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Sigilo absoluto ou operação contra ferro velho

Pedro chegou à delegacia assoviando com ar debochado a conhecida toada de capoeira “berimbau abriu a roda, berimbau quebrou o pau”, quando foi interceptado por Lenilda, a faxineira, que lascou a novidade:

“Seu Pedrinho, eu descobri uma coisa que até me assusta contar”.

“Então não conte”, disse o escrivão.

“Mas é forte demais pra não contar e está me agoniando. E só tenho confiança no senhor pra me ouvir e me aliviar.”

“Se é tão importante, desabafe, mulher”, disse o escrivão.

“Mas não espalhe pra ninguém, promete? Se o senhor espalhar, posso perder meu emprego na delegacia.”

A ansiedade de Lenilda era patente e Pedro prometeu. Não seria ele que iria dar com a língua nos dentes cometendo inconfidências que pusessem em risco o emprego da amiga.

“Está prometido. Diga o que você quer dizer, que eu manterei sigilo absoluto.”

“Eu quero não! Eu preciso dizer por que vi com estes olhos que a terra há de comer, seu Pedrinho: o doutor Digital, com aquele tamanhão todo e tão metido a machão, tem medo de taruíra!”

Pedro olhou dentro dos olhos de Lenilda, baixando um pouco a vista porque a cara da faxineira ficava ao rés do queixo do escrivão, deu um risinho de moleque de Ibitirama, e perguntou:

“Você tem certeza do que está dizendo, mulher?”

“Certezíssima, porque ele me chamou pra matar uma taruíra que estava no gabinete – a tal sala de comando, como ele diz. A lagartixa estava lá no teto, branquelona, de olhinho preto bem vivo, por cima da mesa dele. Quando eu entrei, ele estava espremido no canto da sala, como se fosse num esconderijo. Isso não é ter medo?”

“E você matou a taruíra?” perguntou Pedro, preparando-se para acender um cigarro com um dos seus muitos isqueiros coloridos. O do dia era o azulão, descambando para roxo.

“Minha sorte, ou a sorte dele, é que eu estava com a vassoura na mão, o que não é novidade. Mas aí eu disse: ‘Dr. Delegado, como é que eu vou matar a taruíra? Mesmo esticando o braço não alcanço ela com a vassoura.’ Aí ele berrou, zangado: ‘Então sobe na mesa, pícolas! Sobe logo antes que o troço vá embora. Até parece que ele está ouvindo nossa conversa!”

“Você subiu na mesa para matar o troço? Foi troço que ele disse?” perguntou Pedro, baforando fumaça pela boca.

“Foi sim. Eu ainda perguntei se era mesmo para subir na mesa por causa do ciúme que ele tem dela, onde ninguém põe a mão, que dirá os pés. Aí ele me deu outro esculacho, só que em voz baixa, que eu achei que era pra não espantar a taruíra. Então fiquei descalça, trepei na mesa e matei a bicha com a piaçava da vassoura”.

“Digital se deu por satisfeito?” perguntou Pedro com o risinho safado de quem estava saboreando o acontecido.

“Logo, logo, não, porque a taruíra caiu sobre a mesa e ele falou nas minhas costas: ‘Agora tira esse bicho nojento aí de cima! E limpa com álcool o lugar onde caiu’”.

“E você fez tudo direitinho?”

“Tudo que tinha que ser feito. Quando terminei a limpeza o delegado ainda me avisou que era para não contar nada pra ninguém do que tinha se passado. Foi aí que fiquei agoniada pra contar pro senhor, que é meu amigo de fé. Mas lembre-se da sua promessa!”

“Não se preocupe que eu vou manter sigilo absoluto”, confirmou Pedro o que dissera antes.

Mal o escrivão terminou de falar, Digital gritou do gabinete: “Seu Pedro, dê um pulo até aqui!”

Pedro deu o pulo.

Quando entrou no gabinete nada indicava que há poucos minutos ali tivesse ocorrido o morticínio da taruíra. O delegado estava à vontade, sentado em sua cadeira, com a corrente de ouro balançando no pulso direito, as pernas estiradas sobre a mesa, na pose de sempre. Logo que o escrivão entrou, ele perguntou:

“Me diga uma coisa, seu Pedro. Você já escolheu o nome da operação policial que eu quero fazer para pegar desmanche de carro roubado nos ferros velhos?”

“Ainda não”, disse o escrivão, que havia se esquecido completamente do pedido do delegado.

“Pois eu acho que encontrei um nome apropriado. Gostaria de ouvir a sua opinião.”

E diante da cara de expectativa que Pedro armou, o delegado completou, engrossando a voz: “Operação Taruíra.”

“Por que taruíra?” indagou Pedro dominando o riso.

“Porque Operação Taruíra lembra uma ação silenciosa e rápida, que surge de repente. Quando menos se espera, ela está sobre a cabeça do sujeito.”

“Muito bem pensando, delegado”, aprovou Pedro, disfarçando o tom de zombaria.

“Se você concorda, não precisa perder mais tempo pensando em outro nome”, disse Digital. “Eu sabia que no final das contas eu é que ia ter de batizar a operação. E preste atenção, seu Pedro: não comente com ninguém sobre este assunto!”

“Não se preocupe que vou manter sigilo absoluto”, repetiu Pedro as palavras que dissera duas vezes a Lenilda. E falava a verdade.

[Este texto integra a série intitulada CHAPOT PRESVOT 272, de Luiz Guilherme Santos Neves]

Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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