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Sopa de fruta-pão ou depois da tempestade, a bonança

A chuva escorria pelo telhado de duas águas da delegacia, na Chapot Presvot, 272.

À janela da sala, Pedro fumava contemplando o terreno encharcado da casa década de 50, do século findo, onde o pé de fruta-pão carregado parecia se encolher no aguaceiro. Com estrondo, uma fruta espatifou-se numa poça d´água.

Se não estivesse chovendo tanto Pedro teria ido pegar a fruta-pão para fazer uma sopa, quando chegasse em casa naquela noite.

“Pedro, oh, Pedro, venha cá!” berrou o delegado.

O escrivão atirou fora o cigarro, de onde sacara uma última tragada encardida e bela, expeliu a fumaça através da janela e preparou-se para o pior.

“Pronto, Digital,” disse, entrando no gabinete do chefe.

“Pô, eu quero saber se você é meu amigo ou está de sacanagem comigo,” explodiu o delegado, dando um murro na mesa. No pulso, sua correntinha de ouro vibrou como se tivesse levado um choque elétrico.

“Não estou entendendo,” observou calmamente Pedro, que já conhecia as diatribes de Digital.

O delegado contra-torpedeou: “Veja este depoimento. Como é que você deixou escapar esta merda?” E entregou a Pedro o processo que tinha nas mãos.

Pedro pegou o processo e viu que a merda a que Digital se referia era o depoimento do motorista do deputado Ribeirinho, amigo e protetor do delegado. Leu com atenção algumas linhas, o bastante para se inteirar da melódia, e devolveu o volume: “Quem tomou este depoimento foi o Nanico. Nesse dia eu não estava de plantão.”

“Sei que você não estava de plantão. Pensa que sou imbecil? Eu vi que foi o Nanico quem assinou. Mas lembra que eu lhe avisei que o Carlindo vinha depor na delegacia e era para tratar do assunto com carinho? Por que você não avisou Nanico?”, cresceu Digital na escala do esporro.

“Mas eu avisei, delegado. Agora não tenho culpa se o depoimento não ficou a contento.”

“Está todo a descontento. Um descontento do tamanho de um bonde. De um bonde, não! De uma grua, de uma grua dura e crua. Veja estes trechos, como amostra,” prosseguiu Digital, lendo num repente: “que o denunciado já conhecia a denunciante dos corredores da Assembléia Legislativa; que ela costumava aparecer ali para pedir emprego aos deputados, dentre os quais o deputado Ribeirinho, de quem o denunciado é motorista; que no dia 5 deste mês, passando na Pajero do deputado por um ponto de ônibus da Avenida Adalberto Simão Nader, o denunciado viu a denunciante esperando condução; que nessa ocasião ofereceu carona à denunciante; que o propósito do denunciado era apenas o de levar a denunciante até a sua casa, digo, até a casa dela; que o denunciante não sabia onde a denunciante morava; que ela é que foi explicando o caminho; que assim orientado eles foram para a Cidade Continental, na Serra; que a denunciante foi conversando com o denunciado para ver se, por intermédio dele, conseguia um emprego com o deputado Ribeirinho; que o denunciado não prometeu nada à denunciante; que, mesmo assim, ela se ofereceu ao denunciado e eles tiveram relação sexual num canto da estrada; que a relação foi no banco do carona da Pajero; que, depois da relação, o denunciado deixou a denunciada em sua casa, digo, na casa dela; que só dois dias depois é que o denunciado soube que a denunciante tinha apresentado queixa de estupro contra ele…”

Digital respirou fundo e perguntou, cofiando furiosamente a barbicha caprina: “Viu quantas vezes aparecem referências ao doutor Ribeirinho e à sua Pajero, só nestas poucas linhas? Precisava isso? Precisavam essas minúncias todas? E ainda diz que a trepada foi no banco do carona… Sabe o que isso significa? O banco do carona é o banco do deputado, pícolas!”

“A culpa é do Nanico, delegado,” esquivou-se Pedro.

“A culpa pode ser dele, mas a responsabilidade é minha. Agora, o deputado Ribeirinho quer que a gente rasgue este depoimento e tome outro do Carlindo.”

“A gente, quem, Digital?”, defendeu-se Pedro.

“A gente, porra! Eu, você, o Nanico, quem tiver de fazer isso…”

“Não conte comigo para uma desova dessas!”, indignou-se Pedro.

“Eu não disse que você não era meu amigo? A prova taí. Não dá para ver o caso do meu ponto de vista ocular? Eu sou amigo do homem!”

“É exatamente do seu ponto de vista ocular que eu não quero ver o caso, delegado. E faz de conta que não estou sabendo de nada, que nós não tivemos esta conversa, que eu não sei que o nobre deputado seu amigo está puto da vida, faz o que você quiser, mas não conte comigo para rasgar páginas de um processo. Chama o Nanico e resolve o assunto com ele,” concluiu Pedro, veemente.

“Eu sabia que você ia mascar na parada. É como disse Cesar: Até tu, putus! Mas não tem problema não, deixa que eu resolvo o caso. Se você não é macho, eu sou!”

“Ótimo, porque tem horas que até fico satisfeito com a minha falta de macheza, chefe,” concluiu Pedro, saindo do gabinete do delegado sem pedir licença.

“Não me chame de chefe!”, gritou Digital às suas costas. “Chefe é de índio, e nesta bodega de delegacia ainda não tem índio. Ou talvez fosse melhor se tivesse, porque não haveriam cagadas como esta”.

Dez minutos depois Digital entrou na sala do escrivão cantarolando:

Rivoli tem, Rivoli tem,
Novidades da baleia.
Rivoli, tem, Rivoli tem,
Coisas que ninguém mais tem.

Parando em frente à mesa de Pedro, proclamou com satisfação: “Consumadum èste. Bata uma nova intimação para o Carlindo e marque o depoimento para o dia 25 deste mês. Nesse dia estou com a agenda livre e eu mesmo vou ouvir o depoente.” E retirou-se da sala na mesma toada da chegada,”Rivoli tem, Rivoli tem…”

Pedro datilografou a intimação e levou-a ao chefe que a assinou com cara de aurora boreal. Lá fora a chuva havia passado. Quando o escrivão voltou à sua sala, outra fruta-pão despencou ao solo.

Depois de despachar a intimação, Pedro foi pegar a fruta esborrachada, prelibando a sopa daquela noite. E ainda a batizou de consommé a Carlindo.

[Este texto integra a série intitulada CHAPOT PRESVOT 272, de Luiz Guilherme Santos Neves]

Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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