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Terceira parte: De 1901 a 1950

h) Primeiras décadas do século XX

O que de mais notável produziu o Espírito Santo nas três primeiras décadas do século XX está na sátira, no humorismo e na poesia fescenina.

Em 1901 o médico Graciano dos Santos Neves (1868-1922), ex-presidente do Estado, cargo a que renunciou em 1897, publicou com o pseudônimo de M. Guedes Júnior a Doutrina do engrossamento, um tratado sobre o puxa-saquismo, sobretudo o praticado nos meios políticos. Escrita em tom austero, como se tivesse realmente intenções didáticas, a Doutrina chegou a ser interpretada seriamente por alguns de seus resenhistas. Foi reeditada em 1935, em 1978 e, pelo Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, em 1999. Uma edição – que seria a terceira – chegou a ser cogitada nos anos 60 com prefácio de Guilherme Figueiredo, mas não chegou a se concretizar. Dela fala Figueiredo em carta a Guilherme Santos Neves:

Grande honra me deu V. Sa. com a remessa de A doutrina do engrossamento […] e li-a, ontem, domingo, com o maior entusiasmo. Que sério, que grande, que delicioso humorista – e que estupendo moralista era Graciano Neves! Claro que farei o prefácio, se acha que mereço tanto! […] Quanto ao meu Vade mecum do puxa-saco, ainda está pelos primeiros capítulos. Mas depois que li o Doutrina do engrossamento, palavra, sinto muito pouca vontade de continuar… Talvez consiga fazer alguma coisa de mais atualizado; mas não conseguirei fazer melhor.[ 49 ]

Guilherme Figueiredo tratou do livro de Graciano Neves em sua coluna “Um dia depois do outro”, onde transcreveu trecho da Doutrina e a declarou superior à Teoria e prática do engrossamento, de Eurico Ferreira, publicada em 1923.[ 50 ] Graciano Neves foi também autor de poemas satíricos, dois dos quais Elmo Elton incluiu em sua antologia Poetas do Espírito Santo.

Outro médico, José Madeira de Freitas (1893-1944), radicado no Rio de Janeiro, fez grande sucesso nos anos 20 como humorista e cronista. Publicou: Hipocratéia (1916), sonetos humorísticos, com prefácio de Emílio de Menezes, História do Brasil pelo método confuso (1922), Contos do vigário (1922), Feira livre (1923), A lógica do absurdo (1925), O bom-senso da loucura (1927), Gramática portuguesa pelo método confuso (1928), Idéias em ziguezague (1928). É autor de um romance, Dr. Voronoff (1926), em que sua veia satírica conflita com uma trama quase melodramática; os capítulos que descrevem uma visita do personagem a Vitória são valiosos pela evocação da cidade naquela época.

Uma reedição fac-similada da Gramática foi feita em 1984 pela Fundação Ceciliano Abel de Almeida/Ufes em parceria com a Editora Rocco. Destaquem-se alguns trechos do texto escrito por Oscar Gama Filho para as orelhas dessa reedição:

O prazer e a constância com que [Mendes Fradique] utilizava do nonsense fez com que seus contemporâneos o considerassem um “humorista excêntrico”, sem perceberem que Fradique era um antecipador de estilos, um artista que bebia direto na fonte do futuro, fonte que em breve passaria a ser alimentada – como já acontecia na Europa – pelas grossas águas do absurdo. Na Grammatica Portugueza pelo Methodo Confuso (cuja primeira edição é de 1928), os momentos máximos de nonsense ocorrem no “Apêndice Antológico” e nas muitas notas de rodapé sem relação aparente com o texto (contendo informações úteis para a vida doméstica). A explicação de ambos os fatos passa pelo caráter de paródia da Grammatica, que, centrada na sátira da vida cultural, faz uma gigantesca colagem de seus elementos, reunindo-os em um painel amplo […].
A Grammatica antecipa muitos dos recursos que viriam a ser usados pelas vanguardas visuais das décadas de 50 e de 60. A exploração concretista do espaço em branco está presente com toda sua força. […]
Mesmo sem ter participado do modernismo e sem manifestar seu apoio às vanguardas européias (em especial o futurismo, o cubismo e o surrealismo), seus trabalhos, curiosamente, constituem um retrato que não destoa nem de um e nem de outro.[ 51 ]

Em seu posfácio à mesma reedição, Luiz Busatto endossa as observações de Oscar Gama Filho:

Deve-se salientar a importância da utilização do espaço tipográfico na composição do texto. Nisto o capixaba José Madeira de Freitas, se não foi o primeiro a utilizar-se deste recurso, foi um dos muitos que se antecipou aos movimentos de vanguarda datados de 1956, como a Poesia Concreta, Práxis e Poema-processo. Em Feira Livre, de 1923, Mendes Fradique apresenta O TAPETE PERSA como obra atribuída a Augusto de Lima, uma brincadeira que se aproveita dos tipos gráficos e do formato visual. Na História do Brasil pelo Método Confuso, de 1922, ele espalha aleatoriamente os pronomes no espaço em branco e acrescenta: “Peço encarecidamente ao Dr. Laudelino Freire a fineza de colocar esses pronomes nos respectivos lugares.” Ainda nesta mesma obra, no capítulo XXXIX “Cartuchos de Festim”, distribui palavras, aparentemente sem nexo, pela página. Não se pode também deixar de mencionar a página 13 da 1a. edição da Gramática com a Fórmula empírica da feijoada completa, sátira que, com dezenas de anos de antecedência, ridiculariza recursos empregados por determinada crítica literária estruturalista que usa chaves, divisões e esquemas opositivos.[ 52 ]

O crítico Affonso Romano de Sant’Anna também se referiu ao caráter revolucionário da obra de Mendes Fradique:

Comparado com Mendes Fradique, os modernistas eram, aliás, senhores sisudos. Seu deboche começa no pseudônimo, que é uma inversão do nome Fradique Mendes, que por sua vez era o pseudônimo comum de vários escritores portugueses da geração de 1870 (Quental, Eça, Ortigão, etc.). […] [A História do Brasil pelo Método Confuso] é um verdadeiro samba do crioulo doido. A carnavalização da nossa cultura. Muito mais radical que as histórias do Brasil, em versos, de Murilo Mendes e Oswald de Andrade. Mendes Fradique é o pai espiritual de Stanislaw Ponte Preta e Carlos Eduardo Novaes.[ 53 ]

Ao estudo da obra de Mendes Fradique dedicou-se a socióloga Isabel Lustosa, que publicou em 1993 o livro Brasil pelo método confuso: humor e boemia em Mendes Fradique.

A poesia fescenina está muito bem representada nos poemas de Cantáridas e outros poemas fesceninos que, escritos em sua maior parte entre 1933 e 1935, só foram editados em forma de livro em 1986, pela Fundação Ceciliano Abel de Almeida/Ufes em parceria com a Editora Max Limonad. Guilherme Santos Neves (1906-1989), Paulo Vellozo (1909-1977) e Jayme Santos Neves (1909-1998) são os autores desse livro, que Oscar Gama Filho descreve como “uma genial reunião de poemas fesceninos que antecipa recursos, técnicas e temas que apenas décadas após seriam comumente empregados na literatura”.[ 54 ]

Original de poema de autoria de Guilherme Santos Neves em "Cantáridas e outros poemas fesceninos".
Original de poema de autoria de Guilherme Santos Neves em Cantáridas e outros poemas fesceninos.

Nesse mesmo período foram também criadas duas importantes instituições ligadas à cultura e à literatura do Espírito Santo: o Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, fundado em 1916, e a Academia Espírito-santense de Letras, fundada em 1921. Ambas continuam em atividade hoje, mas o elenco de realizações do Instituto é mais sólido e volumoso, até porque mantém em circulação, desde 1917, a sua Revista de que saíram até hoje quase sessenta números.

Capa do n.133, julho de 1928
Capa do n.133, julho de 1928.

Em abril de 1923 foi lançada a revista Vida Capichaba, anunciada no expediente como revista quinzenal – ilustrações, literatura, mundanismo. Tinha como diretor Garcia de Rezende e, como secretário, Escobar Filho. Sua proposta aparece no editorial desse primeiro número, em que se dedica a revista à mulher espírito-santense:

A Vida Capichaba aí está. Não é ainda a revista que idealizamos. Do terceiro número em diante é que ela vestirá a sua roupagem definitiva.
Por enquanto, ainda estamos na trabalhosa fase de organização. Passada, porém, essa época de singulares tropeços, a Vida Capichaba estará em condições de realizar os seus grandes ideais, de vencer as terríveis hostilidades que se nos profetizam.
E os ideais da Vida Capichaba são os formosos ideais de todos nós, trabalhadores ingênuos e honestos pela grandeza do Espírito Santo.
Não se justifica a falta de uma revista nesta Capital, que já é uma linda e encantadora cidade de muitos milhares de habitantes.
Toda a cidade linda tem uma revista linda, que conta a sua história, que perpetua as suas emoções, que perfuma a sua galanteria, que exalta a sua elegância e que guarda, como num pequenino livro de horas, as ânsias sutis de sua vida sentimental…
Embora pessoas experimentadas, embora velhos peregrinos da quimera, que ficaram pelo caminho, nos digam que a nossa iniciativa, devido à famosa indiferença do público espírito-santense pelas coisas de arte e literatura, terá efêmera duração, aqui estamos para enfrentar o monstro…
A nossa inquieta mocidade gosta, justamente, das empresas difíceis, ama os grandes gestos de audácia…
Não acreditamos, porém, na má vontade do nosso público com a revista que hoje começa a desempenhar a função que lhe cabe na vida espírito-santense.
O Espírito Santo não pode ser pessimista, não tem essa tão salientada ojeriza pelo progresso literário.
O Espírito Santo é um Estado de belas mulheres, de criaturas suavíssimas, para as quais o espírito e a graça, a inteligência e a finura, são os mais caros requisitos de beleza moral.
E onde há esplêndidas mulheres, há arte, há poesia, e onde há poesia, há sonho, há êxtase, há embevecimento, há perfumadas atitudes de crédulo e romântico otimismo…
Dedicamos a nossa revista à mulher espírito-santense. A mulher ainda é, na vida, a mais ardente protetora da arte e a mais requintada amiga do sonho[ 55 ]

Contrariamente aos prognósticos dos “velhos peregrinos da quimera”, Vida Capichaba teve vida longa: circulou, sob vários proprietários e editores, até 1959. Contém em seus mais de 760 números grande quantidade de poemas, contos, crônicas e ensaios de autores capixabas. Entre os cronistas que colaboraram na revista no início dos anos 50 estão Eugênio Sette e o jovem José Carlos Oliveira.

O movimento modernista, iniciado em 1922, teve tímidos reflexos no Espírito Santo. Oscar Gama Filho arrola os nomes de Sezefredo Garcia de Rezende (1897-1978) e João Calazans (1910-1976). Rezende era diretor do Diário da Manhã, em que se editava uma página de divulgação das idéias modernistas. Publicou um livro de contos, Fogo de palha, que mereceu resenha altamente depreciativa de Alceu Amoroso Lima, e, no final da vida, Memórias 1897-1978. Calazans, autor da novela Pequeno burguês (José Olympio, Rio, 1952), defendeu o modernismo em suas colunas literárias no Diário da Manhã e na Vida Capichaba. No Diário da Manhã Calazans publicou em 1929 o “Bonde circular”, uma espécie de manifesto antropofágico local. Em 1941 atuou como redator-chefe de A Tribuna Ilustrada, suplemento dominical do jornal A Tribuna; contraditório em suas convicções, nas páginas desse suplemento Calazans realizou o concurso para a escolha do “príncipe dos poetas capixabas”, iniciativa bem pouco compatível com sua cruzada modernista de doze anos antes. Ainda nos anos 40, concebeu a Coleção Autores Capixabas para publicar, com recursos do governo estadual, 32 títulos de autores capixabas clássicos; dessa coleção saiu apenas o primeiro volume, em 1944: uma reedição do Esboço histórico de Francisco Antunes de Siqueira. Mencione-se ainda, como autor capixaba ligado ao modernismo, Aquiles Vivacqua (1900-1942), embora quase toda a sua atividade literária se tenha desenvolvido em Belo Horizonte, onde se radicou, tuberculoso, a partir dos vinte anos. Vivacqua deixou apenas um livro, na verdade uma plaqueta, com apenas seis poemas, a que deu o nome de Serenidade (1928). Fernando Correia Dias publicou uma notícia sobre o poeta.[ 56 ] Já o modernismo no Espírito Santo é tema do livro Modernismo antropofágico no Espírito Santo, de Luiz Busatto.

Figura inusitada na década de 20 é a de Antônio Dias Tavares Bastos (1900-1960), de que Manuel Bandeira dá notícia na crônica “Coração de criança”:

A. D. Tavares Bastos, nascido no Espírito Santo, nasceu poeta, e com ser brasileiro cem por cento, com uma tocante paixão pela França. Esse poeta capixaba não sabia exprimir-se poeticamente senão em francês. Onde o aprendeu? Creio que consigo mesmo. O certo é que escrevia em francês como um francês. Os seus versos franceses não são como os da quase totalidade dos brasileiros que se metem a poetar em francês. A prosódia poética de Tavares Bastos obedecia rigorosamente aos cânones banvillianos.
Foi ao tempo do movimento modernista que apareceram os volumes do poeta, intrigando-nos a todos sob o pseudônimo estranho de Charles Lucifer. Quem seria esse luciferino vate francês perdido nos trópicos? – perguntávamos. Quando autenticamos o autor na figura pequenina, cordial e doce do brasileirinho do Espírito Santo, logo principiamos a tratá-lo por Lúcifer, com acento na primeira sílaba, porque achávamos graça de assim chamar o menos demoníaco dos homens. Lúcifer, o mais orgulhoso dos anjos, o revel por excelência e por isso precipitado no Inferno – com ele nada tinha de parecido, por mais remoto que fosse, o bom, o simples, o cândido Tavares Bastos. Um rapaz que nunca vi dizer mal de ninguém, uma criatura completamente despida de orgulho, incapaz de inveja ou de qualquer outro sentimento menos nobre.
O ideal de Tavares Bastos era viver em Paris. Logo que pôde, arrumou as malas e partiu. Só voltou a visitar o Brasil uma vez. Em Paris se fixou, lá se casou com francesa, lá acaba agora de morrer. Em 57 tive ocasião de vê-lo pela última vez. A impressão que me deu foi penosa; meses antes fora acometido de derrame cerebral, recuperara-se, mas articulava mal. Era, apesar de tudo, o mesmo Tavares Bastos de 30 – bom, simples, bem-humorado, cândido. Um coração de criança, sem o menor veneno.
A paixão pela França nunca lhe embotou o constante amor pelo Brasil. Ao Brasil serviu sempre em Paris, e no setor literário foi quem revelou ao francês a poesia contemporânea brasileira. A sua Anthologie de la Poésie Brésilienne Contemporaine alcança a geração chamada de 45 e foi publicada em 54 pelas Éditions Pierre Tisné. Finas traduções, precedidas de um breve histórico da nossa poesia desde as suas origens.
A estranha aventura do poeta está terminada. “De l’autre côté des aubes allumées, là-bas, c’est le salut”. Tenho certeza de que o encontrou, porque ele sempre trouxe nos lábios a palavra pura “qui fait s’écrouler les falaises de glacê”. [23.X.1960][ 57 ]

Ao contrário do que diz Bandeira, Tavares Bastos não nasceu no Espírito Santo mas no Estado do Rio, tendo-se radicado muito cedo em Vitória devido à remoção, para cá, do seu pai, juiz federal. Numa relação impressa de suas obras constam Ballades brésiliennes e Les poèmes défendus, ambos editados por La Pensée Latine, Paris, em 1924, e Cynismes, suivis de Sensualismes, no prelo em 1927. Nessa relação constam ainda, como a publicar, três títulos de poesia – Les exaltations, Les paroxysmes, Surfaces ou Le pays de l’absence –, três de prosa – Marie l’egyptienne (romance), Cahiers de Voyage e Humoresque (novela) – e três de teatro – L’amante, Isabelle e Personne.[ 58 ]

Sua viúva, Georgette Tavares Bastos, deu as seguintes informações sobre o poeta:

Recebi sua carta de 22 de abril p.p. e espero poder fornecer-lhe os dados úteis sobre meu marido Antônio Dias Tavares Bastos.
Nasceu em Campos em 7 de julho de 1900. O pai era juiz federal em Campos, depois foi designado para Rezende, onde nasceu o segundo filho, Aureliano. Depois foi [para] Vitória, onde Antônio e Aureliano passaram os anos de mocidade.
Formado em Direito, o primeiro posto de Antônio foi o de promotor público em Vitória. Depois resolveu ser advogado no Rio de Janeiro onde ficou alguns anos (até 1937). Aí conheceu escritores, poetas, jornalistas, e começou a reunir e traduzir poemas para o francês (a língua francesa era a grande paixão dele). Como advogado, defendia de verdade “a viúva e o órfão”, de maneira que não enriqueceu… Era poeta mesmo!
Realizou o sonho dele quando embarcou para a França em 1937. Em Paris trabalhou no rádio, depois (ainda em 1940) na Embaixada do Brasil em Vichy (Paris fazia parte da zona ocupada pelos hitlerianos).
Conheci Antônio em Vichy, onde casamos em 17-12-42, o embaixador Souza Dantas sendo padrinho dele. Depois de 14 meses à beira do Reno (em Bad Godesberg), 3 semanas em Lisboa, 6 meses em Argel, voltamos a Paris em outubro de 1944. Quando foi criada a Unesco, Antônio foi designado para trabalhar na delegação brasileira junto ao novo organismo.
Publicou a Anthologie de la poésie brésilienne contemporaine em 1954. (Em 1966, foi reeditada pelas Éditions Seghers). Seghers havia publicado antes, em 1946, uma plaqueta de poemas em francês, L’école des disparus.
Antônio faleceu em Paris em 15 de outubro de 1960. A segunda edição da antologia foi então depois da morte dele.
Em 1956 traduzimos juntos (foi assim que “entrei” na tradução) dois contos brasileiros publicados pela Seghers no volume Les vingt meilleures nouvelles de l’Amérique Latine: de Guimarães Rosa (“A hora e a vez de Augusto Matraga”) e de Mário de Andrade (“Nisa Figueira, pour vous servir”). Depois traduzi um livro de contos de Monteiro Lobato, O instinto supremo de Ferreira de Castro, homenagem ao marechal Rondon, e Dona Flor e seus dois maridos, de Jorge Amado.
Em 1973, a NRF [Nouvelle Revue Française] publicou um número especial, 30 nouvelles du monde entier, entre os quais três “nouvelles brésiliennes” de Jorge Amado, de Adonias Filho e de Osman Lins.
Espero que esses dados poderão ser úteis. Peço desculpa pela minha letra, estou com problema de vista que vou ter que resolver.[ 59 ]

i) Anos 30 e 40: os príncipes dos poetas capixabas

A literatura feita no Espírito Santo no período que se seguiu à revolução de 30 se caracteriza pelo maciço predomínio quantitativo da poesia sobre a prosa. Acotovelam-se, nas páginas de Vida Capichaba e nos suplementos literários dos jornais, incontáveis poetas, diferentes entre si mais pela idade do que pelo estilo. Em sua maior parte mantêm-se tenazmente simbolistas e parnasianos, e fazem das formas fixas, sobretudo do soneto, o seu principal meio de expressão. Uns poucos aderem ao modernismo pela via do verso livre. Quase todos se assemelham pela falta de brilho e de originalidade; pode-se sugerir que seus textos compõem uma literatura feita em série. Alguns partem dos periódicos para um primeiro livro, no máximo para um segundo, onde reúnem a produção veiculada nos suplementos literários. Raros dentre eles têm talento, força ou disposição para se tornarem poetas de longo curso.

Os jovens intelectuais, quase todos estudantes de Direito, se distribuíam em duas coortes rivais, a Academia Espírito-santense dos Novos, liderada por Beresford Martins Moreira, e o Grêmio Literário Rui Barbosa, à cuja frente estava Mauro de Araújo Braga. Ambas tiveram efêmera duração.

Carlos Nicoletti Madeira, juntamente com Adelfo Monjardim e Luís Derenzi, funda a revista Chanaan, que durante alguns anos será concorrente da Vida Capichaba. Entre os colaboradores de Chanaan estão Eurípedes Queiroz do Valle, com a coluna “Micrólogos”, e o jovem Clóvis Ramalhete. O mesmo Carlos Madeira, em 1939, demonstrando gana editorial, publica, numa tiragem de 20.000 exemplares, o Anuário do Espírito Santo e Norte do Brasil.

Com o patrocínio da interventoria do Estado, lança-se em 1936 o Concurso Científico e Literário do Espírito Santo, dividido em várias categorias. O prêmio Estado do Espírito Santo, de ciência, é conquistado por Almeida Cousin; o Cidade de Vitória, de romance e teatro, por Carlos Madeira; o Muniz Freire, de contos e novelas, por Adelfo Monjardim, Clóvis Ramalhete e Arnulfo Neves; o Domingos Martins, de poesia, por Salvador Thevenard, Newton Braga e Alvimar Silva; e o Misael Pena, de história, erudição e crítica, por Carlos Madeira.

Foto da Avenida Capixaba nos anos 1940 com o prédio de A Tribuna à direita. Acervo Arquivo Geral da Prefeitura de Vitória.
Foto da Avenida Capixaba nos anos 1940 com o prédio de A Tribuna à direita. Acervo Arquivo Geral da Prefeitura de Vitória.

Cinco anos depois, realizou-se um concurso que pela própria natureza de seus objetivos mobilizou, de forma direta ou indireta, praticamente toda a legião de poetas capixabas em atividade na década de 30, a ponto de representar um verdadeiro painel da poesia da época. Trata-se do concurso para escolha do “príncipe dos poetas capixabas”, que João Calazans, redator-chefe de A Tribuna Ilustrada, suplemento dominical do jornal A Tribuna, também conhecido como A Tribuna – Suplemento, lançou em 1941 com a assessoria de Eugênio Sette. Eis o regulamento do concurso:

I – Fica instituído pela “A Tribuna – Suplemento” o Concurso para a escolha do “Príncipe dos Poetas Capixabas”.
II – O voto apresentará duas características. A primeira, intelectual. A segunda, popular. O voto intelectual, será dado indicando justificativa. O popular, por meio de “coupons” que serão publicados diariamente em “A Tribuna” e dominicalmente no Suplemento.
III – Fica estabelecido que só serão aceitos os votos dados aos poetas cuja relação vem sendo publicada em nossos números.
IV – Foi adotado o seguinte princípio, para a relação a que se refere a cláusula terceira: é considerado poeta capixaba, aquele cuja atividade intelectual foi ou é desenvolvida em todo o nosso Estado.
V – Em nossos números, também será publicada a relação dos intelectuais que deverão apresentar os votos devidamente justificados.
VI – Com o intuito de não ferir vaidades, perfeitamente naturais, resolvemos que, não só os poetas como, também os votantes intelectuais, terão os seus votos publicados por ordem rigorosamente alfabética.
VII – Como em todos os concursos semelhantes, o voto intelectual prevalece sobre o popular. Nesse caso, o voto intelectual corresponde a 100 “coupons” populares.
VIII – Homenageando cinco figuras do nosso passado, estabelecemos as seguintes denominações para os prêmios: 1° – Virgílio Vidigal; 2° – Ulisses Sarmento; 3° – Jonas Montenegro; 4° – Aristides Freire; e 5° – Vieira da Mota.
IX – Os votos dos intelectuais, à medida que forem recebidos, serão publicados em “A Tribuna – Suplemento”, observando-se a mais rigorosa ordem alfabética e cronológica.
X – O concurso para a escolha do “Príncipe dos Poetas Capixabas” deverá ser encerrado, salvo motivo de força maior, impreterivelmente a 31 de dezembro de 1941.
XI – Todos os votos, inclusive os justificados, deverão ser dirigidos a Eugênio Sette, Secretário do concurso, para a redação de “A Tribuna – Suplemento”.[ 60 ]

A relação dos poetas elegíveis incluía 51 nomes, entre os quais dez mulheres. A relação dos intelectuais votantes incluía 147 nomes, dentre eles 42 dos 51 poetas elegíveis. Não foram considerados intelectuais votantes os poetas Arlete Cipreste, Climério Borges da Fonseca, Grinalson Medina, Hercília Valverde, Haydée Nicolussi, Leonor Pereira, Lourdes Cupertino de Castro, Luís Moreira e Violeta Costa. Os prêmios previstos para os cinco poetas mais votados eram: para o primeiro lugar, a edição das poesias completas, em um ou mais volumes, pela Editora José Olympio, às expensas da interventoria do Estado; para o segundo lugar, a edição de um volume de poesias escolhidas, pela mesma editora, às expensas da Prefeitura de Vitória; para o terceiro lugar, a edição “extramercado” de um volume de poesias escolhidas, pela mesma editora, às expensas de A Tribuna – Suplemento; para o quarto lugar, “um lindo aparelho de rádio R.C.A. Victor, tipo alcova”, oferta da firma Moreira Rocha & Cia.; e para o quinto lugar, “um valioso estojo ‘Parker’ completo”, oferta da firma Moacyr Barbosa & Cia. Ltda..[ 61 ]

As justificativas dos votos intelectuais eram publicadas dominicalmente, às vezes até meia dúzia delas. Podiam ser meras declarações de voto, como a de Aurino Quintais – “Voto em João Bastos para príncipe dos poetas capixabas.[ 62 ] –, sóbrias e formais, como a de Clóvis Ramalhete,

O destino dos poetas sempre foi o dos músicos. Antigamente, menestrel era poeta e músico. E cantos e rimas cumprem seu fim quando logram andar por aí, nos lábios de qualquer…
Dos bons poetas que o Espírito Santo tem dado (e aqui recordo Newton Braga, Nilo Aparecida Pinto, Salvador Thevenard, Abílio de Carvalho…), nenhum alcançou a espalhada glória de um único, rabiscador dos versos famosos e perfeitos da “Salamandra”, tornados o Confeitor geral dos sentimentais desiludidos, nesta terra: “Dezesseis anos, trinta e dois amores, / trinta e dois corações desiludidos”…
É esse o motivo que me faz dar voto em João Bastos – já que não se trata de indicar uma predileção pessoal, mas sim de assinalar, para Príncipe dos Poetas Espírito-santenses, qual deles é o representativo da sensibilidade do nosso povo.[ 63 ]

ou viscerais, rasgados em estilo coloquial, como o de José Sette:

Calazans:

V. e Eugênio estão fora da época! Ninguém, nestes tempos de força e violência, cuida mais de versos, de poetas e de poesia! Talvez somente a [obra] do Camões, aquele d’Os Lusíadas, ainda fuja à total destruição. Isto porque o zarolho escreveu o poema, ali em Macau, em terras da China, onde pipocam fuzis e estrondam canhões. Mas se V. e Eugênio estão fora do momento, porque moços, nascidos sob o signo da força, comigo é diferente, como o lero-lero e o clima nacional. Vivi a mocidade quando era doce viver. Quando os rapazes liam versos e os decoravam, para repeti-los, baixinho, às namoradas, sem esgares à moda Berta Singermann, e gestos de mãos, à moda Margarida Lopes de Almeida. Os versos que me ficavam na memória eram líricos, daquele lirismo que perfuma toda a poesia brasileira, inclusive a parnasiana, a simbolista e a modernista. Porque, meus caros amigos, a gente aqui, apesar das aparências, ainda não foi muito além de Gonçalves Dias e Castro Alves, com passagens por Junqueira Freire e Casimiro de Abreu. Tenho assim de votar, acudindo às suas insistências. Voto no Ciro [Vieira da Cunha]. Não é ele lírico? Não tem nos versos música e ternura? Não recorda aqueles grandes precursores pela suavidade, pela perfeição artística? Não fala ao coração? Não parece um romântico retardatário, entre as agrestias atuais? Meu voto é dele. Recorda-me o tempo que passou.[ 64 ]

Houve também um voto declarado em branco, de Joaquim Ramos, que, apreciador de Casimiro de Abreu e dos ultra-românticos, assim conclui sua justificativa:

Do exposto, conclui-se que, não havendo na relação dos candidatos ao título de Príncipe dos nossos Poetas um, ao menos, com essa característica ultra-romântica, eu não poderia votar em outro, a menos que renunciasse às minhas convicções em matéria de estética.[ 65 ]

Os vencedores do concurso foram Narciso Araújo, com 4.423 votos; Ciro Vieira da Cunha, com 3.767; João Bastos, com 3.145; Newton Braga, com 2.365; e Willis Cunha, com 906 votos. Em sua edição de 4 de janeiro de 1942 o suplemento estampou o resultado geral do concurso, com uma epígrafe de Celso Calmon no pé da página: “Bem haja a hora feliz da iniciativa de João Calazans e Eugênio Sette, fazendo desfilar diante do Espírito Santo a figura dos seus vates.” A mesma edição traz na capa, sob o cabeçalho “VOTO DE HONRA”, um fac-símile de mensagem do interventor João Punaro Bley, nos seguintes termos:

Aos Governos cabe apoiar todas as iniciativas que, em qualquer setor das atividades humanas, visem o alevantamento do Estado ou do país, sejam elas de caráter industrial ou desportivo, econômico ou cultural.
Demos, por isso, nosso aplauso ao concurso instituído pela Tribuna Ilustrada – que tem, como redatores, jovens literatos espírito-santenses – assumindo a Interventoria o compromisso de fazer editar as obras poéticas completas do vencedor do certame.
E porque desejam os dirigentes do prélio o nosso voto, aqui o entregamos a Narciso Araújo, figura expressiva da intelectualidade capixaba, envelhecida em voluntário insulamento mas que se rejuvenesce, todas as horas, nas rimas de ouro e ritmos de luz com que continua enriquecendo o patrimônio espiritual deste abençoado pedaço do Brasil.[ 66 ]

Narciso Araújo, Príncipe dos Poetas.
Narciso Araújo, Príncipe dos Poetas.

Os poetas classificados nos três primeiros lugares tiveram, efetivamente, de acordo com o regulamento do concurso, seus livros publicados pela Editora José Olympio durante o ano de 1942. De Narciso Araújo foi editado Poesias (Primeira Série), reproduzindo-se aí o “Voto de honra” do interventor; de Ciro Vieira da Cunha, Alguma poesia; e de João Bastos, Caminhos da vida.

O concurso da Tribuna Ilustrada abrangeu, na sua lista de poetas elegíveis, os poetas capixabas mais em evidência na década de 30, e resultou na eleição, como “príncipe dos poetas capixabas”, de um simbolista histórico, Narciso Araújo, que – ao contrário do que se lê no fecho do “Voto de honra” de Bley – havia décadas não publicava um só verso, e que, recluso em sua cidade natal, merecera o epíteto de “solitário de Itapemirim”.

Dos 51 poetas elegíveis, 32 receberam votos, e apenas 21 receberam acima de 100 votos, o que pressupõe pelo menos um voto de intelectual. Dentre esse elenco da primeira linha da poesia capixaba da época podem-se citar: Ciro Vieira da Cunha (1897-1976), autor de Espera inútil (1933) e Alguma poesia (1942), além de ensaios como A correspondência de Machado de Assis (1940), a que se somariam, mais tarde, outros ensaios, No tempo de Paula Ney (1950), e No tempo de Patrocínio (1960), e uma autobiografia, Memórias de um médico da roça (1965); João Bastos Bernardo Vieira (1898-1962), autor de Caminhos da vida (1942); Newton Braga (1911-1962), adepto do modernismo, autor de Lirismo perdido (1945), Histórias de Cachoeiro (1946) e Poesia e prosa (1963, edição póstuma, reeditada em 1993), participou do movimento “Leite Criôlo” em Belo Horizonte, onde se formou em Direito em 1932; Benjamim Silva (1886-1954), autor de Escada da vida (1938), em que descreve, em vários sonetos, as belezas naturais do sul do Estado, principalmente de Cachoeiro de Itapemirim, onde nasceu; Kosciuszko Barbosa Leão (1889-1979), autor de Meditações (1940), JTM (1940; reeditado em 1977), Travos e trovas (1973) e Meu inverno (1979); Augusto Lins (1892-1982), autor de Zorobabel (1921; reeditado em 1957), Pranto e canto de amor filial (1955) e Variações estéticas do Canaã (1966), além de Graça Aranha e o Canaã (1967), no qual encerrou os resultados da pesquisa de uma vida inteira sobre o romance Canaã; José Coelho de Almeida Cousin (1897-1991), mineiro de nascimento, radicou-se nos anos 30 em Vitória, onde publicou Itamonte (1932; reeditado em 1958), Naufrágios (1937), O amor de Don Juan (1938); Otávio José de Mendonça (1901-1975), autor, sob o pseudônimo de Mesquita Neto, de Rua do coração (1957); Hilário Soneghet (1904-1969), autor de um livro publicado postumamente, Por estradas curvas (1971), de quem José Augusto Carvalho editou, em 1999, Quase toda a poesia; e Alvimar Silva (1911-1943), autor de Clarões (1935) e Música de Longe.

De toda essa legião de poetas mais ou menos competentes tecnicamente, só uma voz destoa, produzindo uma poesia original de alto nível. É Haydée Nicolussi (1905-1970), figura apaixonante, que trocou Vitória pelo Rio de Janeiro no início dos anos 30, colaborou no Diário de Notícias, em O Jornal, em A Noite, no Diário da Noite e em O Estado de São Paulo, traduziu Bukarin e Gladkov, e acabou presa pelo Estado Novo: Graciliano Ramos cita o seu nome numa passagem das Memórias do cárcere. Publicou um só livro, Festa na sombra, em 1943, no Rio. Não recebeu nenhum voto no concurso da Tribuna Ilustrada, mas mereceu um necrológio de ninguém menos que Drummond:

A bonita moça loura, desenhada por Arpad Szenes, que nos anos 40 chegava ao Ministério da Educação para protestar contra a inustiça, a deslealdade e a burrice no curso que vinha fazendo e na repartição onde lhe deram um vago emprego de escriturário interino; que tinha relâmpagos de raiva escondendo a ternura machucada; que oferecia seu livro de versos “com intenção de carícia mesmo no mais leve arranhão”; que queria viver cem anos de amor com o mesmo homem, em casa própria, com filhos, livros, alguns amigos, viagens (era bem burguês o seu ideal de revolucionária romântica e tradutora de Bukharin, que comeu cadeia sob o Estado Novo); a moça que de repente sumiu, literalmente sumiu, nunca mais ninguém a encontrou nas exposições de pintura, nos concertos, nos bares, não publicou mais uma palavra; abro o jornal e vejo o retângulo tarjado: “Sepulta-se hoje às 16 horas”; a vida não foi uma festa para Haydée Nicolussi, que entretanto chamou o seu livro “Festa na Sombra”. (“Notícia vária”, Jornal do Brasil, 21/02/1970).[ 67 ]

Em 1947, por iniciativa de Augusto Lins, realizou-se de 5 a 20 de dezembro a Quinzena de Arte Capixaba, que incluiu conferências, récitas poéticas, audição de música, recitais de canto e espetáculos coreográficos com escritores, intelectuais, artistas e músicos capixabas. No âmbito da Quinzena realizou-se um concurso para eleger o sucessor de Narciso Araújo, morto em 1944, como príncipe dos poetas capixabas. Geraldo Costa Alves foi eleito em primeiro lugar, ficando em segundo Elmo Elton Santos Zamprogno e, em terceiro, repetindo sua colocação no primeiro concurso, João Bastos. A novidade foi a eleição das três melhores poetisas do Espírito Santo, tendo sido eleitas Virgínia Tamanini, Maria José Albuquerque de Oliveira e Arlette Cypreste de Cypreste.[ 68 ]

Geraldo Costa Alves (1922-1973), autor de Jardim das Hespérides (1943), Cem quadras (1968) e A árvore (1969), e Elmo Elton Santos Zamprogno (1925-1988), autor de Marulhos (1946), Heráldicos (1952; reeditado em 1968), Dona Saudade (1954), Cantigas (1976), Poemas (1976), Anchieta (1984), além de ensaios como O noivado de Bilac (1954), Amélia de Oliveira (1977) e A família de Alberto de Oliveira (1979) e uma coletânea, Poetas do Espírito Santo (1982), são legítimos representantes da poesia capixaba surgida na década de 40, e em pouco diferem dos seus colegas da década anterior.

j) Anos 30 e 40: pouca prosa

Rubem Braga (1913-1990) saiu de Cachoeiro de Itapemirim para se tornar, no Rio de Janeiro, um dos melhores cronistas do país. Estreando na crônica em 1928, tem extensa bibliografia no gênero: O conde e o passarinho (1936), Morro do isolamento (1944), Com a FEB na Itália (1945, reeditado com o título Crônicas da guerra na Itália), Um pé de milho (1948), O homem rouco (1949), A borboleta amarela (1953), A cidade e a roça (1957), Ai de ti, Copacabana (1960), A traição das elegantes (1967), 200 crônicas escolhidas (1978), Recado de primavera (1984), Crônicas do Espírito Santo (1984) e As boas coisas da vida (1988). Publicou também poesia, Livro de versos, lançado originalmente em 1944 junto com as crônicas de Morro do isolamento e separadamente em 1993.

Na primeira metade do século XX, a literatura feita em prosa no Espírito Santo é sobretudo a crônica, já que os suplementos literários dos jornais também se alimentavam de textos curtos, descartáveis. Nelson Abel de Almeida (1905-1990) iniciou-se como cronista em 1925 no jornal Folha do Povo, e nos anos 50 manteve em A Gazeta uma coluna intitulada “Para ler no bonde”. Uma amostra da sua produção inicial, publicada entre 1925 e 1929 nos jornais Folha do Povo, Jornal do Comércio e A Gazeta, e na revista Vida Capichaba, está no livro De seta e bodoque (1982). Jair Tovar (1896-1985), auto-exilado no Rio de Janeiro depois da revolução de 30, aí publicou Trigo velho (1951), reunindo crônicas escritas na década de 20 em Vitória. Eurípedes Queiroz do Valle (1897-1979) reuniu no livro Micrólogos (1968) cerca de duzentas crônicas que, com o pseudônimo de Beneventino, publicara em jornais entre 1935 e 1968. O já citado Almeida Cousin, da mesma forma, reuniu sob o título Cartões a Lálace (1984) as crônicas que publicou em Vida Capichaba, com o pseudônimo Célio, nos anos de 1928 e 1929.

Eugênio Sette (1918-1990), cronista da Vida Capichaba na virada das décadas de 40 e 50, difere dos cronistas anteriores pela linguagem simples, coloquial, e por uma temática combinando nostalgia, melancolia, e pessimismo. Suas crônicas foram reunidas no livro Praça Oito (1953; reeditado em 2001 como título inaugural da Coleção Gráfica Espírito Santo de Crônicas), e é ele autor, ainda, de Pretos e brancos: poemas traduzidos (1952).

Celso Bomfim (1917-1981), que colaborou assiduamente nos jornais de Vitória e em O Estado de Minas, de Belo Horizonte, onde se radicou a partir dos anos 50, só deixou um livro de crônicas, Salvanèlo, a montanha e o vento (1975), em que se concentra na colonização italiana no Espírito Santo, na sua meninice e no amor a Santa Teresa, sua cidade natal.

Até a metade do século XX poucos são os autores capixabas que se aventuraram seriamente pelo conto e pelo romance. Num período em que o romance brasileiro eclodia com Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Marques Rebelo, Érico Veríssimo e Jorge Amado, no Espírito Santo o nome de Carlos Nicoletti Madeira (1909-1969) desponta quase isolado nesse gênero, com O romance de Teresa Maria (1937), que recebeu o Prêmio Cidade de Vitória e foi editado pela Imprensa Oficial. Cristiano Fraga descreveu assim esse romance: “É o transbordar de confidências de uma mulher, deixadas em páginas de um diário, sem datas precisas, e apenas para desafogar os momentos de maior crise dolorosa, numa verdadeira volúpia de sofrimento. Carlos Madeira penetra profundamente o íntimo de um coração feminino, que sangra por um amor proibido. Antes dele muitos tentaram essa aventura psicológica sem o mesmo sucesso.[ 69 ] Clóvis Ramalhete (1914-1995) aparece como cronista da revista Chanaan já em 1937. Radicado no Rio de Janeiro, publica em 1941 o romance Ciranda, laureado com o Prêmio Vecchi de Romance; em 1942 publicaria o ensaio Eça de Queiroz, premiado pela Academia Brasileira de Letras e, em 1966, O anjo torto, contos. Sobre Ciranda Cristiano Fraga informa: “Narra o cotidiano dos hóspedes de uma pensão carioca do Catete. Casados e solteiros, de várias idades e ocupações. E entre eles o próprio moço romancista, escritor já feito, a caracterizá-los todos no correr da ação, a mostrar que cada vida é um romance, desde que seja contada com arte. Aclamado no Rio como romance criador de novos rumos realistas e discutido em São Paulo como livro de contos entreligados.[ 70 ] Adelpho Poli Monjardim (1903-2003) publica, na mesma década de 40, um romance infanto-juvenil, O tesouro da ilha de Trindade (1942), e textos de aventura em Novelas sombrias (1944, premiado no Concurso Científico e Literário de 1936), voltando à mesma veia de ação e aventura em moldes clássicos em Torre do silêncio (sem data), contos, e Sob o véu de Ísis (1978), romance. Em 1949, fechando a década, Paulo Alves (1921–) publica um livro de contos, Albertina; em dois dos contos emprega recursos metalingüísticos, antecipando, num deles, “O autor e o personagem”, situações que seriam exploradas mais tarde por Fernando Tatagiba. João Calazans, já citado anteriormente, publica em 1952 o romance Pequeno burguês, escrito em 1933. Segundo Renato Pacheco, Calazans “narra episódios vividos em São Paulo por Leandro de Albuquerque, jovem nordestino de Propiá que se filia, medrosamente, ao Partido Comunista”.[ 71 ] Dentre esses episódios estão a arregimentação de tecelões no Brás ou no Ipiranga, prisões, deportação para o Uruguai, amor com uma trotskista, Clemência, que depois se bandeia para os integralistas, até o recebimento da herança de um padrinho, que depois lhe é retirada, pois o padrinho não morrera. “Não é a obra que seus conterrâneos esperavam de Calazans”, comenta Renato Pacheco.[ 72 ] Depois de deixar Vitória em meados dos anos 40, Calazans editou, em Belo Horizonte, a revista literária Panorama. Radicado posteriormente em Recife, ali morreu em 1976.

O romance capixaba moderno só teria início nos anos 60, com Renato Pacheco; o conto capixaba moderno, só nos anos 80, com Fernando Tatagiba e Bernadette Lyra.

No campo da análise literária, merece destaque o nome de Tulo Hostílio Montenegro (1916-1996), que lançou em 1949 Tuberculose e literatura: notas de pesquisa, que teve em 1971 uma segunda edição revista e aumentada. Trata-se de um vasto levantamento de textos literários referentes à tuberculose, tanto na poesia como na prosa, tanto de autores tísicos – abordados na seção “A tuberculose na primeira pessoa do singular” – como de personagens tísicos – abordados em “A tuberculose transferida”. A primeira edição do livro foi acolhida com entusiasmo pela crítica brasileira. Dele disse, por exemplo, Sérgio Milliet em O Estado de São Paulo: “Nossa literatura crítica carece de obras do gênero dessa que escreveu Tulo Hostílio Montenegro. Elas ajudam a compreender melhor a criação artística.[ 73 ] E Rachel de Queiroz em O Cruzeiro: “E fechando-se a última página, nós que vamos morrer do coração ou vamos morrer do fígado, não podemos fugir a um singular complexo de inferioridade, como se descobríssemos de repente que somos feitos de material mais grosseiro, menos nobre, ou que, por falta de títulos, estamos excluídos de uma aristocracia de eleitos, que sempre nos fascinou misteriosamente.[ 74 ] Estatístico do IBGE e, posteriormente, secretário geral do Instituto Interamericano de Estatística em Washington, onde se radicou até o final da vida, Tulo Hostílio Montenegro ainda é autor de estudos pioneiros no Brasil como aplicação de instrumentos científicos à elucidação de problemas literários: O comprimento do período como característica estatística de estilo (1955) e A análise matemática do estilo (1956).

Guilherme Santos Neves, um dos autores da obra Cantáridas e outros poemas fesceninos, começou, na década de 40, a divulgar em jornais e revistas os resultados de suas pesquisas sobre o folclore capixaba. Nessa década, em 1949, fundou o boletim Folclore, que circulará até 1982. Seu livro mais importante, no campo da literatura oral, é Romanceiro capixaba, publicado em 1981, cuja segunda edição saiu em 2000 pela Prefeitura de Vitória. Dentre outros livros, é autor de Visão de Anchieta (edição póstuma, 1997).

k) A Academia Capixaba dos Novos 

A exemplo da Academia Espírito-santense dos Novos, fundada em 1932, que pouco tempo durou, os jovens da década de 40 envolvidos com a literatura fundaram em 1946 a sua agremiação, a que chamaram Academia Capixaba dos Novos. Renato Pacheco, um de seus fundadores, deu sobre ela o seguinte depoimento:

A Academia Capixaba dos Novos, fundada em 1946 e que comandou a cultura vitoriense nos últimos anos da década de 40, nada tinha a ver com suas antecedentes [A Academia Espírito-santense dos Novos e o Grêmio Literário Rui Barbosa], de que seus membros não tinham nem consciência. Foi fundada por Antenor de Carvalho, Renato Pacheco e Nélio Faria Espíndula, numa quadra de esportes que havia na praça Costa Pereira, onde hoje é o edifício do INPS. Os três lamentavam o marasmo literário vitoriense e logo arregimentaram Rômulo Salles de Sá, Orlando Cariello, Cristiano Dias Lopes Filho, Durval Cardoso, Waldir Magalhães Pires, Valério Leão de Lima, Waldir Ribeiro do Val, Alvino Gatti, José Carlos Fonseca, José Garajau da Silva, Setembrino Pelissari, Guilherme Monteiro de Sá, Renato Bastos Vieira, João Francisco Gonçalves, José Wandevaldo Hora, Carlos Augusto de Góes, Hermínio Blackman, a mocidade estudiosa de então, principalmente saída dos quadros dos primeiros anos da Faculdade de Direito e dos últimos anos do Colégio Estadual do Espírito Santo, militares, radialistas e bancários, situando-se seus componentes na faixa etária dos 18 aos 25 anos.
O primeiro presidente da Academia foi Orlando Cariello, seguido de Renato Pacheco, Rômulo Salles de Sá e Waldir Ribeiro do Val. Entre as realizações da Academia, naqueles primeiros anos de atividade, destacamos:
– Palestras sobre Jorge de Lima [por Renato Pacheco], Walt Whitman [por Eugênio Sette], Novos Rumos [por Clóvis Rabello], Macunaíma [por Guilherme Santos Neves], Rui Barbosa [por Rosendo Serapião], Cinqüenta anos de literatura brasileira [por Ciro Vieira da Cunha], Shakespeare [por Renato Pacheco];
– Cursos de Português e Literatura, de Cultura Histórica, de Retórica;
– Comemorações da promulgação da Constituição, do quarto centenário de Cervantes, do centenário de Joaquim Nabuco;
– Concurso sobre Anchieta;
– Recitais de Margarida Lopes de Almeida, Carmen Vitis Adnet e Maria Filina Salles de Sá.
Seus membros publicaram livros, como Pobres crianças do Brasil, de Renato Bastos Vieira, Renato Pacheco, Rômulo Salles de Sá, Setembrino Pelissari e Luiz Caetano de Oliveira, buscando uma poesia nitidamente social; Fragmentos, de Antenor de Carvalho; Sangue, amor e neve, de Waldir Magalhães Pires, que narra a epopéia da Força Expedicionária Brasileira; Cântaros vazios, de Waldir Ribeiro do Val; e Bilhete para Cervantes e Poesia entressonhada, de Renato Pacheco.
Cristiano Dias Lopes Filho, sob inspiração de Feline Tiago Gomes, de Pernambuco, organizou em 1948 a Campanha Nacional de Educandários Gratuitos que, em pouco tempo, criou dezenas de ginásios, no interior do Estado, hoje transformada na Campanha Nacional de Escolas da Comunidade. A ligação inicial dos dois movimentos se deu porque o jovem educador pernambucano procurara, em Vitória, a Academia Capixaba dos Novos, porém logo, em 1949, a CNEG ganhou autonomia, tendo rendido frutos mesmo depois da extinção da Academia dos Novos.
As reuniões ordinárias da Academia eram verdadeiras tertúlias literárias nas tardes de sábado e se realizavam na sala do 3° andar do antigo edifício do Banco de Crédito Agrícola do Espírito Santo (hoje Banestes) cedida à Academia Espírito-santense de Letras. Após a leitura da ata e do expediente, religiosamente feita, todos os presentes liam suas produções literárias da semana. Os livros de atas e de trabalhos apresentados no período, arquivados na Seção de Memória do Centro Cultural Carmélia M. de Souza atestam o que estamos afirmando.
Terminado o impulso inicial, que durou quatro anos, o grupo inicial da Academia Capixaba dos Novos – muitos de seus membros assumiram novas obrigações, casaram-se ou se mudaram para o interior, como bancários ou promotores, outros entraram nas lides políticas – foi substituído por uma nova geração de escritores que, já no final da década de 50, houve por bem extinguir a Academia e criar o Clube do Olho, de que participaram Jeová de Barros (último presidente da ACN), Xerxes Gusmão Neto, Cláudio Antônio Lachini, Olival Mattos Pessanha, Carlos Chenier.
O novo grupo, refletindo o estado da sociedade circundante, tinha conotações ideológicas de que estava livre a Academia Capixaba dos Novos, podendo dizer-se que, à época, a maioria de seus membros tinham inclinações esquerdistas, procurando fazer uma literatura a serviço da reforma.[ 75 ]

Em 1951 a Academia Capixaba dos Novos, por ocasião dos festejos do quarto centenário de Vitória, publicou um folheto, ilustrado com fotografias, contendo uma lista das realizações da Academia e o texto dos seus estatutos.[ 76 ]

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NOTAS

[ 49 ] Carta de Guilherme Figueiredo a Guilherme Santos Neves, datada de 17 de junho de 1963.
[ 50 ] Recorte sem data de O Jornal, do Rio de Janeiro, mas provavelmente de 1963, ano em que Figueiredo recebeu o exemplar da Doutrina.
[ 51 ] Oscar Gama Filho [1984b].
[ 52 ] Luiz Busatto [1984].
[ 53 ] Affonso Romano de Sant’Anna [1985].
[ 54 ] Oscar Gama Filho [1990], p. 559.
[ 55 ] Vida Capichaba [1923].
[ 56 ] “Relembrando Achilles Vivacqua”. In Suplemento Literário de Minas Gerais, n. 64, outubro de 2000. Inclui fac-símiles de algumas páginas do livro Serenidade e de cartas dirigidas a Vivacqua por Guilhermino César, Ascenso Ferreira, Gilberto Câmara e Antônio de Alcântara Machado.
[ 57 ] Manuel Bandeira [1966], p. 292-3.
[ 58 ] Cf. Leão de Vasconcelos [1927]. Charles Lucifer (Tavares Bastos) foi quem traduziu para o francês o livro de Leão de Vasconcelos, e na p. 2 consta a relação de suas obras.
[ 59 ] Carta de Georgette Tavares Bastos a Renato Pacheco, datada de 25 de maio de 1994.
[ 60 ] A Tribuna Ilustrada, suplemento dominical de A Tribuna, 14 de dezembro de 1941. Enquanto durou o concurso o seu regulamento foi publicado no suplemento dominical.
[ 61 ] Idem, ibidem.
[ 62 ] Idem, 4 de janeiro de 1942.
[ 63 ] Idem, ibidem.
[ 64 ] Idem, ibidem.
[ 65 ] Idem, 23 de novembro de 1941.
[ 66 ] Idem, 4 de janeiro de 1942.
[ 67 ] Apud Elmo Elton [1982], p. 132.
[ 68 ] José Augusto Carvalho [1982].
[ 69 ] Cristiano Fraga [1972], p. 23.
[ 70 ] Idem, ibidem, p. 24.
[ 71 ] Renato Pacheco [1988].
[ 72 ] Idem, ibidem.
[ 73 ] In Tulo Hostílio Montenegro [1971], p. 407.
[ 74 ] Idem, ibidem, p. 405.
[ 75 ] Depoimento manuscrito de Renato Pacheco, destinado especificamente a inclusão neste trabalho.
[ 76 ] Academia Capixaba dos Novos [1951].

Reinaldo Santos Neves é escritor com vários livros publicados e foi responsável pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Literatura do Espírito Santo, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

1 Comment

  • Anônimo
    28/08/2018

    Quanto à primeira metade do século XX, sobretudo a respeito de Antônio Dias Tavares Bastos (1900 – 1960), de quem parente não sou, considero altamente rico, porque bem informativo, esse estudo de Reinaldo Santos Neves. Felizmente, no tocante a aspetos biobliográficos do citado poeta e tradutor [Tavares Bastos], vejo, na atualidade, um grande interesse por parte do também literato Anaximandro de Amorim, ora o mais jovem da Academia Espírito-santense de Letra; este, um francófilo e até muito douto no idioma de Rousseau. (Marcos Tavares)

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