na Maçonaria. Mais tarde, na guerra da independência, em 1949, ficou do lado certo, foi preso pelos portugueses e, vitoriosos os revolucionários, voltou a mandar na cidade.

Pois eu estou no hotel bem na fresca, dando uma olhada lúbrica para as coxas da quarteira que varre o corredor, três pardais começam a brigar, na janela, disputando um pedacinho de pão. Pardal, praga portuguesa. Enxoto-os e recebo a visita do professor Barbosa, ex-padre, também convertido ao culto evangélico para agradar ao Hermolan. Vem ele convidar-me para dar aulas de Biologia no Liceu.

A moça desce as escadas, bamboleando, dançarina de brinquedo alemão, de corda. Meu primeiro impulso é recusar o convite, perco o fio da conversa, estou com sono — “onde se guarda toda a esperança, e de onde saem todos os desejos”— que diabo este velho está querendo dizer, elogiando-me sem me conhecer?

Prometo ir ao Liceu, amanhã, mas antes tenho de passar na Rádio, “antro de desocupados” segundo me diz o professor Barbosa.

Deixo de ir à Rádio e me dirijo, dia seguinte, ao Liceu, um casarão no outro lado do rio. Acabam de inaugurar uma piscina, única da cidade e orgulho dos irmãos Barbosa. Mas como foi construída com verba do governo, é aberta ao público, e uma professora diz que a piscina e inútil pois “é uma mistura de gentinha que ninguém aguenta!”

Quando entro, um aluno grita:

— Precisamos treinar futebol, o campeonato vem aí…

E sai correndo para um campinho no fundo da escola.

As salas são amplas. Na de ginástica, senhoras da sociedade se exercitam. Combino com o diretor dar três aulas por semana de Biologia. À noite. Descubro que o colégio é só masculino. As meninas ricas estudam no Cristo Rei, das freiras, também escola particular. Não há escola pública de ensino médio.

Do alto do morro onde estou, vejo um trator abrindo ruas de um novo loteamento, que estende a cidade para o norte. Chego na Rádio.

— Ontem não veio, tratante… — diz-me o Altivo Braga, familiarmente. — Perdeu o programa de calouros. Um garoto que teve a perna cortada por um trem, o Roberto Carlos, deu um “show”. Tirou o primeiro prêmio, e ninguém contestou. Foi aplaudido de pé. Olha, chegou pelo telefone, agorinha, de meu Plantão Policial, a notícia de que um marchante foi encontrado morto, numa das ilhas do rio. Suspeita-se de vingança, ou dos fazendeiros, porque ele roubava bois, ou dos maridos enganados, porque ele roubava mulheres.

— Como é o nome dele?

— Um tal de Walter Moreira, família tradicional, mas ele é do ramo pobre.

— Ó Altivo, é meu amigo de infância. Até saí com ele uma noite dessas…

— Cobre o leme, alguém pode estar atrás de você, também…

— Não brinca…

O delegado de Polícia está à minha procura. O ordenança diz que é para fazer a autópsia do morto.

Encontro D. Zaira na praça Jerônimo Ribeiro. Está numa caminhonete e me acena freneticamente.

— Vou ver obras. Quer ir?

— Aceito. Não pretendo retalhar o corpo de meu amigo açougueiro. Depois eu soube que ele fora baleado, espancado, amarrado numa árvore, os olhos ficaram cozidos pelo sol forte.

Dona Zaira fala, idéia fixa:

— O Florisbelo Neves agora está na Capital, futricando contra mim. A Tribuna do Norte deu uma nota contra o curso de noivas que eu criei. Diz que lá se ensina pouca vergonha, pornografia. Doutor, o senhor é médico, desde quando educação sexual é safadeza?

Sinto-me alçado à condição de juiz, mas me abstenho de falar. Ela continua:

— Dei uma resposta malcriada. Quero ver se vão publicar…

Cospe pela janela do carro, que ela mesma dirige, abruptamente. Chegamos. É um descampado. Há uma vala, antes da construção, onde um operário e um auxiliar estão colocando manilhas. Trabalham vagarosamente.

— O pessoal é preguiçoso, — diz-me a diretora. — Eu quero que eles aprendam a fazer coisas, mas eles preferem comprar tudo pronto. Este preto aí é batista, ao menos não rouba. Vou fazer aqui uma escola primária de quatro classes…

— De onde virão os alunos para este grotão? — arrisco, a medo, a pergunta.

— Ora, de tudo quanto é roça, aí em volta. Meia légua, uma légua, teremos mais de cem meninos e meninas aqui, se alfabetizando. Vou comprar uns ônibus amarelos, que nem vi nos Estados Unidos…

Dona Zaira se orgulha de seu estágio de 45 dias feito numa universidade americana, a convite do Departamento de Estado de lá. Voltou cheia de idéias.

— O povo daqui é que não ajuda. Quem é rico, nem pensa nos pobres que não sabem ler nem escrever.

Dia seguinte, começo a dar aulas no Liceu Filomático. Baseio-me em O homem e a evolução de Dobzhansky, e como o grande mestre norte-americano também começo com o lançamento, em 1851, do livro A origem das espécies de Darwin, mostrando-lhes que a idéia de evolução é um dos pontos mais altos do pensamento contemporâneo.

Ao final da aula, dou-lhes pequeno exercício de verificação de aprendizagem. De minha mesa, pela janela, olho o rio que corre manso por entre as pedras. Lembro-me da noite passada, lembro-me de Hulda, a quarteira do hotel, uma alemãzinha das montanhas de Vargem Alta. O pai tinha uma propriedade padrão de 30 hectares, não estava dando para a manutenção da família, vendeu-a e veio para a cidade trabalhar na Intendência como servente de obras. Ela se empregou no hotel para aumentar as rendas da família. É uma bela jovem, sólida, rosada, com longas tranças louras. Toma conta da limpeza com capricho holandês. Ontem, ontem subimos as escadas rangentes para o sótão onde ela dorme, estávamos abraçados e o luar, silenciosamente, descia os degraus. Lá em cima, uns engradados, com garrafas vazias, mercadorias para consumo, e uma enxerga pobre. Hulda é boa e carinhosa. Experiente, com passagem por muitos hóspedes. Como médico, tomo meus cuidados. Pegou no meu braço, levemente, e sua mão ganhou a forma de uma pulseira de carne.

— Você vai gostar sempre um pouquinho de mim? — Sua voz era meiga e ciciante.

Como no poema de meu amigo Altivo Braga, “percebi uma promessa de lágrimas nos olhos dela e me acovardei” e lhe disse “mentirosas juras de amor, tal qual nas velhas cantigas, tal qual nas velhas baladas…”

Na descida para meu quarto, pé ante pé, uma escada rangedeira, encontro duas moças de um balé da Capital que veio apresentar-se aqui, estão à espera de vaga no banheiro, sorriem e lançam-me fundos e cúmplices olhares negros.

A sineta bate, os alunos sequiosos de irem para o recreio me entregam suas respostas em folhas rasgadas de cadernos. Deixo a sala, vagarosamente.

Semana seguinte, o professor Barbosa me fala da Faculdade de Direito que quer fundar em Princesa, eu poderia dar aulas de Medicina Legal, ser catedrático fundador, mas o Ministério exigiu 50.000 dinheiros de depósito para garantir a idoneidade da sociedade mantenedora, um absurdo segundo ele, e a lista dos professores até o quinto ano, outro absurdo, com estes advogados que temos aqui, que compram livros a metro, só para enfeitarem as estantes, e nunca os lêem — está difícil. Depois, mudando de assunto, me pede que dê uma aula de História da América, o professor faltou e eu, formado, terei facilidade de concatenar o assunto.

Recuso-me. O tema está fora de meu campo de conhecimento. Mas o velhote é insistente e me convence. Entrega-me um livro sebento de autoria de um tal Tapajoz, é só ler o capítulo 5. Vejo-me numa classe diversa da minha, falando a rapazes sobre a independência da América Latina. Em vez de ler o texto do livro brasileiro, como pedido, e é de praxe aqui, prefiro chamar a atenção dos alunos para a tendência do caudilhismo que se formou entre nós (não cito, mas, em pensamento, incluo no processo meu próprio padrinho, o Libertador, que de mestre de lancha chegou, num passe de mágica, a almirante). Os alunos ferraram na discussão, e creio que gostaram do novo método que eu estava implantando. Eles me pedem:

— Volte, professor, volte…

— É só hoje, gente boa, é hoje só, amanhã não tem mais, — respondo brincalhão.

Saio mais tarde, em vista do horário dessa aula, o sol já se põe para os lados do Pico do Itabira, uma baita pedra de granito, dedo de Deus para o céu voltado, e marca registrada de Princesa.

O alto-falante do parque de diversões está funcionando, fulano oferece a música a beltraninha, os preços baixaram, a roda gigante de 0,70 para 0,50 e barquinhas venezianas de 0,50 para 0,30 centavos. Há barraquinhas de jogos, de tiro, dados, roleta, argolas, coelhinho, o povo se diverte.

Fim do mês entrego os resultados das provas: notas baixíssimas, talvez por minha culpa. Mas isto aqui é um colégio particular. O diretor, no dia seguinte, me chama, cheio de dedos, olha para os quadros pedagógicos na parede, me diz que os pais reclamaram por eu falar em Darwin, num colégio evangélico fundamentalista.

&mdash A matéria está no programa oficial, que o senhor me forneceu…

— Foi uma ligeira falha minha. Esqueci de adverti-lo de que esta matéria sempre era omitida…

Sei que é uma questão de fé, mas as notas baixas pesaram mais, o medo de perder alunos, ainda mais agora que as freiras resolveram abrir classes masculinas, os católicos ricos irão todos para lá. (Olho para o diretor e embora compreenda sua motivação não o perdôo. A existência do outro sempre me inquietou; minha irracionalidade subconsciente luta por chegar à tona e, como um réptil, dar um bote num bestalhão como o professor Barbosa, enquanto a deusa Razão luta por manter-me calmo e apolíneo.)

Vence a razão. Digo:

— Se é assim, aceite minha demissão…

O diretor diz que não é bem isso, mas, enfim, aceita, aliviado, meu pedido. Manda o tesoureiro pagar-me 40 dinheiros por um mês de aulas, honorários que não aceito.

Despeço-me dos alunos com minha máscara mais alegre, e deixo o Liceu para sempre.

A notícia se espalha, há uma briga surda e feroz entre católicos e protestantes, no dia seguinte o ultra-católico José Grande, provedor da Santa Casa, procura-me no hotel e me convida para ser plantonista, no final de semana, em seu hospital; não haverá nenhuma interferência com meu serviço no Centro de Saúde.

Prometo, primeiramente, visitar a Santa Casa. Faço-o à tarde. Instalações precárias, com vários prédios que foram se juntando ao longo do tempo. Há um novo pavilhão cujas obras estão paradas.

— Será o mais moderno do país, — diz-me o provedor.

Aos fundos, uma ala para tuberculosos, chamada sanatório, e um prédio maior, denominado Pavilhão do Café, que foi construído com o produto de venda de sacas de café doadas pelo governo e produtores locais. As enfermeiras são irmãs vicentinas, e não consigo falar com a superiora, que está em retiro espiritual.

O enfermeiro de plantão me leva ao pronto socorro e comenta:

— Nhor, sim. O provedor é um bom homem. Traz da fazenda dele feijão, farinha, arroz, couve, tomates, de um tudo para alimentação dos doentes. É um bom homem.

Ao fim da visita, aceito o encargo e vou começar no próximo sábado, sob protesto da pequena Hulda que se crê minha esposa, com direitos sagrados aos sábados.

9. VISITA A VELHINHOS E A UM CENTRO DE CURAS

Quando passo na Pharmacia e Drogaria Popular, Bonesi, com sua mania de falar por provérbios, comenta:

— Tanto vai o pote à bica que lá fica…

— A propósito de quê? — fiz-me de desentendido.

— A propósito de seu amigo Walter Moreira. Estão dizendo que foi o gerente da fábrica de cimento que mandou matá-lo…

Para mim é novidade. Faz ar de espantado, mas fico calado. O farmacêutico arremata, no seu vezo:

— Burrice dele. Mulher é igual a cachaça, em qualquer lugar a gente acha. — E baixando a voz: — Até nos hoteizinhos do interior.

Ri, mas não gosto da brincadeira. Saio amuado.

Hoje é dia da visita mensal ao Asilo dos Velhos, a primeira que farei, pois nos meses passados não pude atender a este compromisso moral, que havia sido assumido, há anos, pelo Dr. Batalha. O motorista do Centro vai levar-me e me deixa na casa — também velha — no alto do morro.

São 32 internos, segundo me informam, que vivem da caridade pública. São 20 mulheres e 12 homens, há sempre mais viúvas que viúvos, neste mundinho de Deus.

À frente, um jardinzinho caquético e nas laterais a indefectível horta.

Na recepção uma foto antiga de Princesa, no começo do século, com a Santa Casa à direita, ao centro o Solar do Cachoeiro e à esquerda a Igreja Matriz, hoje Catedral do Bispado.

Também uma reprodução bem boa, que reputo valiosa, de “A expulsão do Paraíso”, de Jacopo Della Quercia, com aquelas figuras tristes e carrancudas.

De todos, examino a pressão. Só três hipertensos, o que é espantoso. Um pouco de carinho, os conselhos de sempre, muito líquido, frutas e verduras, pouco sol, caminhadas em torno do prédio… Depois reúno os oito mais enxutos na varanda, quatro casais, para uma conversa que chamo terapêutica. Tema: evocação do passado.

Eles adoram conversar, e preciso de muita energia para organizar as falas, todos querem relembrar os tempos antigos, a uma só voz.

Horácio Lemos: “Eu namorei pela fechadura. Tratei de meu casamento com o pai da noiva, que não me deu a preferida, e sim a Ernestina, a filha mais velha. Por incrível que seja, vivemos bem quase cinquenta anos, até que ela morreu. Os filhos estão por aí e se esqueceram de mim. A única briga que tivemos foi porque ela gastou nove metros de fazenda para fazer um vestido bem rodado, e só apareceu a ponta do sapato…”

Maria Raquel Lemos: “Era tudo mais fácil. Nós tudo era católico. Não havia crentes. Tenho saudade das festas, com ladainhas, procissões, bandeirolas, folhas pelo chão, toalhas nas janelas. Uma vez houve uma grande seca e nós saímos em procissão pelas estradas esturricadas, implorando a Deus, e não é que choveu três dias sem parar? Na escola eu era a mais levada, e castigada todo dia com palmatória, régua, ajoelhar em caroços de milho e feijão em baixo do relógio de carrilhão… Mesmo assim era bom.”

Inácio Guimarães: “Eu gostava era do gramofone. Eu era tropeiro, tinha dez anos, e quando chegava na Princesa pagava um dinheiro (naquele tempo era escudo) para ouvir música. A gente entrava numa cabine e o dono do bar fechava a porta para os outros não ouvirem, dava corda no gramofone e a gente ficava ali, igual bobo, admirado, ouvindo polcas e mazurcas, com aquele orelhão olhando para a gente, parecia a baleia que, dizem, comeu o Jonas. Coisa boa, dura pouco.”

Emiliano Rangel: “Estes morros todos eram um cafezal só. Aí nos fundos ainda tem uns pezinhos. Não havia automóveis. A gente andava a cavalo ou de carro de boi. Charrete uma ou outra, na cidade. Ainda me lembro de seu Inácio Guimarães menino, este aí, velho feio, descendo desses grotões com a tropa do pai dele…”

Aurélio Bonesi: “Eu sou desses Bonesi, aí da farmácia, mas não tive sorte. Vim de Rimini, na Itália, no tempo da grande imigração. Meu pai, muito trabalhador, passou logo de meeiro a pequeno proprietário. A gente economizava cada centavo, o café dava bom preço. Fomos remediados, hoje não tenho nada. Perdi tudo no jogo. Agora ganho uns dinheiros fazendo gaiolas de flechas de tabua. Eu me casei com esta que está aqui a meu lado (segura na mão de uma pequenina senhora de coque). Foi muito engraçado. (A mulher pede, com um dedo nos lábios, que ele silencie.) É, vou contar: quando ela nasceu, o pai era meeiro de papai, eu já era homem feito. Depois o pai dela se mudou, bateu perna, e acabou voltando para nossa propriedade. A Gertrudes — esta aqui — estava uma mocinha linda, miudinha que nem hoje. Tinha uns quinze anos e eu quarenta, solteirão. Num certo domingo eu tinha ido à missa e a vi. Me aproximei para conversar com o pai dela. No dia seguinte, a pretexto de correr as roças, fui à colônia onde ele era nosso meeiro. A mãe dela me serviu um cafezinho, mas a Gertrudes estava, com os irmãos, na apanha do café. Na terça-feira não agüentei e escrevi uma carta para o velho pedindo a mão de sua filha em casamento. Ele negou, disse que eu era muito velho para a filha dele, mas ela que resolveria. Conversei com ela no domingo seguinte, ela consentiu, e um mês depois casamos e fomos felizes para sempre. (Vira-se para a esposa e diz:) Fomos? (Ela ri, mostrando as gengivas, e lembra:) Ele é bom. Antigamente ele era meio treteiro. Lembra-se quando eu estava grávida da Maria? Você deu uma escapulida… Eu fiz que não sabia. Agora estamos felizes, somos bem tratados, e não temos do que nos queixar. Os filhos foram embora, mas ele tem a mim e eu a ele.”

Alberto Marques: “Eu gostava mesmo é de tomar banho no rio, e mergulhar pulando de um ingazeiro. Se papai soubesse, era surra na certa. Quando tomei certa idade — sete, oito anos — comecei a trabalhar levando comida para os empregados, na roça. Meu prazer era o perigo, ia sempre pelo caminho mais difícil. Rapazinho me tornei amansador de potro bravo, tenho muitas marcas no corpo, que considero como minhas medalhas. Que bom montar em pêlo e corcovear no cocuruto dos bichos, samambaia alta em volta do pasto, veado pulando para lá e para cá, capivara cercava a gente, e os porcos engordavam no meio do mato…”

Joana Machado de Faria: “Eu me lembro, eu me lembro quando o trem de ferro passou a primeira vez, aquela multidão à espera, meu tio levou um bornal de milho para o trem comer, ele não acreditava que a máquina pudesse andar sem se alimentar. Os tamanduás ficavam em pé, na beira dos trilhos, e quando o trem passava abriam os braços querendo abraçar a luz da lanterna dianteira. Um dia passou um avião aqui. Meu pai, que era muito bocó, pensou que o mundo estava se acabando e saiu correndo e gritando. Me lembro como se fosse hoje…”

Maria Machado (irmã da anterior): “A coisa mais estranha que eu já vi foi um boi com oito pernas.”

Tira do bolso do capote uma velha foto comprovando uma anomalia — um bezerro com outro incrustado em sua traseira, sem cabeça.

— Não é truque não, — pergunta o Bonesi.

— Não, não, juro que eu vi com estes olhos que a terra há de comer.

Bateu uma sineta, hora do almoço. Os velhinhos não querem mais conversa.

Madre Antonieta, satisfeita com a alegria que eu trouxera ao asilo, prometi fazer-lhe festa com muita dança, há meses que ela estava sem atendimento médico, pede-me que não falte, no mês que vem, e convida-me para almoçar. Refeição simples, como a do hotel, só que aqui não havia carne, e se rezava ao início.

Durante o almoço, a Irmã comenta a ausência de vocações aqui em Princesa:

— Os padres não fazem o que podem e devem para seguir a carreira religiosa. Eu fui a primeira a seguir o postulado. Algumas vêm, mas é para estudar, de graça, ou arranjar casamento. Qualquer dia eu lhe conto a história da Cecília, esta que hoje é toda poderosa, até mansão tem. Mas aqui perto, na serra da Venda Nova, há uma italianada boa que tem dado muitos padres e freiras para a Igreja. Lá existe mais piedade familiar. Vão fazer uma estrada que vai passar por lá. Será um bem e um mal. Princesa não tem vocações, é uma cidade livre. Eu tinha uma menina aqui talhada para a missão, mas a mãe ficou doente, veio o pai e a tirou… É uma luta contínua.

Ao fim do almoço, os velhos cantaram velhas músicas — religiosas ou de Carnaval — e a Irmã os olhava, complacente.

Depois, uma quase tragédia.

A velhinha Gertrudes — a mulher do Bonesi — foi levar pratos para a cozinha, caiu e quebrou uma perna. Corre-corre geral. Espanto nos olhos dos internos. Sem prática em ortopedia, faço o que posso. Coloco-lhe talas, determino repouso, e garanto, enfático, que ela ficará bem. Um dos velhos disse:

— A gente morre de queda ou de caganeira…

— Vira para lá essa boca, imbecil, — retruca o Bonesi.

No mês seguinte, D. Gertrudes estava com a perna encanada, sem seqüelas. Felizmente, para mim e para ela, fora uma fratura mínima.

Quando saí do Asilo de Velhos, tardinha já, novamente vejo o sol se pondo lá para as bandas do Itabira. É um espetáculo que não me canso de observar. Do alto, vejo a cidade, mais desenvolvida deste lado sul, casario subindo os morros, tudo muito verde, e o rio, alheio a tudo, serpeando, cobra de cristal, vindo das montanhas do leste, em busca do Atlântico, nas praias de Maraí.

Na praça Jerônimo Ribeiro encontro Altivo Braga e lhe conto minhas experiências novas com a geriatria. Ele me fala que está preparando as festividades para o centenário de Jerônimo Ribeiro.

— Afinal, Altivo, quem foi esse Ribeiro?

— Santa ignorância, doutor. O maior filho da terra, o primeiro nativo que os portugueses nomearam governador geral, no começo do século. Estudou em Coimbra, começa por aí. Enfrentou a primeira greve de trabalhadores que houve aqui, na Estrada de Ferro. Contratou a firma inglesa Henry Rodgers Sons & Co para instalar uma fábrica de tecidos e outra de cimento, ambas ainda funcionam. Planejou, também, um engenho central de açúcar, fábricas e óleo e papel e serraria industrial. Instalou a Usina Hidrelétrica de Fruteiras, a primeira da ilha. A região que estava ao abandono teve um surto de progresso.

— Foi um grande empreendedor, reconheço.

— Mas era um homem mau, isso era. Dizia: para os amigos os favores da lei, para os inimigos os rigores da lei. Mandou, certa feita, matar meu avô…

— Seu avô?

— Sim, o velho José Horácio Braga, advogado por estes sertões todos. Foi assim: meu avô fazia oposição aos desmandos políticos (administrativamente ele era um bamba) do Ribeiro. Ia ele por uma estrada erma, perto de Mariana, quando um tiro de espingarda pegou no chapéu de feltro que ele usava. O cavalo tropicou e meu avô caiu, desmaiado. Quando acordou o Ferrinho, um soldado, lhe dizia, chorando: “Me perdoe, Dr. Zeaci, me perdoe, eu não sabia que era o senhor, não sabia mesmo. Só me deram o jeitão de sua roupagem. Foram os grandes de Vitória que me mandaram fazer este serviço… Para mim era uma tocaia como outra qualquer. Mas o senhor, depois de Deus, meu maior benfeitor…” Segundo o soldado, ele só reconheceu vovô quando o chapéu caiu, mostrando sua longa cabeleira branca. Vovô o livrara, tempos antes, da pena capital, num júri em Santo Eduardo, provando que ele não matara a mulher, primeiro por falta de corpo de delito, segundo porque várias testemunhas idôneas a tinham visto, ao norte da ilha, acompanhando um bando de ciganos. O juiz mandou a polícia buscá-la e tudo se esclareceu.

— E você ainda vai festejar este cretino?

— Olha, águas passadas não movem moinhos, e isto foi há mais de meio século. As festas vão dar um bom retorno financeiro à rádio, vai daí…

À noite, tive um pesadelo. Meu peito doía. Eu via os velhinhos do asilo dançando e cantando sobre mim; duas mulheres violeiras tocavam e riam. O soldado Crispim me tocaiava. Impossibilitado de mover-me ou acordar, soltei gritos e a Hulda, que tinha a chave geral dos quartos, me acordou. Tomei um banho frio e fui dormir com a pequena alemã, ela bem o merecia. Aliás, estou pensando em manter casa para ela, não suporto mais estas subidas ao sótão, as sombras da rua jogam poeira sobre mim, e o barulho das escadas creio que acorda os hóspedes que me espionam.

Olho pela janela. Milhares de borboletas amarelas esvoaçam em torno do poste de iluminação. Durante o dia elas serão esmagadas pelos carros e pelos meninos. Efêmeras como a vida.

No outro dia, no Centro de Saúde, noto estranhas conversas entre o servente Zacarias e meus clientes. Chamo às falas o imenso preto, com quem estou em choque desde que cheguei.

— Que é que você tanto cochicha com os doentes?

— Nada, não, senhor doutor. É que eles não sabem ler, assim eu ajudo eles…

Dr. Duílio tinha me dito que Zacarias é macumbeiro. À queima-roupa pergunto-lhe:

— Você é macumbeiro?

— Qual o quê, doutor. Invenção desse povo que não tem o que fazer. Só porque eu faço uns chás de raízes e folhas, mas, coisa antiga, que o povo respeita… Macumba é lá na linha do trem, quilômetro 90. Se o senhor quiser, eu levo lá…

Aceito, de pronto, o convite e para não deixar o assunto morrer decido ir ao cangerê esta noite, uma propícia sexta-feira de lua cheia.

Saio com Zacarias, de ônibus. Ele fala da pobreza em Princesa, que é muita. Mostra onde há “centros”.

Entramos no de Alzira Bisi, que já está no “trabalho”. Em letras vermelhas, à porta, a tabuleta: “Centro Registrado Catarina”. Registrado, onde? Por certo na polícia.

Na entrada, ficam os consulentes, numa pequena sala. Gravuras, tiradas de revistas, ostentam a face sorridente de meu padrinho, um breve contra os ataques dos soldados, sequiosos de propinas. Ao lado, um time de futebol do Rio de Janeiro, o Flamengo, que recém se sagrou campeão da Taça Guanabara. Diplomas concedidos por várias entidades espiritualistas, todas do exterior. O nome do registro é Alzira Bisi, mas a curandeira é conhecida como Catarina, nome da guia que a orienta. Na parte reservada, onde ela fica, os consulentes entram descalços ou só de meias.

Ela está imponente com largas calças vermelhas, de tecido brilhante, com uma lista branca, blusa azul e um boné com as iniciais CRC. É o aparelho que aguarda a chegada da cabocla Catarina, escrava que não quis entregar-se ao dono e se suicidou, pulando no rio.

Uma senhora elegante explica-lhe seu caso. Velas são acesas, bruxuleando sobre imagens de Santa Catarina e São Jorge e sobre um estranho ícone afro talhado em madeira, os olhos vazados, e cabelos e barba de fios de prata. Uma assistente de óculos repete à médium o que deseja a velha senhora. Ela dá receita. Zacarias recebe um preto velho e canta o ponto Cruzeiro do Sul, desmentindo sua negativa, pela manhã, de que não era dado a pembas.

Catarina dá passes num menino aleijado. Fala em versos e, a seguir, resolve um complicado caso de amor e rejeição. A cabocla é paciente, sabe escutar e a todos aconselha. Alguns, à saída, deixam dinheiro “para as velas” mas as esmolas não são obrigatórias. Finda a sessão converso com Alzira, digo-lhe que não pretendo perseguir ninguém, minha curiosidade é científica.

— O senhor veio com Zacarias, Zacarias é meu irmão. Nasci na roça, família italiana, católica de verdade. Com 23 anos quis casar-me com um mulato garimpeiro, meus pais não deixaram. Fugi com ele e vim para Princesa. Fui muito infeliz. O Sebastião bebia muito e batia em mim. Além disso, me traía. Peguei-o num baile com uma mocinha suja, com perdão da má palavra. Atirei nele e fugi. Caí numa grota e machuquei a cabeça. Em jejum, estropiada, recebi a Catarina, pela primeira vez. Estive presa seis anos, mas sempre fazendo caridade com os presos. Fiquei na cadeia do Amarelo, e lá me deram uma cela só para mim. Fechei as grades com um cobertor, à moda de cortina. Meus parentes não vieram me ver nunca. Li muito a Bíblia e estudei espiritismo, e graças a minhas preces fui ouvida e Catarina me protegeu e me acompanhou até hoje. Eu era e sou católica, vou à missa todo domingo e dia santo de guarda. Um homem velho saiu de dentro do rio e me disse que minha missão, na terra, era fazer o bem. Ele me deu uma fita vermelha e disse, se dentro de um ano eu não voltar, comece a trabalhar. Botei a fita num baú e me esqueci. No fim de um ano a fita estava branquinha, igual vela de sebo. O velho não voltou. Então comecei a trabalhar e não parei mais. Esquadras de espíritos zoavam em minha cabeça, mas quem manda é Catarina. Trabalho há trinta anos sem falhar um dia. Para evitar encrencas registrei o centro na polícia. Todo dia tem gente batendo na minha porta. Esta aí de óculos é minha filha. Tive seis, mas só restou esta. Os padres, nas Missões, falam contra mim, mas não me importo. Eu não faço o mal.

Ela me agradece e me abençoa.

— Todos estamos na terra para fazer o bem, o senhor com sua ciência e eu com minha consciência…

Saímos e esperamos, Zacarias e eu, quase uma hora o ônibus, que vai de um extremo a outro da cidade e, à noite, tem poucos horários, pois trafega quase vazio.

E, aqui, leitor amigo, vou encerrando este longo capítulo de minha estada em Princesa, para falar-lhe, amanhã, da estranha proposta que o milionário Hermolan Cunha Melo me fez.

10. SEU HERMOLAN ME FAZ ESTRANHA PROPOSTA, QUE ACEITO

Bonesi, o farmacêutico, me diz:

— Passarinho de papo cheio não cai no alçapão…

— A propósito de quê você diz isto?

— Ora, a charada é fácil de decifrar. O senhor no Centro de Saúde, plantonista do hospital, despreza o consultório que lhe ofereci.

Desconverso:

— Que nada, Bonesi, é que eu tiro as tardes para estudar…

— Anatomia feminina, não?

Zango-me:

— Há certas brincadeiras que não admito. E nem tenho satisfações a dar, nem a você nem a ninguém nesta cidade… Eu não gostaria de trabalhar numa farmácia, é pouco ético…

— Pois é, doutor, quando quiser estou no mesmo lugar de sempre.

Fiquei muito aborrecido. Ao chegar ao hotel um portador me esperava, com uma carta do Sr. Hermolan Cunha Melo, o homem mais rico do lugar. Enquanto lia — — — — — — um grande alvoroço sacudia a rua. Era a propaganda de um circo, o palhaço ia à frente montado de costas para a cabeça do cavalo, cujo rabo segurava à guisa de freio. Garotada barulhenta ia atrás, completando os versinhos que ele gritava.

Voltei à carta que me convidava para jantar, aquela noite, às 19 horas. Como sempre faço, resolvi comparecer.

À tarde vou à Intendência com Altivo, eu por curiosidade, ele para receber o pagamento de editais divulgados pela rádio. Fica no segundo andar do Solar dos Cachoeiros, antiga residência senhorial do Barão de Princesa, título concedido, em 1842, pela própria D. Maria II de Portugal, gloriosa reinante.

Hoje, lá funcionam a biblioteca, o arquivo e a Intendência. A secretária, D. Telma, me diz que a biblioteca era muito organizada, mas agora está, por falta de verbas, em situação “terrível”. Acentua bem na pronúncia da palavra “terrível” como se fora o fim do mundo.

Os intendentes estão em reunião: quatro são eleitos, um só pela zona rural, aquele falante que conheci na praça, outro dia. O presidente, com voto de qualidade, é nomeado pelo governo central, e no momento é um velhinho que dormita em sua curul.

Discutem recente decisão do Departamento do Café, para venda de estoques, que consideram lesiva à safra nova, pela baixa dos preços, e ao consumidor, pois os torrefadores não lhe passam o café moído com o desconto oriundo do subsídio do governo. Vão passar um telegrama ao Libertador e, sabendo da minha presença na casa, pedem a minha interferência. Concordo, de imediato. Ainda discutem a falta de pagamento dos empregados da Estrada de Ferro, que estão passando fome. Decidem passar novo telegrama, desta vez ao Dr. Furtado, ministro da Agricultura, Viação e Obras Públicas, um ladrão, diz-me o intendente da roça. A sessão é gravada e depois irradiada pela rádio, o que assegura certo comedimento nos pronunciamentos.

No salão há retratos de figuras eminentes da política local, havendo destaques óbvios para o Barão de Princesa, Jerônimo Ribeiro e o Libertador. Às l4:30 a sessão se encerra, pois três intendentes deixam o plenário. Diz-me um:

— Eu não percebo nada aqui. Tenho que cudiar da vida…

Tomo um café com o presidente, “Seu” Venâncio, e o Altivo. A conversa gira em torno dos festejos comemorativos do centenário de nascimento de Jerônimo Ribeiro. O presidente diz que foi a Vitória pedir a reorganização do Departamento de Alimentos e mandaram um tarado, um tal Tenente Marques, que mandou os caminhões de feijão descarregarem nos atacadistas ao preço de 500 dinheiros a saca, quando, no comércio, o povo compra por muito mais. Deu lucro aos ricos que já estão com as burras cheias.

— Sou contra isto, mas sou justo, — diz o presidente. — Elogiei o tenente na ação contra os açougues, quando encontrou seis balanças que pesavam 600 gramas, em vez de um quilo. Uma roubalheira…

Depois ingressa numa choradeira saudosista, lembrando que em 1927 havia, aqui, treze serrarias e todas fecharam com o corte indiscriminado das matas.

Altivo me convidou para jantar em casa dele. Explico-lhe por que não posso ir e ele:

— Seu Hermolan não prega prego sem estopa, olha lá, hein?

À noite, visto meu melhor terno e vou para a mansão de Mestre Hermolan. Hulda me vê no corredor:

— Como está chique o doutor. Parece que vai ver a noiva.

Brinco com ela:

— Minha noivinha está aqui, à minha frente. Tive um convite para jantar fora.

A empregada uniformizada que me atende manda entrar e chama a patroa. Chega uma senhora baixota e gordota que já me fora apresentada no International Club. É bela em seus quase sessenta anos. Entram dois meninos e me apertam a mão.

— São meus netos, filhos de meu filho mais velho.

Ela, D. Mariana, diz que acabou de chegar da missa vespertina, e ainda está com o terço na mão. Lamenta que o marido não seja mais católico, casmurrice dele, mas, graças a Deus, acabaram as brigas por causa de religião. As Filhas de Maria fizeram vinte e cinco anos em maio. A Congregação Mariana reuniu, em convenção, cerca de mil pessoas, a maioria das cidades vizinhas. Padre Murilo tem trabalhado muito. Breve teremos bispado e ele deve ser o bispo. Enquanto isto os batistas continuam trinta ou quarenta gatos pingados.

Chega o Hermolan, um imenso homem de mais de cem quilos, que também já me fora apresentado.

— Como é, doutor, está gostando de nossos ares?

E, ante minha resposta afirmativa, disse que o verão aqui é um inferno. Quem pode vai para a praia. Depois deplora a atitude de seus amigos do Liceu, que me puseram para fora, por causa de Darwin.

— Se eu soubesse não teria deixado. Por uma coisinha à toa, este tal de Darwin que ninguém sabe quem é, não se perde um professor como o senhor.

— Ora, Senhor Hermolan, o diretor agiu dentro de seus parâmetros e o incidente está encerrado.

A esposa pede licença e se retira. Conversamos amenidades. Mestre Hermolan, cognome que adquiriu por ser maçom, me conta sua briga com Padre Murilo. Ele queria que eu construísse, sozinho, a catedral do bispado. Ele que sempre disse que a Igreja não quer o muito de poucos, mas o pouco de muitos…

— Estavam aqui uns missionários batistas, do sul dos Estados Unidos, eu me converti e fui batizado. Sem imposição, construí a Primeira Igreja Batista, edifício supimpa, parece um templo romano com aquelas colunas, o senhor conhece?

— Já passei por lá. É realmente imponente.

— Quando vier um pregador de fora vou querer que o senhor vá lá… Entrei também para os “bodes pretos”. Aí o escândalo foi maior. Já havia loja, aqui, desde 1897, mas sempre pequenininha. Eu é que fiz um prédio novo, e grande biblioteca. Também vou levar o senhor lá quando tiver uma festa branca.

A seguir, fala-me de sua riqueza.

— Eu era um pobre empregado do Banco do Estado, muito disciplinado, estudava contabilidade, à noite, com o Sr. Filogônio Peixoto. Gostava de caçar aos domingos. Um dia, em 1932, Deus me ajudou e fui tirar um tatu da toca e vi uma coisa brilhando quando a foice bateu. Era uma grande água marinha, com trinta e dois quilos. Tirei-a de mansinho, embrulhei-a num lenço e, para os portugueses não saberem, fui ao Porto dos Cachoeiros, aluguei um barco de pescadores, o Mareiro, e fui ao Rio de Janeiro, a pedra na minha mala, um peso danado. À noite, no beliche, dormia abraçado com ela, que nem mulher amada. Perto da pedra do farol Santa Luzia quase naufragamos, passamos o maior sufoco, a maré muito baixa, o barquinho dançava em meio às ondas. Passamos, milagrosamente, por entre os recifes, eu com aquela fortuna toda, valei-me Nossa Senhora da Penha (na época eu ainda era católico), saímos dos baixios e no devido tempo paguei minha promessa. No Rio, atracamos no cais do Peixe, perto das barcas de Niterói. Sempre com a mala na mão, procurei um parente afastado, trabalhava na Casa Áurea, ele sabia das coisas e me levou ao comprador certo. Nossa, a casa do homem parecia uma fortaleza, grades e guardas por todo o lado. Quando cheguei a ele e mostrei a pedra ele exclamou: “Como é que o senhor estava andando por aí com esta pedra? Pago um milhão de dólares pela pedra.” “Foi avaliada em três milhões”, menti. Depois de muita conversa recebi dois milhões e meio de dólares, botei tudo na mala, apliquei a maior parte no Brasil, no banco de meu primo, melhor dizendo na casa bancária, eles faziam penhores e eram meio agiotas, mas comigo sempre foram muito honestos. Trouxe o resto comigo. Quando me demiti do Banco do Estado e dei mostras de prosperidade, disseram que eu tinha dado um desfalque. Nem te ligo… O gerente disse: “Logo o senhor, Seu Hermolan. O senhor ia tão bem…” Dizem que a pedra foi lapidada e toda dividida, em Amsterdam, e com parte dela até fizeram um colar que foi doado à rainha da Inglaterra.

Sem pausa, me fala de seus empreendimentos imobiliários:

— Loteei a antiga chácara da Tijuca e ganhei um dinheirão. Eram doze alqueires que eu desmanchei em mil e duzentos lotes. Deixei área para ruas, praças, escolas, igrejas, clube, albergue e postos de saúde e policial, vinte por cento da área. A Intendência só exigia dez por cento mas minhas ruas são largas, o senhor vai ver, têm quinze metros, e a avenida Central tem 24 metros de largura. Os lotes são de 12×30 e o pessoal paga a prestações a perder de vista, pela Tabela Price. Ainda não consegui levar energia elétrica para lá, estou pensando em botar um motor. Água? Água tem demais no córrego Aquidabã, eu já canalizei e fiz uma caixa captadora. Uma beleza de bairro.

O jantar estava demorando. Serviram-nos um cafezinho prévio, hábito que achei estranho. Pensei: Será que, por qualquer motivo, o jantar fora cancelado?

O dono da casa explicou que teria que fazer uma viagem urgente e que, de fato, o jantar ficaria para outro dia. E acrescentou:

— Doutor, eu o chamei aqui para oferecer-lhe, em casamento, a mão de minha filha caçula, Priscila.

Fiquei aparvalhado com a estranha proposta, olhando para as pequenas bolhas de ar na xícara de café, qual centenas de olhos de polvo a me espreitar. Desconversei:

— Mas, senhor…

— Não tem fum, nem fole de ferreiro, agora o senhor vai conhecer sua futura esposa.

Tocou uma sineta e, quando a moça uniformizada apareceu pressurosa à porta, mandou-a chamar a patroa.

A porta se abriu, empurrada para fora como se as duas, mãe e filha, estivessem à escuta. Vi chegar a filha, com um sorriso brejeiro e olhar brilhante, cheio de segredos e promessas, e vi surpreso que era a moreneza do International Club com quem eu tanto flertara.

Hermolan me disse que a moça ficara vivamente impressionada comigo e, como estava na idade de casar, o jeito foi mandar-me chamar para propor o enlace.

Tímido, aquiesci em conversar com a jovem, um belo tipo de mestiça. Mas as conversas eram difíceis, pois se tratavam na sala de visitas, num sofá austríaco, com quatro lugares individuais, voltados uns para os outros. Assim sentamo-nos Hermolan, eu, D. Mariana e Priscila. Os olhos e os toques casuais falavam por nós.

Aceitei a oferta do milionário, não por cupidez, mas porque a moça, filha dele, me agradava muito. E foi assim que dei início a meu noivado.



11. ESTE ANO A FESTA VAI SER BOA

Meu noivado vai de vento em popa, com conversas diárias no sofá de quatro assentos invertidos.

Bonesi me diz que “o que o diabo não pode, a mulher o consegue”, isto a propósito de meu inusitado noivado. Conta-me, também, que Priscila, minha noiva, e Carlos José, o irmão que dirige a grande Fazenda Melo, nas montanhas, são adotivos. E, baixando a voz: Consta que numa caçada dominical — ele era doido por caçadas — um tiro casual arrancou-lhe os culhões e ele ficou impotente. Assim se explicam as adoções.

Depois, fala-me na festa que se aproxima:

— Este ano, com a alta do preço do café, a festa vai ser boa, até seu padrinho vem.

Veio e, pasmei, foi para a casa do bispo, onde se hospedou. Atravessou as ruas num palanquim transportado por quatro homens fortes. Num dossel, lá está o Senhor Kurtz, bastão da justiça na mão e revólver, a patente, na cintura, ridículo em seu uniforme de almirante. Envergonho-me, mas o povão gosta.

À porta seis meninas desenvolvem uma brincadeira infantil, que não conhecia: Dom dom baby (a mão direita para cima e a esquerda para baixo); Mame salame cá (botam as mãos de frente); Milk shake (batem palmas); Mame salame cá (fazem com o dedo o sinal de positivo e mexem com os ombros); e continuam, sem gesticulação:

Geme, geme,
Upapá.
Geme, geme, pá,
Geme, geme,
Upapá.
Geme, geme, pá.
Que coisa mais esquisita!

O Libertador me chama para uma conversa reservada. Resumo de seu relato: A Assembléia Nacional Constituinte fora instalada no último 25 de abril, com trinta membros, dos quais dezesseis advogados, seis comerciantes, três fazendeiros (um dos quais é médico), três padres católicos e dois militares. São uns loucos, diz o Libertador. Estão me desagradando profundamente com seu liberalismo, tricas, futricas e petitórios. Ela se reúne na antiga igreja da Misericórdia e o povo — a meu pedido — fiscaliza as sessões, diariamente. Na última sessão me chamaram de imperador sem coroa… Eu, que estou fazendo tudo pelo povo. Em Santo Eduardo e Mariana a Unix descobriu petróleo. Outras empresas estão de olho, mas vou ficar com a Unix mesmo, são uns gringos confiáveis. Fiz uma aliança secreta com os comunistas, um grupo pequeno mas aguerrido. Sou o defensor da Pátria. Vou fazer uma universidade, mas nas montanhas. Lá terei trinta professores e trezentos alunos, mas gente escolhida a dedo. Vão estudar comunicação, matemática, computação eletrônica, ginástica, o que mais for necessário. Quem agüentar os quatro anos, vai para o exterior fazer pós-graduação. Os que não se formarem, assim mesmo serão contratados para o serviço público civil. Uma renovação total.

Ante o meu olhar de espanto pergunta:

— Não acredita, meu filho?

Contemporizo:

— Ora, claro que acredito, apenas duvido que as universidades estrangeiras aceitem este tipo de curso como de graduação…

— Bem, quem está fazendo o projeto é a doutora Dirce, minha ministra de Administração e Planejamento. Você precisa conhecê-la. Tenho certeza de que sairá tudo nos conformes.

Despeço-me, respeitoso.

Conversei com o homem mais poderoso do país, por mais de uma hora, a notícia se espalha pela cidade, muitos me perguntam quais as boas novas.

À noite, em trajo de gala, vou ao banquete oficial. Há um cardápio impresso que a gente recebe à porta do Caçadores Clube, envolvido em fita azul e rosa, as cores do país. Rosto: Homenagem da Intendência e do povo de Princesa ao ínclito Presidente Perpétuo da República, Almirante Constâncio Alves e D. Zélia Alves, sua DD. Esposa. Primeira folha interna: Programa. Composição da mesa com recepção ao Exmo. Sr. Presidente da República, Senhora e demais autoridades. Oferecimento do ágape pelo Dr. Duílio Rocha, presidente da Intendência, ao Exmo. Sr. Presidente da República e sua comitiva. Saudação à Exma. Sra. D. Zélia Alves, Primeira Dama do País, pela Sra. Albertina Rocha, representante das senhoras de Princesa. Palavras do Exemo. Sr. Presidente da República, Almirante Constâncio Alves. Encerramento pelo Sr. Presidente da Intendência. Segunda folha, interna. Cardápio. Frios; Peru à Santa Maria do Atlântico; Arroz à grega; Pernil à Princesa; Pêssego ao creme. Vinhos. Café. Contracapa: Um retrato antigo do Almirante, com o dístico: Salve o Libertador.

Então o meu colega, o dentista vicentino Duílio era, agora, o presidente da Intendência? Era, e eu tive grande participação em sua escolha.

— Jader, o Casotti morreu agorinha mesmo, em acidente de carro.

— Casotti, Casotti, — fiz força para lembrar-me quem era.

— É, o presidente da Intendência…

Lembrei-me daquele velhinho simpático e sonolento com quem tomei café na Intendência: o Sr. Venâncio Casotti.

— É uma pena, — lamentei.

— É, era um bom homem. Eu quero um favor seu. Já trabalho há mais de vinte anos, em pé, em contato com bocas estropiadas e mal cheirosas. Eu pretendo ser nomeado presidente da Intendência.

Vai daí…

— Eu queria uma carta sua para o Libertador…

— Ora, não seja por isto.

Substituí uma das minhas cartas semanais a meu padrinho por uma recomendação formal ao Duílio, não acreditei que ela surtisse efeito, esqueci-me do assunto.

Duílio se mandou para a Capital num teco-teco fretado, chegou antes dos outros pretendentes e três dias depois voltou sacudindo o Diário da República:

— Fui nomeado, fui nomeado, você é um batuta, meu araruta!

No banquete, discursos formais. Meu padrinho reclama, alto e bom som, dos constituintes. Duílio o elogia desavergonhadamente.

Num palco improvisado há um número extra: o balé de Princesa. A cena se abriu com a dança do rio e da floresta, sensual e viva. Os animais transitam, alegremente. O Coro fala:

— Vemos tempestade no céu. É o Homem Branco que vem das bandas do mar.

O Bacurau e a Coruja respondem soturnamente:

— Eles não virão, não virão, não virão.

As Onças replicam:

— Virão.

Os animais, em uníssono, dizem que não deixarão o Homem Branco entrar na mata. Porém o Homem Branco vem. Vêm o Senhor e o Escravo. A luta se trava, sangrenta. As matas se tornam madeiras serradas, que são apresentadas no palco improvisado. Plantam cana de açúcar. Plantam café. Os engenhos e as peneiras da colheita entram em cena. Tiram o ouro e as pedras preciosas. Chegam os bois, estranhos, à terra. Há a sinfonia do trabalho escravo. O Padre abençoa os fazendeiros. Música estranha se ouve. Os guanchos nativos e os animais fogem espavoridos. Chegam os trens e o telégrafo. Uma dança dionisíaca de alegria e embriaguez. É a vitória da civilização. Lá longe a Coruja e o Bacurau entoam:

— O Homem Branco não virá.

A Onça replica:

— Virá, virá.

Baixa o pano com aplausos gerais. O Libertador está eufórico, mais pelo vinho Chianti do que pela beleza do balé local.

Depois do jantar, começam as danças. Deixo minha noiva com os pais, meu “summer” na portaria do clube, passo no hotel, pego a Hulda e vamos, a convite do Zacarias, para o jongo da ilha da Luz, o povo também está festejando.

Na Praça Central uma jogatina desenfreada, em barraquinhas ontem ali plantadas: lançamento de flechas, argolas, tiro ao alvo, com espingardas de rolha, pescaria na areia, e o jogo a valer, meio escondido, camuflado pelas primeiras barracas, com roletas e dados, e um povaréu danado perdendo dinheiro para os sabichões de fora. Me pergunto se a autorização é do delegado de Polícia ou da Intendência. Talvez dos dois, mancomunados.

Chegamos à Ilha da Luz, um belo recanto ligado ao continente por antiga ponte de madeira. Lá se colocou o primeiro gerador elétrico do país, donde o nome. Hoje, aqui, a única luz é a das fogueiras. Pretos fortes tocam tambores. Zacarias canta a dança:

Dentro do rio grande
Tem coisa que admirei:
Traíra com vinte palmos,
Grumatá com dezesseis…
Depois, as perguntas enigmáticas:

— Engradei minha casa, faltou cabué.

— Bicho que voa, e dá leite quando cria.

Hulda me dá as dicas: Cabué é a mulher, sem a qual nenhuma casa é completa, e o bicho mamífero voador é o morcego.

Zacarias distribui cachaça a todos da roda.

É gunguna, gunguna,
Eu sou gunguná.
É quizomba, quizomba, quizambué
Izambuá…
Cantam homens e mulheres alcoolizados.

A noite estava fresca. Deito-me, com Hulda, nas areias da margem do rio, ouvindo ao longe “O meu Santo Antônio, onde é que eu vou parar…” E a alemãzinha, sussurrante:

— Eu te amo tanto, tanto, que até te perdôo o noivado…

— Ó meu Santo Antônio, onde é que eu vou parar, — cantam os jongueiros, e me pergunto eu, onde vou eu parar?



12. CASAMENTO, EMPANADO POR LUTO RECENTE

Altivo Braga me convida para ir a uma briga de galos. Conquanto proibidas pelo meu padrinho, as rinhas são célebres, nesta região. Aceito o convite para preencher minha tarde dominical. À noite, vou levar a noiva ao cinema, estão passando, no Broadway, O vale dos reis, uma superprodução americana.

Na rua passa, em ensaio, o pessoal que toca na Lira de Ouro. Fico admirado — estão com uniformes cheios de debruns e botões dourados, de sopro são quatro pistons, três clarinetas, três trombones, um sax-bemol, três sax-altos, duas tubas, e de percussão uma bateria completa, com bumbos, taróis, tambores e triângulos. Vão em cima de um caminhão, e o destaque é o menino Bebeto, filho do baixista, uma atração no triângulo.

Altivo me diz que a banda conta com o auxílio da Intendência e do comércio local, e existe há mais de meio século. Desconfio que os uniformes bonitos são uma de nossas características nacionais.

À frente da rinha, um grupo dança uma capoeira, levantando poeira. A sede fica bem fora da cidade e, para burlar a proibição, esconde-se sob o nome de Sociedade Avícola de Princesa. No salão há arquibancadas, tendo ao centro um tambor de couro, onde pelejam as aves.

— É melhor que as do Brasil, — diz-me, orgulhoso, o presidente da entidade.

As apostas são altas. O maior galista é o chinês da lavanderia.

Quero ver uma briga, mas sou interrompido por um garoto que soube de minha presença ali.

— Venha, depressa, doutor, mamãe esfaqueou papai.

É um velho preto com um corte nas costas, nada grave. Resmunga:

— Rachei a lenha, depois subi ao telhado para consertar os estragos dos urubus. Quando desci, a mulher, sem quê nem para quê, fez-me este estrago…

Improviso um curativo, enquanto a mulher explica:

— Soube que este sem-vergonha estava arrastando a asa para uma marafona das vizinhanças. Depois que a Polícia fechou a “zona” de Basiléia, com perdão da má palavra, as putas estão infernando as famílias.

O ferido nega de pé junto:

— Eu sou um homem para cumprir minhas obrigações; não gosto de mulher dama, pois tenho a minha que é uma fera…

É de tardinha, nuvens de mosquitos entram pela janela. Recomendo que coloquem telas e apresso-me para não perder a hora do cinema, os galos ficarão para a próxima, quem sabe?

Agora, estou na sala de visitas do Sr. Hermolan. Ouço as Quatro Estações de Vivaldi, tam, tam, tarantam, tam, tam, a música me martela a cabeça. No alto de uma algorobeira vejo, pela janela, um pássaro, peito amarelo estufado, a dar seu grito de amor: — Bem-te-vi, bem-te-vi…

Priscila chega. É a primeira vez que nos vemos, a sós. Quero abraçá-la, mas surpreendo-me com a frieza dela. Faço-lhe um dengo, ela se afasta.

— Então o senhor, enquanto fiquei sozinha, estava com uma alemãzinha nas areias quentes do rio, não foi?

Pego de surpresa, não nego, não há como negar fato tão notório, até as empregadas da casa me viram lá, naquela noite festiva e enluarada. Ela continua:

— Eu gosto de você, você diz que gosta de mim, mas só me caso se você abandonar logo essa vagabunda… Promete?

Olho-lhe nos olhos e prometo.

Prometo e cumpro. Arranjo um apartamento quarto e sala, ao lado da casa do Altivo Braga, na rua do Comércio, comunico minha mudança a D. Elza, do hotel, ela sugere que eu continue a fazer refeições em seu “estabelecimento hoteleiro”, mas agradeço. Almoçarei no Belas Artes, de um português, meu cliente, Seu Laurindo Castro, o melhor da cidade. Deixarei de jantar, farei um lanche rápido, em casa, estou engordando a olhos vistos.

Esta é a minha última noite no hotel. Não resisto, e vou despedir-me de Hulda, é o mínimo que tenho de fazer. Prometo não a desamparar — passei para o nome dela um terreno, no Bairro Machado, que eu acabara de comprar.

— Lá farei uma casinha para você e os seus.

Recusa-se, altivamente.

— Eu fui com você, por amor.

Amor, amor, negócios à parte, a pobre menina não sabe que nossa mútua atração foi pura reação química. Dou-lhe três beijos, na face, “para que você encontre um bom marido”. Deixo-a, com seus longos louros cabelos soltos, e…

De madrugada, batem-me à porta. São os donos do hotel que, tensos, me explicam:

— Ouvimos um baque, fomos ver e era a menina Hulda, em meio a uma poça de sangue… Cortou os pulsos…

— Oh! Não…

Subo as minhas conhecidas escadas para o sótão, de dois em dois degraus. Lá o quadro apavorante para o leigo. Hulda no chão, em meio ao próprio sangue. Pulso zero. Massageio-lhe o coraçãozinho, tendo a respiração boca a boca, naquela boca tantas vezes beijada por mim. Ela está inconsciente. Com torniquetes improvisados, faço cessar o fluxo de sangue. À primeira vista, parecem superficiais os cortes. Mas o socorro chegou tarde. No dia seguinte, de minha janela, vejo aquele pequeno corpo sair do hotel para ser enterrado no alto do morro. Não tenho coragem de aparecer para prestar homenagem àquela que se matou por amor. Poucos sabem de nosso “caso”, ou talvez muitos saibam e não falem, sendo eu quem sou?

Bonesi, o farmacêutico linguarudo, comenta: “Quem nasce torto, tarde ou nunca endireita. Esta menina estava entre as galinhas da cidade. Louca, completamente louca, até comigo, um velho, ela se engraçou, vindo, seguidamente, à farmácia, com motivo ou sem ele.”

Estamos sentados no grande banco da farmácia, Bonesi, eu, Rage Miguel e Altivo Braga. De suicídios, a conversa passa para as cobras, comuns na região.

Altivo: Depois da língua humana, o pior veneno é o da cobra…

Bonesi: Em Duas Barras, aqui perto, um recém-nascido era amamentado pela mãe. A mãe, à noite, sempre com muito sono. Uma cobra vinha e tomava o lugar do neném, no peito da mãe. A criança foi definhando, definhando, e quando descobriram, mataram a cobra, mas a criança também morreu, tão anêmica estava.

Altivo: Ainda dizem que pescador é que conta mentiras.

Rage: Na roça, o ofendido de cobra chama um rezador ou põe emplastro de batata de taioba ralada em cima da ferida. Em seguida, amarram o cipó chamado coração de Jesus, fazendo um torniquete para que o veneno não suba, geralmente os ferimentos são no calcanhar, os homens trabalham descalços. Há quem banhe, também, com leite de vaca…

Bonesi: Há os que colocam o pé numa bacia com querosene. Santo remédio.

Concordam todos que as mais peçonhentas cobras daqui são jararaca, sucuri, surucucu bico-de-jaca, a mais perigosa, cascavel, coral, linda com seus anéis vermelhos e pretos.

Rage: Já ouvi dizer que, quando conseguem matar a cobra, arrancam-lhe o coração e o comem cru… Se não mata, engorda…

Altivo: Para evitar as cobras, queimamos pano velho ou chifre de boi, ou levamos um dente de alho no bolso, quando vamos caçar. Um amigo meu piava, um pio destes da Fábrica Coelho, e as cobras o seguiam, placidamente… Sinto que meus amigos estão conversando sobre cobras para me distraírem, senhores que são de meu segredo de Polichinelo. Estou sorumbático e encerro o papo:

— Bom mesmo para mordida de cobra é soro antiofídico.

— Quando tem, — retruca o Bonesi, — agora estamos em falta.

Das cobras, passaram às caçadas e à famosa fábrica de pios de caça da Ilha da Luz. Eles fazem, artesanalmente, pios para todas as aves. Tem até um cri-cri-cri que imita os grilos, os pássaros pensam que é comida e vão se chegando.

Altivo, rindo: Eu sou parente dos Coelho, por parte de mãe. Dizem que eles até fazem pio para caçar mulher. Mas isto é um segredo guardado a sete chaves.

Bonesi, confiado: Acho que o nosso doutorzinho aqui tem um pio desses, “burro mimado, trabalho demorado”.

Com esta eu me despeço, emburrado. Creio que os três falarão, agora, de mim. Enfim, chega o dia de meu casamento.

Olho a foto oficial, do fotógrafo Ugo Musso, e vejo o Sr. e a Sra. Hermolan, Priscila e eu, parentes, amigos, dezenas de crianças. Estamos na escadaria, em frente à Primeira Igreja Batista, com suas imponentes e destoantes colunas romanas. Muitos presentes, muita festa, churrasco para trezentas pessoas.

Depois, Priscila e eu pegamos o trenzinho de bitola estreita e vamos para Maruí, na praia, onde Hermolan tem um casarão de madeira. Ainda não é verão, mas os dias estão agradáveis, em lua de mel tudo é bom. No entanto, há uma certa frieza, entre nós interfere o cadáver de Hulda. Além disto, Priscila, educada pelas freiras do Cristo Rei, tem preconceitos que me ferem.

Corro atrás dela pela areia fina e escura da extensa praia de Maruí. Seus pés se afastam de mim, rapidamente. Corro e corro. Alcanço-a, pego-a por trás, e caímos no chão, Hulda, na Ilha da Luz, vejo-a nitidamente.

Cumpro os meus deveres de marido. No devido tempo, nasce uma menina, sadia e bela, que Lúcia se chamou e foi, por algum tempo, a luz de minha vida.



13. AINDA SOBRE PRINCESA, COM PESCARIA DE PERMEIO

Soube que ontem houve um tremendo bate-boca entre o presidente da Intendência e a louca de Princesa, a secretária da Educação. Rocha x Braga. Depois, ambos vieram, cada um de per si, pedir meu apoio. Desconverso, não pretendo participar dessa briga de aldeia. À saída, Duílio Rocha reclama:

— E ainda por cima o irmão dela, seu amigo, que vive bêbado, está me caluniando na rádio, depois que o demiti da redação da Tribuna do Norte.

O assunto é novo para mim, nem sabia que Altivo era redator do jornal oficial da Intendência.

Agora moro na mansão do Hermolan, mas mantenho meu apartamentozinho ao lado da casa do Braga. É onde me recolho para refletir.

Passo na casa dele para saber como andam as coisas, e o encontro escrevendo a História de Princesa.

— O que há?

— O que há é roubalheira grossa, preços superfaturados, e a Zaira abriu a boca no mundo, enquanto você gozava as delícias de Maruí, do luar de Maruí, das areias da praia…

Pergunto-lhe se quer voltar para o jornal.

— Nunca, nunquinha. A rádio está crescendo, embora as firmas locais ainda dêem poucos reclames. Elas vendem tudo que produzem, sem precisar de propaganda. As coisas estão, no entanto, melhorando, e eu mais o Orlando Moreira, aquele que era gerente do banco, agora fundamos a Colibri, a primeira agência de publicidade do país. As coisas vão entrar nos eixos…

Depois mostra-me algumas descobertas que fez na biblioteca da Maçonaria, pesquisando jornais antigos da cidade.

— Estou no ano de 1845, quando foi eleito o primeiro intendente de Princesa, pelo Partido Liberal, o Dr. Manuel Leite da Cunha Melo, bisavô do seu sogro. O jornal O Princesense diz que ele, conceituado médico, deu vida nova à urbe com seu plano de calçamento a paralelepípedos das principais ruas, abertura de estradas que convergem para a então vila. Construiu a ponte municipal, instalou pára-raios no perímetro urbano, e um barracão para receber imigrantes… É verdade que dias mais tarde o jornal informa que Bós Andréa fez uma subscrição para socorrer os imigrantes, completamente abandonados antes de serem encaminhados às fazendas a que eram destinados. E relata que as ruas estão em estado pantanoso, com cães, porcos e cabritos a vagar por elas. Creio que aqui houve uma briga política, tão comum em nossa cidade.

Faço menção de ir embora. Altivo, empolgado, me retém:

— Olhe aqui, conquanto a libertação dos escravos tenha sido feita desde 1815, muitos senhores retiveram-nos como sub-assalariados, até a revolta de 1840. Aí então, muitos senhores dispensaram de suas funções seus ex-escravos — que de certa forma continuaram escravos — e, pasme, os “liberados” que vieram engrossar nossa periferia, com seus batuques e cangerês, fundaram um Clube dos Agradecidos! Ainda de minha anotações, há referências ao carnaval nos Caçadores, este mesmo que existe até hoje, com apresentação de um Zé Pereira e quatro cenas críticas muito apreciadas. Samuel Levy & Cia., uns judeus que dominavam a praça, anunciam artigos modernos chegados de Lisboa, fazendas, vestidinhos e paletós. Há um teatro local dirigido por um Sr. Lessa. A mulher dele, a Leodegária, que distribuía seus favores aos grandes do lugar, fora muito elogiada como atriz principal em A Traviata. A próxima peça será Miguel, o Operário. No dia de São Sebastião, uma banda de música havia percorrido as ruas, e à noite houve leilão e fogos de artifício, coisa nunca vista…

Interrompo-o:

— E como você vai organizar todo este material?

— Nem tudo vai entrar. Só vou relatar as grandes linhas do desenvolvimento. Termos um teatro há cem anos é culturalmente importante, não?

Concordo e me levanto. Faz-se tarde.

— Espere um instantinho só, — diz meu amigo. — Ouça só este requerimento, que interessante.

Aguardo solícito. E Altivo, das brumas do século passado, recria a história de um homem que não se conforma em pagar pedágio na recém-inaugurada Ponte Municipal, enquanto existem privilegiados que são isentos. O intendente despachou em letra firme e verde: “Todos são obrigados a pagar o direito de passagem, exceto os presos escoltados e praças de pré, com um passe nominativo.”

Altivo conclui: Chamada no delegado de Polícia, que era dos conservadores, enquanto liberal era o intendente. Uma delícia, igualzinho a nossos dias.

Concordo, novamente, e outra vez me despeço, mas D. Bebé, mulher do Altivo, me traz pudim de leite e um copo d’água gelada. Tenho de ficar mais um pouco. Altivo me convida para uma pescaria amanhã, domingo. Detesto a solidão da pesca, mas, para fugir de casa, aceito.

Estamos numa grande canoa. Altivo fala, entusiasmado, das belezas do rio, as montanhas circundantes, o vento, as cachoeiras, as tempestades inesperadas, as enchentes, o pico do Estandarte, ao longe, as flores, os animais selvagens, e sobretudo os peixes. Aqui a gente se esquece das futricas da cidade e fica diluída entre coisas naturais.

A canoa sobe o rio, chape, chape, e a água cintilante se abre, cantante, como que a saudar a chegada de Altivo Braga, grande pescador do Rio Grande do Norte, e a mim, Dr. Jader Távora, seu acólito. Olhei para baixo mas não consegui ver o fundo, até me acostumar com aqueles grotões pedregosos e escuros.

Enquanto não chegamos ao pesqueiro onde silêncio absoluto será obrigatório, Altio fala sobre o camarão, que é a melhor isca. Minhoca só serve de isca para peixe miúdo, piaba, cará, moréia. Costumam usar também miolo de pão ou bolinhos de fubá. Eu só uso camarão.

O peixe mais esperto é a piaba, se você não estiver atento ela come a isca e vai embora.

O melhor peixe é o robalo. Mas temos também traíras, bagres, piabanha, jundiá, um sem número de espécies.

Há pessoas que jogam bomba no rio, para pescar. É um absurdo. Mata peixe grande e peixe pequeno. Um pescador, o Castelo, até perdeu a mão quando a bomba explodiu. Tem também os redeiros, os tarrafeiros, os que armam espera, põem covos.

Mas a pesca, pesca no duro mesmo, arremativo titivo, é no anzol. É preciso ter paciência para ficar horas e horas parado vara na mão.

— E lagosta, Altivo, aqui dá muito?

— Já deu mais. Lagostim do rio, com puã, diferente da do mar. Os pescadores levam um arame grosso, com um anzol chumbado na ponta. De pedra em pedra, eles vão cutucando locas, eles sabem os pontos certos. Uma dúzia de lagostas, para um pescador tarimbado, é trabalho de uma hora, se tanto.

Chegamos ao pesqueiro, um poço entre duas pedras, com um ingazeiro à margem. Ficamos ali duas horas, no mais absoluto silêncio. Altivo pescou dois robalinhos, um quilo cada, eu, desajeitado, nada tirei do rio, não sentia o beliscar dos peixes. Altivo enxovou:

— Veio dar comida aos peixes, doutor?

Descemos o rio satisfeitos e esfomeados. Entardecia e um vento frio soprava do sul. Altivo falou:

— Mudança de tempo à vista. Por isto pescamos pouco hoje…

14. DESCIDA A INFERNOS CELESTIAIS

Estou no Banco do Estado para receber meus vencimentos. Agora estou casado, tenho mulher que me trata a distância, e uma filha que me agrada muito. Estou insatisfeito, falta-me algo.

Olho para a funcionária Mariah, em seu aquário financeiro, contando as notas, é muito jovem e bela, seus cabelos pretos descem pelos ombros, e me pergunto se não seria mais feliz com essa moça pobre, do que com a rica Priscila.

Sei não, a vida não é discreto perfume francês, seus odores às vezes são desagradáveis, semelhando a podridão de lamas fétidas, e eu querendo sair do buraco em que me meti.

Chegou a minha vez, na fila, e deixo de filosofar. Recebo meus dinheiros e me mando. Na rua, o delegado de Polícia informa-me que prendeu, à porta do Liceu, os primeiros traficantes de maconha da cidade. São dois brasileiros, recém-chegados do Rio de Janeiro. Eco de memória me dá sensação de culpa: nas palestras que fiz, nas escolas, falei contra as drogas, assunto em moda no meu tempo de estudante, no Brasil. Quem sabe não ajudei a despertar o desejo por novas experiências em nossos adolescentes? Aqui a maconha, conhecida como erva de Santa Maria, é comum, e os pescadores de Maruí, quando vão para o mar alto, levam pequenas provisões para esquentar o corpo, defesa contra o frio e a salsugem. O arbusto cresce em qualquer quintal e, até então, não era proibido seu uso. Com os estudantes o caso muda de figura. Pobre de mim, tão ignorante e metido a senhor do mundo.

De madrugada, estou no meio um plantão na Santa Casa, quando há uma chamada para a fábrica de cimento: uma explosão na caldeira. Não temos pessoal paramédico qualificado, entro na ambulância e fui para a fábrica. São quatro os feridos e há muita confusão em torno deles. Mando que todos se afastem. Peço ao enfermeiro que faça curativos nos menos gravemente atingidos pelos estilhaços e fogo, e vou cuidar do gerente, um russo branco, engenheiro químico, que recebeu maior impacto no peito. Chama-se Fiodor Dorofefe e, segundo me lembro, foi quem mandou matar o açougueiro que andava com a mulher dele. Ele manda e desmanda aqui, enquanto o antigo dono da fábrica, Atílio Guasti, mora no Rio de Janeiro. A fábrica foi vendida, depois da revolução, e o gerente teve que pegar no pesado. A queima do calcário misturado com argila é feita a 800o centígrados, houve um problema na caldeira que alimenta o forno e deu-se a tragédia.

Olho, desesperançado, para o pequeno homem. Como infundir-lhe esperança, com as graves lesões que ele sofreu? Pouco tempo de vida lhe resta. Digo-lhe a única palavra de russo de que me lembro:

— Kharachó, kharachó… Muito bem, tudo vai ficar bem.

O homem não fala, mas vislumbro-lhe um leve brilho no olhar.

Removo-o, com infinito cuidado, para a ambulância. O homem está nas últimas. Atravessamos a ponte, passamos a praça Jerônimo Ribeiro. Na ladeira, o homem tenta falar alguma coisa mas só entendo Cici, Cici. Depois soube que Cici é a D. Cecília, esposa dele.

O gerente não resistiu aos ferimentos e morreu, antes de chegar à Santa Casa. Em seu peito brilha um crucifixo de ouro.

Bonesi comenta, no enterro, a beleza da viúva, ostentando sobre o preto vestido aquele belo crucifixo de ouro e registra os fatos com mais um provérbio:

— Luz em casa de cego é chuveiro no mar…

Dizem que tragédias puxam tragédias, assim como dinheiro atrai dinheiro. Dia seguinte, estou no Centro de Saúde, e minha mulher manda chamar-me, com urgência. É a primeira vez que ela o faz. Lucinha está com febre alta. Pai de primeira viagem, embora médico, de acordo com a ética, mando chamar Rage Miguel. Em princípio diagnostico uma gripe forte, uma infecção viral, dou-lhe antipiréticos e gotas de vitamina C. Volto ao posto, e mando que Priscila espere a opinião de meu colega.

Rage, mais experiente, faz com que a criança tente mexer-se. A dificuldade é evidente. Os meus remédios não fazem efeito. Rage, a contragosto, lembra a epidemia de Heine-Medin que grassa na cidade. Tiro certeiro, minha Lucinha contraiu paralisia infantil.

Quando a febre baixa Rage manda aplicar-lhe soro e gema globulina. Ainda não há tratamento para este mal.

Minha mulher chora e me culpa porque voltei ao trabalho no dia em que a doença se manifestou.

— Priscila, ela já estava infectada pelo vírus, nada havia a fazer…

Ela não se conforma. Lembro-lhe que, ainda estudante, li um artigo em uma revista norte-americana em que um tal Dr. Salk dizia que suas pesquisas em busca de vacina eficaz contra a paralisia infantil tinham sido coroadas de êxito. Além disto, há outras vacinas em fase de experimentação, para a prevenção da doença. Mas nós, aqui, ainda não temos estes recursos. Que fazer, Priscila? Conformar-se.

Aqueles primeiros passos que minha filha dava foram tolhidos pela doença, que, em breve, quase seria erradicada do mundo.

Passei três dias e três noites em casa, acalentando a pobrezinha. O rancor de minha mulher continuou, cada vez mais forte. Penso que ela se transformou em uma ostra e se fechou, em suas conchas, sobre nossa pérola, que, queira ou não, é de nós dois.

A convalescença foi longa e eu cada vez mais distante de minha filha, por culpa da mulher. Dos que tiveram a moléstia, em Princesa, só Lúcia ficou paralítica. A solidariedade citadina é total.

No Centro de Saúde, Lourdes Santos, Lourdes, enfermeira, se desdobra em gentileza. Faz-me chá, leva-me bolinhos de fubá, e pede-me que escreva uma “Lembrança” no livro de poesias dela.

Hoje é dia de visita vespertina ao Asilo dos Velhos, Lourdinha diz que vai comigo, pois recebeu um chamado da Madre Superiora, a Irmã Maria José.

Na volta, noitinha já, resolvemos descer a ladeira a pé, a caminhonete que nos ia buscar, por qualquer motivo, se atrasara.

Ninguém na rua. Àquela hora todos ouvem o Ângelus na rádio local. As casas, no lusco-fusco, parecem desabitadas há seculos. Estamos numa cidade fantasma. Uma transversal à ladeira, grimpando por uma encosta do morro, é onde mora a Lourdes. Era um beco sem saída, e por ele, eu e a moça, em todos os sentidos, entramos. Avistamos, à luz de uma lua crescente, lá em baixo, o Rio Grande do Norte, brilhando prateado e serpeando entre as pedras. As casas aqui têm pequenos jardins, à frente, e árvores no quintal, aos fundos, algumas ultrapassam os telhados.

— É aqui, — mostrou a moça um portãozinho verde, e sinto muito afeto em sua voz.

— Encomenda entregue, sã e salva…

— Não quer entrar, posso fazer-lhe um café…

— Não quero incomodar sua companheira…

— Não se lembra que Arlete foi passar as férias em Maruí? Ela lhe falou…

Lembrei-me e entrei. Era uma casa pequena, de dois quarto, bem arrumadinha. Lourdinha logo improvisou a mesa do lanche, com pão, biscoitos, azeitonas, uma garrafa de vinho Grandjó que estava na geladeira — para uma ocasião expecial — reclamou da porta que não fechava direito, aumentando o consumo de energia, não sou da Central Elétrica, ri, rimos, o vinho branco e capitoso desce bem, conversamos e dormi lá aquela e muitas outras noites.

De manhã, bem cedo, passei no hospital e, só por hábito, telefonei para casa dando a desculpa de sempre:

— Um doente grave…

Ela nem se interessou.

Porém, uma noite, quando cheguei, ela largou o bordado matiz que estava fazendo e disse:

— Recebi uma carta anônima e não acreditei. Depois de tudo que o senhor fez a sua filha, não a atendendo quando necessário…

— O que há agora? — perguntei cínico.

— O senhor está vivendo em concubinato com sua enfermeira. Eu vi com meus próprios olhos, que a terra há de comer. Só não me desquito, porque mamãe, como católica, ia ficar muito triste. Papai dá a maior força à separação…

Levantou-se, parou um instante, controlando a raiva, e com ódio, uma violência de que não a sabia capaz:

— O senhor, no meu corpo, não bota um dedo jamais…



15. EU, MINISTRO

Aprisionei-me em uma redoma de silêncio e tristeza. Nem à casa de Lourdinha ia mais, pois a colega voltara das férias. Tive uma conversa séria com meu sogro.

— Compreendo que minha filha exagere. O senhor não tem culpa da paralisia de minha neta. Mas seu comportamento não é o que se esperava…

— Agradeço a compreensão, mas vou mudar-me, de novo, para meu apartamento. O ar aqui está irrespirável.

— Por mim, concordo. Mas o senhor sabe as restrições ao desquite, principalmente da minha mulher, agora tão doente.

De fato manifestara-se nela um tumor canceroso na mama, e ela estava tão assustada com a operação a que iria submeter-se, no Rio de Janeiro, que não dava palpite no drama que estávamos vivendo, no palacete.

Antes de efetivar a mudança, recebi um telegrama: “Sua presença Capital necessária e urgente. Avião irá buscá-lo amanhã, dia 8, pela manhã. Ass. Constâncio Alves, Presidente.”

Ora, quando recebi o telegrama já eram nove horas do dia 8. Em breve um avião pequeno, tipo teco-teco, sobrevoou a cidade e desceu no campo local. Uma kombi veio buscar-me.

Mal e mal me despedi de Lourdinha, e dei um aceno para meus sogros e mulher, um beijo em minha filha. Agora estou num teco-teco cruzando as águas litorâneas, viagem inversa da que fiz de ônibus, três anos antes.

Nos atóis de Maruí havia um barco encalhado. Perguntei ao piloto:

— É um pesqueiro?

— Não, doutor, é barco de contrabandistas. Eles levam para o Brasil pássaros nativos e trazem drogas. Quando eu passei por aqui a Polícia estava soltando as aves: papagaios, azulões, cardeais, curiós, sabiás, rolinhas, melros e centenas de coleirinhos, uma festa para os olhos. Não sei se estes passarinhos sobreviverão nestas matinhas de restinga, Deus é grande…

O Libertador estava cada vez mais louco. Aquele salão do Palácio, antes tão austero, estava cheio de antigüidades, lustres, oratórios, santos roubados às igrejas jesuíticas. Ao fundo, o estrado do presidente tinha se tornado um pequeno palco, como nos teatrinhos da roça. O velho vivia em virtual irrealidade. Contavam que um político fora cumprimentá-lo, tropeçou e caiu ajoelhado à sua frente. O presidente, paternal, deu-lhe bênção, e exclamou: Pode levantar-se agora, meu filho…

Como sempre, ele foi cordial comigo. Falava baixinho, como se segredasse. Comunicou-me que demitira o antigo ministro da Educação e Saúde, um médico que ousara dizer que ele, o Libertador, estava esclerosado, e queria que eu o substituísse. O decreto já estava pronto. Desta vez, não pude recusar. O ato caiu como uma bomba no país, principalmente em Princesa.

O libertador disse-me que a única política que desejava naquela pasta era a da educação e saúde para o povo, nada de politiquice. Mal sabia ele que o pedido era impossível de ser atendido — quatrocentos anos de caos colonial e burocrático não se removem de uma penada. Declarou-se, mais uma vez, insatisfeito com a Assembléia Nacional Constituinte e confessou-me o plano de dissolvê-la:

— Vou baixar uma constituição moderna, liberal, que me foi ditada por Deus, em meu retiro do morro de Santa Clara.

— E o Exército?

— O Exército está todo comigo.

Convidou-me para almoçar no Palácio de Santa Clara, a residência fortificada que construíra no alto de um morro, mas, lembrando-me do Bonesi, ousei brincar:

— No primeiro dia o hóspede é santo, no segundo tem rabo e no terceiro é diabo…

— Entendo, e vou deixá-lo à vontade.

Aluguei uma casinha na Fonte Grande, final da rua Sete, onde todas as manhãs uma limusine do Ministério ia buscar-me para o trabalho. A meu cargo estavam, no país, doze hospitais, 35 centros de saúde, 504 escolas primárias, 22 secundárias, além da obrigação de fiscalizar quinze escolas confessionais particulares. Nenhum curso superior. O projeto de universidade hibernava em uma das gavetas de meu gabinete.

Em começo de agosto de 1959, o Libertador dissolveu a Assembléia Constituinte, alegando ações impatrióticas dos deputados, e no mesmo dia outorgou a Carta inspirada por Deus — segundo dizia — cópia do projeto de um advogado de Santo Eduardo, conhecido como Chico Ciência.

Chamei para Vitória Lourdinha Santos, como chefe de gabinete, Altivo Braga para dirigir o Departamento de Cultura e a irmã dele, a professora Zaira Braga, de Princesa, para o Departamento de Educação. Quem quiser que reclame.

Altivo iniciou vagos projetos literários, entre os quais o Dicionário de Santa Maria do Atlântico, que jamais foi concluído. Toda tarde ele vinha a meu gabinete, sempre tinha uma história a contar.

— Essa eu ouvi na Rádio Mayrink Veiga, do Rio de Janeiro: Um velhinho de 86 anos morre. Todos combinaram não avisar ao pai dele, de 112 anos. Mas o velório foi na sala e o pai lá entrou. Ao ver o filho no caixão, põe-lhe a mão na testa e diz: Eu sabia que este menino não ia se criar…

Noitinha já, deixo-o no bar do Hotel Nacional (antes da libertação era Sagres), onde toma dezenas de batidas de caju-amigo, enquanto Lourdinha e eu subimos o morro, o inferno ficara em Princesa.

O Ministério se reúne uma vez por semana. Somos seis ministros:

1o) Economia e Administração, ocupado por D. Dulce Corte Real, pernambucana, com Ph.D. em Harvard. Foi escolhida a dedo por meu padrinho, sabe de tudo, iniciou a informatização da pasta com um grande ordenador IBM, recém-adquirido. Simpatizo com ela à primeira vista.

2o) Defesa: coronel Mendonça Falcão Cascudo, que era sargento ao tempo dos portugueses, amigo do Libertador, mas falso como ele só. Só quer saber de aumento de soldo.

3o) Agricultura, Viação e Obras Públicas: engenheiro Gilberto Furtado, dizem que ele ganha comissão de vinte por cento sobre todas as obras empreitadas.

4o) Interior e Justiça: Dr. Aurélio Bernardes, baixinho, vaidoso, inteligente, foi quase padre, é o mais conhecido advogado do país e tem a maior biblioteca jurídica particular, rivalizando com a de Pontes de Miranda, jurista brasileiro.

5o) Negócios Exteriores: a cargo de um velhinho gagá, Dr. Almir Ferreira, que em toda reunião, citando o Código de Havana, diz que precisamos ter representações diplomáticas em todas as cortes européias. Não é mudado, pois tem muitos amigos no exterior.

6o) Educação e Saúde: Dr. Jader Távora, eu, afilhado (dizem que filho) do Libertador. Sem comentários.

Em todas as reuniões falam os ministros, principalmente rebatendo as críticas da imprensa, então livre, e a sessão é encerrada pelo almirante presidente, com um longo discurso esotérico, citando Santa Joana d’Arc e Nostradamus. Cada semana, pede a um ministro que fique. Na terceira reunião fui convidado para o aniversário da ministra da Economia, única mulher de nosso grupo, e fomos, eu e Lourdinha, a um daqueles luxuosos apartamentos novos da Praia do Canto. Surpreendi-me porque a ministra me tirou para dançar, e tocavam o bolero “Besame Mucho”. Indireta?

Quando chegou minha vez de ser sabatinado a sós, comecei reclamando do excesso de segredo do governo — quase todos os documentos têm carimbo de “confidencial”, com uma gradação ridícula de secretos, restritos aos diretores de departamento e altamente secretos que só podem ser manuseados pelo Serviço Secreto e pelo Libertador, não passando pelos ministros. Explodi:

— O que tem a remoção de uma professora de tão altamente secreto?

— Às vezes tem, meu filho. — E parodiou: — O Estado tem razões que a própria razão desconhece. E mais, — concluiu, — depois da dissolução da Assembléia, há focos, felizmente poucos, de oposição, que devem ser reprimidos. O Cascudo tem de apertas as porcas.

Falo-lhe também na carestia, e na insatisfação que noto nas ruas, bem maior que em Princesa. Resposta: Aqui é o centro do poder. O povo é assim mesmo. Se eu lhes der ouro em pó, eles, assim mesmo, reclamarão. São ratos e, em casa de rato, sempre falta queijo.

Depois confirmou a aliança secreta com os comunistas.

— Já lhes dei até a tipografia do Serviço de Reaparelhamento Escolar, onde eles imprimem, patrocinados por criptos, a Folha de Santa Maria, nome bem próprio para um bando de ateus.

A medo, falei-lhe do zum-zum-zum que envolve a atuação do ministro da Viação, ao que ele se exaltou, trepou nas tamancas, levantou-se, imenso, e gritou:

— No meu governo não há corrupção. Só trabalhamos em benefício do povo.

Acalmei-o como pude. Falei na Universidade de Santa Maria, grande sonho dele. Ao fim, ele disse que acabara de contratar com o jornalista Assis Chateaubriand, do Brasil, a instalação da retransmissora local da rede Tupi de televisão.

— É o progresso, e o progresso é natural… Confie em mim, e continuaremos à frente deste país até o ano 2000.

A conversa mudou de tema, e na varanda do Palácio, surpreendentemente, o Senhor Kurtz, copo de uísque na mão, filosofou:

— Olha, é mais vantajoso acreditar que há vida depois da morte. Você não crê, eu sei. Mas se houver, você não perde nada e já está, quando morrer, acostumado com a idéia de andar flutuando pelo espaço. Mas, aqui entre nós, minha convicção é que a morte é um sono sem sonhos. Não há vida depois da morte. Isto é, não há vida individual. Mas isto pouco importa, porque tudo é vida.

Fiquei bestificado, olhando para o velho.

16. ESTA DESORDEM BUFONESCA

Baudelaire, falando contra a industrialização em 1851, escrevia em um de seus Cadernos: “O mundo vai acabar… Não digo que será reduzido à desordem bufonesca das repúblicas da América do Sul,” etc. etc.

Lembro-me disto em relação à minha ilha querida, Santa Maria do Atlântico: somos a mais nova república da América do Sul e caímos numa desordem bufonesca: as comunicações do governo com o povo se deterioram a cada dia que passa. Os ministros se entreolham, ciumentamente. O Libertador delira.

Não é que o Duílio Moreira, que eu propus para intendente de Princesa, veio pedir-me um cargo na Capital. Recusei, ele é inimigo de D. Zaira Braga, que está no meu “staff” e fazendo um bom trabalho no setor educacional. Saiu ressabiado, talvez meu inimigo gratuito.

No dia 15 de novembro de 1959, em Santa Maria do Atlântico, estoura a revolução das rosas que instaurou o Estado Novo. Motivo: a insatisfação popular, a senectude do presidente vitalício, as agruras de sua próxima sucessão, a corrupção governamental, a inflação galopante.

Começou às 2 da madrugada e às 8 da manhã os revoltosos, chefiados pelo nosso ministro da Defesa, o coronel Cascudo, já haviam tomado o poder.

Do elevado, em frente ao Instituto dos Advogados e Academia de Letras, os soldados, adredemente embriagados, atiraram com modernos fuzis contra o Palácio do governo, por sobre a cabeça do busto do protomártir da independência, José Martins. Lavrou um incêndio no fundo do prédio, onde funcionava a Imprensa Oficial.

O Libertador foi preso e desapareceu. As notícias eram desencontradas. Alguns diziam que ele se suicidara, outros, que morrera no incêndio.

As estações de rádio, em meio a músicas marciais, anunciavam que, sem derramamento do sangue generoso e bom do povo marinense, a Revolução Redentora fora vitoriosa.

Havia, no entanto, um divórcio entre as notícias e a realidade: a praça Oito e a avenida Jerônimo Ribeiro estavam juncadas de corpos, feridos a balas dum-dum, e carros queimados por coquetéis Molotov, fruto da resistência ensaiada pelos estivadores.

Mas, sem dúvida, a vitória dos rebeldes foi rápida, embora toda vitória seja, com o tempo, uma derrota. Só um tolo — e por certo Júlio César era um tolo — diz: Cheguei, vi e venci.

Nos estilhaços do dia, misturavam-se os prazeres do caos com o desejo da maioria de instauração de uma nova ordem, que veio, repito, com o nome de Estado Novo, tão velho quanto as carunchosas mesas do palácio governamental.

A “Redentora” foi, no início, uma festa — era fim de primavera, quase verão, e o povo queria ir às praias da ilha. Os que restaram, felizes por estarem vivos, eram vistos à rua, com rosas à mão, saudando os novos donos do poder.

A Junta Trina Governativa que se instalou, e instaurou o regime do terror, era composta do coronel Cascudo, do vaidoso bacharel Bernardes e, como representante do interior — pasmei — o intendente de Princesa, o meu velho protegido Duílio Moreira.

Fiquei em casa, ouvindo rádio, e aguardando minha possível prisão. Lourdinha se homiziou em casa de uns parentes dela, no Mulembá.

Estava num inferno, mas dizem que Deus é tão compassivo que aos que estão no inferno ele faz pensar que no céu estão. Assim era eu.

De maneira inesperada bateu-me à porta o servente Zacarias, amigo de minhas andanças em Princesa.

— Doutor, eu vim buscá-lo…

— Você vai me levar preso…

— Que é isto, doutor. Vou dar-lhe fuga. O senhor sempre foi meu amigo.

Num carro da Polícia, com sirene e tudo, me levou, com grande perigo para ele, para as montanhas centrais, onde me escondeu na fazenda do Rio Perdido, de um velho amigo e cliente meu, o coronel Cazuza Calazans, homem bom, em paz com o mundo, que havia sido intendente na cidade de Mariana.

Noite adentro, uma fria noite nas montanhas, Zacarias me dá notícias de que meu sogro Hermolan fora fuzilado por um fanático católico, em Princesa, que gritou:

— Bode, morra, bode…

Minha ex-mulher e filha estavam presas domiciliarmente, e minha sogra falecera na véspera da revolução.

Na fazenda de café estava um sobrinho do dono, o José Calazans, ex-comunista e diretor da Folha de Santa Maria, jornal que havia sido empastelado pelos rebeldes. O jornalista fugira, na hora final.

Passávamos o dia conversando e jogando marimbo, um jogo de cartas da roça. Calazans bebia cachaça todo o tempo, em pequenas taças feitas de bambu. Não discutíamos política, eu sempre fora apolítico e só as circunstâncias me levaram ao Ministério, criou-se forte amizade entre dois fugitivos, situação que nos igualava e irmanava.

Um dia, o dono da fazenda fora a Mariana, acordamos com um furioso tiroteio. Morri de medo. Calazans se escondeu em um tonel de aguardente, meio vazio e meio cheio, e se livrou. Eu fui covarde e vergonhosamente preso e humilhado.

O coronel Cascudo, novo presidente, me deu a grande honra de interrogar-me pessoalmente. O que ele queria saber era onde se encontrava o meu querido Senhor Kurtz, cujo corpo não fora encontrado. Havia suspeita de que ele conseguira escapar. Além disto queria saber o número da conta do Libertador na Suíça, assunto que me era completamente estranho.

Em outro interrogatório, em nível mais baixo, me acusaram de ter falado mal dos militares.

— Eu?

— Sim, está em sua ficha.

(Lembrei-me de uma simples aula que dera, em Princesa, falando da vocação caudilhesca dos militares latino-americanos. Meu Deus, que mesquinheza!)

Às vezes o capitão que me interrogava fazia longos monólogos:

— Minha filha foi raptada pelos comunistas. Sabe o que fiz, agora? Torturei dois que estavam presos, e eles me deram o serviço integral. Torturo mesmo. Ao senhor vou mandar arrancar as unhas, com alicate. Não tenho escrúpulos. O coronel Cascudo é católico, cheio de escrúpulos, fala manso, quer obter as coisas por bem. Comigo é às brutas. Entendo que preso se é preso tem de sofrer danos físicos, eu sou responsável por tudo que acontece sob meu comando. Guerra é guerra… Sabe o que fizemos com seu sogro, aquele terrível reacionário bode preto? Nós o prendemos, torturamos e colocamos na rua, à sanha do povo que o massacrou. Um beato deu-lhe um certeiro tiro. Acho que é o que vamos fazer com o senhor doutor ex-ministro da Educação e Saúde… Comigo é pau puro, não sou católico, não acredito na vida eterna…

Num momento de calmaria perguntei-lhe onde estava Kurtz.

— Aqui só quem faz perguntas sou eu…

Não sei quanto tempo passei nos cárceres — havia mudanças, sempre de madrugada — nem onde estive. Uma semana ou um mês, chega uma hora em que sua vida fica confusa, vivendo em meio a sombras e sua poeira, davam-me pouco alimento, pouca água, emagreci.

Um dia, não sei por quê, começaram a me tratar bem, trouxeram-me refeições decentes, até um copo de vinho português me ofereceram, o carcereiro segredou-me que eu estava sendo preparado para uma missão especial, qual era ela o homem não sabia, mas ouvira rumores.

Motim e fúria sempre se completam.

De Vitória, levaram-me para outro calabouço, escuro e fétido. (Desconfiei da tal missão muito especial.) Pressenti que estava na antiga cadeia pública da Intendência dos Reis Magos. Descobri ainda que, na cela, havia outro prisioneiro.

E…

EPÍLOGO

O golpe militar culminou com a morte do presidente e a instalação de uma Junta Provisória de Governo, composta por membros do setor de segurança de Santa Maria do Atlântico.

Mesmo antes do levante, países do hemisfério norte, de olho nas possíveis jazidas de petróleo no mar, tinham preparado um plano “pragmático e não alinhado” a ser implementado após o golpe.

As autoridades monetárias internacionais, de pronto, endossaram o novo governo, a pedido dos credores do país, ansiosos por que se desse à ilha um remédio econômico, com desvalorização da moeda, liberação de preços e importações. A fome grassou em várias partes do país.

James McPherson III, milionário direitista do sul dos Estados Unidos, que financiara a propaganda contra o presidente envolvido nas teias do “comunismo ilhéu”, através do Instituto Santa-marinense de Pesquisas (ISP), recebeu a concessão gratuita de vasto território a leste da ilha, região coberta pela mata atlântica, ainda exuberante, e prometeu, tão logo exportasse as madeiras nobres, criaria um complexo turístico denominado Saint Mary Dream Park, com hotel flutuante, campos desportivos, spa, chalés de luxo e até um moderno cassino, que transformaria a ilha na Las Vegas do Atlântico Sul. As madeiras já se foram e…

Uma organização religiosa de origem hindu (porém sediada na Holanda) também participara da trama para financiar os grupos rebeldes, e recebeu, em troca, milhares de hectares, compensação valiosa pela oportuna ajuda ao tempo do golpe.

Depois da morte do Senhor Kurtz, o visionário louco que só queria o bem de seu povo, estranhamente fui convidado a voltar para Santa Maria do Atlântico (“Não podemos abrir mão de nossos legítimos valores”, disse-me o emissário governamental) a fim de instalar uma Faculdade de Medicina e Odontologia, porém minha escolha (estava propenso a aceitar, tudo passa, tudo passa) foi vetada pelo Duílio Rocha Moreira, um dos pró-homens da revolução, sob a alegação de que eu era amigo dos comunistas e genro do falecido líder batista da cidade de Princesa. Parece que isto frequentemente acontece: você faz um benefício e o beneficiado retorna, na primeira oportunidade, mordendo-lhe a mão.

Assim continuei auto-exilado no Rio de Janeiro, e fui absolvido em inúmeros processos que intentaram contra mim em Santa Maria. A meu lado, em meu modesto consultório na Pavuna, Lourdinha Santos, sempre fiel e amiga. Nós não queremos colocar filhos neste mundo caótico, mas recebo sempre notícias de minha filha Lúcia, agora mocinha, que se adaptou bem às muletas, dizem que até joga futebol com os meninos. Quando ela crescer mais pretendo trazê-la para cá.

Altivo Braga morreu de infarto, aqui no Rio, em minhas mãos. Sempre pensei que ele fosse morrer de cirrose hepática.

Zacarias Emiliano formou-se advogado e é o novo chefe de Polícia de Santa Maria, país cada vez mais anêmico e caótico, segundo me contam os que de lá chegam.

Aos poucos há um movimento nacional, tanto do povo quanto dos historiadores, para resgatar a memória do Libertador, considerado, agora, homem de visão e Pai da Pátria.

Assim é a vida, um poço sem fundo, mistério insondável.

APÊNDICE

Santa Maria do Atlântico (1460-1960)
Síntese geo-histórica

… não nasci aqui,
fui renato na Ilha de Santa Maria do Atlântico,
território que criei, feito de pedra e luz,
onde reino soberano na imaginação
já capixaba não sou: santa-marino ou atlântico,
capixaba não mais, capixaba nunca mais.
(Renato Pacheco, Cantos de Fernão Ferreiro, 18)

República situada na ilha do mesmo nome, no oceano Atlântico, entre a África e o Brasil, foi seu território considerado, ao tempo da expansão marítima européia, uma das ilhas Afortunadas. Pela proximidade, sofre profunda influência do Brasil.

Superfície: 45.597 km2

População (estimativa para 1958): 3.000.000 habitantes

A ilha é constituída de planícies férteis no litoral oeste, com uma cadeia de montanhas vulcânicas a leste — a serra do Chicote (ponto culminante: pedra — ou pico — do Estandarte, com 1.900m de altura), serra que termina em grandes falésias sobre o oceano Atlântico — e coberta de florestas virgens e acidentado litoral.

São seus rios principais, do norte para o sul, o Rio Grande do Norte, o Santa Maria da Vitória, o Rio Grande do Sul (antigamente chamado Doce) e o Santo Eduardo.

Cidades principais: Nossa Senhora da Vitória ou Cidade de Vitória, a Capital, com 200.000 habitantes; Santo Eduardo (50.000 habitantes); Mariana (70.000 habitantes); e Princesa, no porto fluvial dos Cachoeiros (85.000 habitantes).

O clima é tropical, sendo, nas montanhas, rigoroso o inverno.

A economia da ilha se baseia na agricultura, da cana de açúcar, mandioca, cacau, banana e café, e na pecuária. Exporta minério de ferro — com 65% de teor de manganês — da serra do Chicote, monazita e ilmenita. Recentemente (1955) foi descoberto petróleo, na plataforma continental. O turismo é explorado de modo incipiente.

A maior parte da população ainda se encontra na zona rural (72%). A pesca artesanal é atividade não desprezível.

O desenvolvimento industrial da ilha é pequeno — há fábrica de móveis, alimentos, cimento e tecidos. Planeja-se a construção da Siderúrgica do Cação, para aproveitar seu minério de ferro, hoje exportado em forma de “pellets”. Há três hidrelétricas — duas no rio Santa Maria da Vitória e outra no Fruteiras, afluente do Rio Grande do Norte, com a capacidade instalada de 90.000 kw.

História — Já no início do século XV os europeus ibéricos chegaram à ilha que batizaram com o nome de Santa Maria do Atlântico, e comerciaram, com os nativos guanchos, pele, sebo e tinturas extraídas de um musgo existente no local. Compraram também escravos, filhos de chefes tribais vencidos. Com o passar do tempo, Santa Maria tornou-se verdadeiro mosaico de raças. Além dos nativos, possivelmente de origem bérbere, vindos, desde a pré-história, das costas d’África, já no início do século XVI era colonizada por portugueses que fizeram da ilha ponto de aguada em suas viagens para o Brasil.

No século XIX o café atraiu sem-terra italianos e alemães — principalmente pomeranos — polones e libaneses, e também sulistas norte-americanos derrotados na guerra de Secessão.

A colônia libertou-se, tardiamente, de Portugal. Depois de curta guerra de libertação, a metrópole reconheceu-lhe a independência em 1951. Atualmente (1958) é dirigida por um presidente vitalício, o almirante Constâncio Alves, cognominado o Libertador, assessorado por seis ministros. Cogita-se da convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte, para janeiro de 1959. O judiciário compõe-se de uma Corte Maior e dezesseis juízes municipais.

A moeda adotada é o dinheiro, equivalendo 1D a US$0,25.

A religião predominante é a católica apostólica romana, com um bispo. Em breve haverá um arcebispado e dois bispados. Há também batistas, da Missão de Missouri, no sul dos Estados Unidos, e cultos afro-marinenses.

A emigração foi muito intensa, especialmente para o Brasil, entre os anos de 1930 e 1950, quando a cultura do café declinava, mas diminuiu a partir da independência local, plantio da variedade “conilon” e descoberta do petróleo. Cores nacionais: rosa e branco.

Divisa nacional: Trabalha e confia.

Hino nacional: Conhecido como “Surge ao longe a estrela prometida”, primeiro verso, era uma antiga canção escolar; a música é do maestro brasileiro Artur Napoleão.

Folclore: O folclore de Santa Maria do Atlântico tem suas raízes nos antigos ritos guanchos, a que se entremeia a contribuição lusitana e africana. Registram-se, também, elementos do folclore italiano e alemão, nas zonas rurais das montanhas centrais. Usam-se cuícas, tambores e casacas, instrumento local, reco-recos com cabeças esculpidas. A música popular de Santa Maria é predominantemente africana: o cacumbi, o jongo e o congo ainda estão presentes.

Literatura: O maior escritor marinense é o poeta Altivo de Oliveira Braga, de tradicional família do norte da ilha. Pertenceu, no começo do século, quando estudava no Rio de Janeiro, Brasil, à geração simbolista de Cruz e Souza, sendo conhecido em Princesa por seu amor ao folclore e à história, e por suas excentricidades. Igualmente famosos são os cronistas Ribeiro Brito e Celso Oliva, ambos emigrados para o Brasil, onde trabalham na imprensa.

O país tem dois jornais diários, ambos na Capital, e um semanal, em Princesa. Edita-se uma revista mensal, Vida marinense. Há cinco estações de rádio AM e duas FM. Ainda não foram instaladas estações de televisão.

Em 1954, por decreto presidencial, foi criada a Universidade Autônoma de Santa Maria do Atlântico (Uasma), a ser instalada nas montanhas centrais da ilha.

(Apud Enciclopédia Universal do Imaginário, ano de 1958, fascículo 18, p. 2.532.)

Santa Maria do Atlântico

Área: 45.597km2

População: 3.000.000 de habitantes

Forma de governo: República unitária

Intendências: 24

Micro-regiões: 6

Produção de energia elétrica: 90.000 kw

Consumidores de energia elétrica: 111.000

Consumidores de água: 1.026.811

Atendidos com esgoto: 422.370

Terminais telefônicos: 11.045

Centros de saúde: 35

Hospitais: 12

Leitos hospitalares: 470

Ensino primário: 524 estabelecimentos

Ensino secundário: 22 estabelecimentos públicos, 15 particulares

Ensino superior: 1 estabelecimento público

Impostos arrecadados: US$ 73.615.184,59

Imóveis rurais (área): 427.423,8 hectares

Indústrias: 187

(Fonte: Departamento de Estatística de Santa Maria do Atlântico. Dados referentes a 1955.)

———
© 2002 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
———

Renato Pacheco foi importante pesquisador da história e folclore capixabas, além de escritor, com vários livros publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

Deixe um Comentário