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Sobre rosas e cipós ou o sorriso do lagarto

“Então a senhora se chama Rosa?” perguntou Pedro.

Tinha simpatizado com a mulher de olhos penetrantes e sorriso sedutor, de uma beleza ainda consistente apesar dos seus prováveis 70 anos.

“Rosa, rosae, rosarum…” declinou ela. “O senhor estudou latim? Rosa é a primeira palavra que se aprende na primeira declinação. Eu perguntei se estudou porque o senhor tem cara de ex-seminarista.”

“Quase fui seminarista,” disse Pedro.

“Influência de algum padre ou por pressão da família?”

“Por influência do padre Antônio, que era um grande pregador”, confessou o inquirido.

“O senhor está falando do padre Antônio Vieira?” perguntou dona Rosa surpreendendo Pedro com a citação do grande jesuíta.

“Foi outro padre Antônio, que morou na minha terra,” explicou o ex-quase seminarista.

“Não há nenhum mal em ter sido seminarista,” disse dona Rosa. “O mal é ter sido seminarista e se tornado padre. O senhor já viu que eu não gosto de padres, nem da Igreja, não é mesmo? A Igreja fez muito mal à humanidade. Sabe onde a Inquisição foi mais terrível?”

Fez uma pausa na sua loquacidade, criando suspense e observando se Pedro estava interessado na resposta. Concluiu que sim e prosseguiu: “Foi em Portugal. E Portugal não merecia isso! É uma terra tão bonita! Eu já fui lá duas vezes e, em cada uma arrumei um namorado diferente. Sabia que namorado português recita versos para a namorada? Recita até na cama, antes e depois, com a voz empostada e aquele jeito que eles têm de engolir as vogais. É um barato! Versos de Antero de Quental, de Luís de Camões, de Fernando Pessoa, de Florbela Espanca… Já ouviu falar em Florbela Espanca? O nome todo é Florbela d´Alma da Conceição Espanca. O senhor leva jeito de quem sabe versos da Florbela…”

“Mas não costumo recitá-los na cama” ressalvou Pedro, divertido.

“Vale a pena experimentar…” e ela fez a insinuação com o sorrisinho cativante pousado nos lábios.

“A senhora é muito liberal,” comentou o escrivão.

“Sou mesmo. Mas ser liberal não é ser liberada. As pessoas às vezes confundem as coisas. Tenho princípios morais fortes, e nem podia ser diferente porque estudei no colégio do Carmo. Se o senhor fosse do tempo do Carmo talvez tivesse sido meu namorado, já pensou?” Novamente o risinho travesso se enviesou no canto da sua boca, enquanto Pedro se revolvia na cadeira.

“Eu fui interna no Carmo. Minha família era do interior do Estado e eu vim estudar em Vitória. O Carmo tinha internato para meninas com um sistema de disciplina conventual. Eu me lembro que, naquele tempo, para fazer educação física, as alunas usavam bombachas pretas e bufantes. Era horrível, mas eu bem que ficava bonitinha de bombacha morrendo no meio da coxa. Me lembro também que tinha a irmã Rosa, que apesar de ser minha xará, era durona e não simpatizava comigo, nem eu com ela. Acho que era pela semelhança dos nomes. Ela lecionava português, mas graças a Deus ou a Nossa Senhora do Carmo que, aliás, era Nossa Senhora Auxiliadora, eu fui aluna do professor Guilherme, que nos chamava de manducas. Aprendi a gostar de literatura com ele, e também de folclore. Eu o adorava,” disse dona Rosa explicitando o risinho mergulhado no canto do lábio.

“Sou amigo dos filhos dele” informou Pedro. E indicando às suas costas o pedestal com a escultura de uma caveira em louça pousada sobre as páginas de um livro aberto, acrescentou:

“Esta caveira pertenceu ao professor Guilherme.”

“Não a-cre-di-to!” agitou-se a mulher. E pedindo licença a Pedro levantou-se para examinar de perto a escultura.

“Ela está limpa?”

“Aqui na delegacia nada é limpo” avisou Pedro.

“Então me empreste um lenço.”

O escrivão tirou da gaveta da sua mesa uma caixa de lenços de papel que entregou à dona Rosa. Ela pegou dois para remover a poeira da cabeça da caveira antes de acarinhá-la com os dedos. Em seguida, se fez respeitosa e sussurrante.

“A senhora está rezando?” perguntou Pedro.

“Não! Estou declamando Cruz e Souza.” E repetiu em voz alta:

Olhos que foram olhos, dois buracos
Agora, fundos, no ondular da poeira…
Nem negros, nem azuis e nem opacos.
Caveira!

Nariz de linhas, correções audazes,

De expressão aquilina e feiticeira,
Onde os olfatos virginais, falazes?!
Caveira! Caveira!

E emendou: “Conhece os versos? Para mim são trágicos e profundos. Aprendi-os numa antologia de Literatura Brasileira, adotada pelo professor Guilherme. Rendo-lhe esta homenagem póstuma, numa reverência de ex-aluna, o senhor entende?”

Apesar do humor negro da homenagem, Pedro não quis parecer demodé diante do desembaraço de dona Rosa:

“Não só entendo como vejo que a senhora é uma romântica.”

“Sou romântica e determinada, como as mulheres de touro. Touro é um signo especial, com uma inquietude transcendental e nostálgica, própria das mulheres inteligentes. Mas preste atenção – mulheres inquietas, e não volúveis. Sabia que é difícil conquistar uma mulher de Touro? Touro se dá bem com poucos signos. Com Sagitário, por exemplo, é um embalo. O senhor é de Sagitário?”

“Capricórnio…”

“Capricórnio, né?” e Pedro ficou sem saber, por aquele né curto e seco, se Touro se dava bem ou não com Capricórnio. Mas não quis aprofundar a investigação.

“Touro também torna as pessoas corajosas. Sabia que eu fui a primeira mulher a se divorciar em Barra de São Francisco? Naquele tempo a Barra era uma região de dois Ms: um M de machismo, outro de morte. E nem era divórcio, era separação, considerado um pecado social. Se ainda houvesse Inquisição eu estava frita… Mas até hoje me dou bem com meu ex-marido. Nos damos bem porque nos separamos! Lhe conto isso para mostrar que sou uma mulher extrovertida e independente” – e encarou Pedro para ver se a confidência taurina lhe causara algum efeito.

O escrivão deu uma de calado e mudo como a caveira atrás das costas, e dona Rosa prosseguiu:

“Quer saber de uma coisa? Sou contra todas as minorias, a começar pelas feministas, umas mal-amadas. Também acho os ambientalistas um entrave ao progresso. Aquele projeto de preservação das tartarugas marinhas é dinheiro e trabalho jogado fora, para salvar uma tartaruguinha em mil. Pensa bem! Acho que representa um milésimo por cento de salvação da espécie… Deixa a Natureza resolver o caso delas!”

“A senhora fuma?” indagou Pedro doido para encaixar um cigarro na boca.

“Tcho, tcho, tcho” estalou ela a língua pontiaguda contra os dentes ainda perfeitos, em sinal de negativa. “Nem pense em fumar na minha presença! Faço o maior auê, igual ao que fiz na delegacia de São Mateus.”

Conformado com a proibição, Pedro colocou a carteira de cigarros ao lado do computador e perguntou:

“A senhora mora em São Mateus?”

“Moro em Guriri, onde tenho uma pousadinha. O senhor precisa conhecê-la. Prometo preparar um cardápio de primeira, se um dia o senhor for lá. Sabia que eu gosto muito de cozinhar? Para mim, cozinhar é bruxaria.”

“Nunca me ocorreu esta idéia…” disse Pedro.

Dona Rosa riu e disse: “As bruxas de Salém deviam ser cozinheiras de mão cheia. Foi burrice queimá-las. Com elas se perderam receitas preciosas. Eu empregaria todas na pousadinha para servir aos meus hóspedes caldeiradas de feitiço!” E riu.

“Como se chama essa pousadinha do outro mundo?” indagou Pedro.

“Cipó Cheiroso!”

“O nome é sugestivo,” elogiou Pedro.

“Meu namorado holandês também acha. Sabe que com a pousadinha eu arrumei um namorado holandês? Mas é um namoro platônico, da minha parte. Os holandeses são muito inteligentes e instruídos, mas impressionantemente ingênuos. Não têm malícia nenhuma. Você fala uma coisa e eles entendem ao pé da letra. Quando esse meu namorado quis me levar para a cama eu disse que o único cipó cheiroso em que estava interessada era a minha pousadinha, mas ele não pescou a piada. Ficou me olhando com uma cara, como diria…?

“Cara de batavo?” arriscou Pedro.

“Cara de batavo!!” aprovou dona Rosa rindo. “Só por esta tirada o senhor precisa conhecer o meu Cipó Cheiroso,” completou, ampliando a malícia do risinho sedutor.

“Talvez um dia…” admitiu o escrivão.

“O senhor conhece Guriri?”

“Fui lá há muito tempo.”

“O lugar mudou muito. Hoje tem muita droga, ladrão por todo lado, prostituição desenfreada. A exploração do petróleo acabou com a poesia local…”

“Ainda assim a senhora continua em Guriri?”

“Por causa da pousadinha. Sou apaixonada por ela e investi muito para montá-la. Mas parei por causa dos prejuízos com os roubos.”

“Por isso a senhora foi à delegacia de São Mateus?”

“Porque fui lá é que estou vindo nesta sua delegacia,” e um vislumbre irônico perpassou pelos olhos claros de dona Rosa.

“Se for para dar a mesma queixa, não vai ser possível” disse Pedro corporativista.

“Vim aqui dar queixa contra o delegado,” disse dona Rosa, com o sorrisinho provocativo brincando nos lábios finos.

“A senhora pode ser mais objetiva?” pediu Pedro sentindo intensificar-se no âmago dos pulmões vazios o anseio por umas tragadas acinzentadas.

“Eu fui à delegacia de São Mateus porque roubaram meu outdoor.”

“Roubaram seu outdoor? repetiu Pedro, controlando-se para se manter sério.

“Era um outdoor feito por encomenda a um artista de Barra de São Francisco, chamado Carlinhos. O outdoor foi levado para São Mateus de caminhão. Eu o mandei armar na estrada para Guriri. Dava gosto ver, pintado com peixes, tartarugas, estrelas do mar, caranguejos, moqueca capixaba… Uma obra de arte!”

“Não era muita coisa para um único outdoor?” observou Pedro.

“Tinha espaço bastante e os desenhos estavam bem distribuídos,” disse dona Rosa relembrando a figuração artística dos desenhos.

“Apesar de grande ele foi roubado?”

“Roubaram porque era grande. Sumiram com ele e eu fui dar queixa em São Mateus onde a delegada me recebeu muito bem. Uma semana depois eu soube que quem roubou o outdoor fez um trailer com ele para vender cachorro-quente na praia.”

“Um trailer?” e novamente Pedro conteve o riso.

“Um desses trailers de reboquinho que podem ser presos na traseira de um fusquinha. No trailer ainda ficaram alguns desenhos do Carlinhos. Um desaforo! Então, quando eu fui a São Mateus para fazer umas compras, aproveitei e passei na delegacia para ver o andamento da queixa. Mas, para azar meu, a delegada tinha sido substituída por um delegado. Foi uma pena porque ela era uma pessoa muito atenciosa…”

“Era a delegada Dea Benvenuto?” interrompeu Pedro com ar celestial.

“Ela mesma… O senhor a conhece?”

“Muuuito!” disse Pedro, justificando o seu entusiasmo: “Ela já trabalhou aqui na delegacia.”

“Pois então. O delegado que estava no lugar dela, quando me viu, perguntou, grosseiramente, ‘a senhora deseja o quê?’ ‘Quero saber o andamento de uma queixa, respondi.”

“Por que a senhora não disse logo que sabia quem roubara seu outdoor?” perguntou Pedro.

“Eu quis testar a polícia. Aí o delegado perguntou se eu estava com a cópia da queixa e eu disse que não, porque estava apenas de passagem na cidade. Ele me disse então que sem a cópia não dava para me atender. Que eu voltasse outro dia. Aí eu perguntei se ele não podia procurar a primeira via nos arquivos da delegacia porque só fazia uma semana que eu estivera ali. ‘Mas eu é que tenho de procurá?’ grunhiu ele, e eu respondi, ‘é, porque o senhor é a autoridade competente, não é?’ Eu falei autoridade competente para provocá-lo!”

“Adiantou alguma coisa?” quis saber Pedro, realmente interessado.

“Não, porque ele protestou: ‘Se sou ou não sou a autoridade competente é probrema meu. E fique sabendo que não tenho tempo para gastar procurando o original de uma queixa que a senhora tem obrigação de ter a cópia.”

“Este delegado me lembra outro que eu conheço muito bem…” disse Pedro.

Mal acabara de fazer o comentário, ecoou pela delegacia um berro horrendo: FIIIILHO DA PUUUTA!

“O que é isso, meu Deus?” assustou-se dona Rosa.

“Falar no diabo, ele se apresenta… Isso é o nosso delegado Digital. Toda vez que ele espirra, solta o palavrão,” desculpou-se Pedro. “Diz ele que é para espantar os micróbios.”

“Deve espantar mesmo…,” conveio dona Rosa. “Estou vendo que lá e cá, más fadas há. Em São Mateus eu disse ao delegado, que não quis me atender, que eu ia tomar providências. Quando ele viu que minha ameaça era para valer, quis que eu assinasse um termo declarando que tinha sido bem tratada na delegacia, vê se pode…”

“A senhora assinou?”

“Mandei que pedisse à avó dele! Disse isso sem gritar nem elevar a voz, educadamente. Agora quero que o senhor lavre a minha queixa.”

Pedro estendeu instintivamente a mão em direção à carteira dos Carlton, quase num gesto de autodefesa, mas dona Rosa deteve seu pulso com delicadeza. O tcho, tcho, tcho voltou à ponta da sua língua em sinal de reprimenda.

“Não é que a senhora não possa reclamar,” disse um Pedro agoniado pela secura de um cigarro. “Mas tem de ser na corregedoria de polícia.”

“Não tem importância,” respondeu a taurina determinada. “Me dá o endereço.”

Pedro passou-o à dona Rosa crente que a conversa estava se encerrando. Ela, porém, ao se levantar da cadeira, viu na gaveta aberta da mesinha do escrivão um exemplar do romance Vilarejo, da autoria de Pedro.

“O senhor também tem este romance?”

“Também…?!”

“É porque eu tenho um exemplar comprado num sebo de Vitória. Os hóspedes da pousadinha gostam muito do livro, tanto quanto eu. Nem acreditam que o autor é capixaba. O senhor sabia que o autor é capixaba?”

Pedro pigarreou uma vez antes de soltar um “sabia” meio frouxo.

“Na minha opinião,” prosseguiu dona Rosa, “tem autor capixaba que escreve melhor do que muito escritor do Rio e São Paulo. Pedro J. Nunes é um deles. Eu, por exemplo, já forcei, mas não consegui ler O sorriso do lagarto, de João Ubaldo Ribeiro. Pudera, com um título desses! Por isso eu acho uma injustiça que os escritores capixabas não sejam prestigiados. É uma dificuldade conseguir um livro deles. Para conhecê-los é pior ainda. Até hoje o único escritor capixaba que eu conheci pessoalmente foi Dr. Renato Pacheco, quando ele foi juiz em São Mateus. Que pessoa admirável! Espero que um dia destes eu tenha a sorte de conhecer Pedro J.Nunes, de quem virei fã.”

Pedro pigarreou duas vezes, mas desta feita nada disse.

“Bem, está na hora d’eu ir embora. Preciso retornar a Guriri ainda hoje.”

“A senhora me desculpe se não pude lhe ser útil,” disse o escrivão cordial e atencioso.

“Não se preocupe porque eu gostei muito de conversar com o senhor. Sabe que eu gosto de conversar com homens inteligentes?”

“Mas eu quase não falei nada!” retrucou Pedro.

“Muito pelo contrário! Aquele cara de batavo que o senhor disse valeu por um discurso inteiro. Eu sou capaz de jurar, só por essa frase, que o senhor seria um grande escritor. Faça a experiência…” disse dona Rosa, antes de se retirar da delegacia em paz com a vida.

“Caramba!” monologou Pedro ao ficar às sós, delineando nos lábios um sorriso de lagarto onde, mais que depressa, atochou um cigarro para matar a vontade reprimida pelos tchos, tchos, tchos de dona Rosa.

[Este texto integra a série intitulada CHAPOT PRESVOT 272, de Luiz Guilherme Santos Neves]

Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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