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Textos selecionados do livro Crônicas da insólita fortuna

VALENTIM NUNES, BOMBARDEIRO DA MORTE SOLITÁRIA

“Senhor, não me acomeis hoje os meus pecados!”, bradou Duarte Pacheco Pereira, capitão-mor da Índia, vendo falhar os dois primeiros camelos de bombarda que havia ordenado contra o um dos oito castelos navegantes do samorim de Calecute, que avançavam em direção às forças portuguesas. Em seguida, voltando-se para Valentim Nunes, seu bombardeiro de confiança na caravela Conceição, deu nova ordem de fogo.

Ao terceiro disparo, a fortaleza principal, atingida ao meio, desarranjou-se sobre os dois paraús em que estava assentada, em vigas de madeira que corriam de proa a popa, e veio abaixo, despencando nas águas marítimas do passo de Cambalão, como um castelo de cartas. Estava demonstrada aos combatentes lusitanos a fragilidade da engenhoca bélica inventada por um estrategista mouro para o samorim de Calecute derrotar as forças de Duarte Pacheco, empenhadas na conquista de Cochim, em 1503. Desta vitória saíram os motivos que ornaram o brasão de Duarte Pacheco, onde sobressaíam, na bordadura do escudo, que em linhas azuis reproduzia as águas do mar contra um fundo prateado, os oitos castelos verdes de madeira, montados, cada um deles, sobre os paraús postos a pique pelo capitão.

Havia dez anos que Valentim Nunes servia ao fidalgo e cosmógrafo Duarte Pacheco, a cuja guarda fora recolhido de um dos orfanatos de Lisboa. Quando Pacheco firmou, como perito e testemunha do rei de Portugal, o Tratado de Tordesilhas, Valentim Nunes estava presente à cerimônia, empertigado e de penacho à chapeleta, na condição de pagem do fidalgo. Tornando-se adulto, começou a se adestrar no manejo das armas de fogo, principalmente dos truns e das bombardas de três câmaras, nas muitas viagens que Duarte Pacheco fez navegando o litoral africano, que lhe permitiriam escrever o Esmeraldo de situ orbis.

Em 1509, foi de Valentim Nunes o disparo que pôs ao fundo, nas águas do cabo Finisterra, um dos quatro navios do pirata Mondragon, que um ano antes havia saqueado a nau portuguesa de Job Queimado, quando voltava das Índias. Esta afronta dos franceses, e o grande prejuízo daí advindo, levaram o rei de Portugal a encarregar Duarte Pacheco de perseguir Mondragon, à testa de uma armada de muitas velas, ainda que para isto tivesse de navegar ao fim da Terra. Do embate havido, os navios que restaram ao pirata foram levados presos para Lisboa, e Mondragon com eles.

Datam de 1511 os últimos falcões que Valentim Nunes serviu à voz de comando de Duarte Pacheco, quando o capitão chefiou a armada que D. Manoel enviou contra o rei de Fez, que havia cercado a cidade de Tânger. Com a nomeação de Duarte Pacheco para governar a cidade de S. Jorge de Mina, Valentim Nunes seguiu com ele, não havendo mais registros de pelejas em que tenham ambos se enfronhado.

A morte do seu protetor, em 1533, depois de abandonado e desprezado por D.João III, devolveu a Valentim Nunes a sensação de orfandade da infância, que se tornava mais pesada a cada visita que fazia à sepultura de Duarte Pacheco, onde nem sequer um epitáfio nobre registrava então os feitos do fidalgo.

Foi, pois, para sair da situação de penúria em que se encontrava, que Valentim Nunes aceitou vir para o Brasil na expedição de Vasco Fernandes Coutinho. Mas um segundo motivo houve, de fundo nostálgico: o desejo de rever a terra que havia visto ainda mancebo, e que tanta impressão lhe causara, quando participou da armada do almirante Pedro Álvares Cabral, no ofício de criado de Duarte Pacheco, nela presente como figura de vanguarda. De sua parte, Vasco Fernandes teve, em Valentim Nunes, o único participante de sua expedição que já conhecia o Brasil, ainda que este conhecimento tivesse sido colhido de passagem e pelos olhos de um mancebo. Mas admitia o capitão que, se não lhe valessem tais conhecimentos sobre a terra do Brasil, muito útil lhe seria a experiência do bombardeiro do Cambalão, no trato da pólvora e nas manobras dos canhões.

À chegada da caravela Glória às terras doadas a Vasco Fernandes pelo rei de Portugal, índios acorreram às praias da baía por onde enveredou a embarcação em suave singradura. Sem saber se o ânimo dos selvagens era de paz ou de guerra, ordenou o capitão a Valentim Nunes que fizesse troar o primeiro disparo de bombarda que na capitania se ouviu. O tiro alarmou a indiada que sumiu na floresta, permitindo o desembarque sem qualquer transtorno. Estava dito assim para o que vinha Vasco Fernandes ao Espírito Santo e para o que Valentim Nunes vinha com ele.

Enquanto viveu na capitania, o bombardeiro perdeu a conta dos muitos petardos que disparou sobre a cabeça dos selvagens, fazendo agitar as folhas das matas e afugentando araras e macacos.

Seu último combate foi, porém, um combate solitário, travado sem o estrondo dos canhões contra uma turba de selvagens ensandecidos. Os bugres haviam arrasado as lavouras de Jorge de Menezes, na ilha vizinha à que Valentim Nunes tinha recebido de Vasco Fernandes em sesmaria, e de lá, em canoas ligeiras, arremeteram contra o bombardeiro.

Valentim Nunes viu as embarcações se aproximar em formação cerrada, tendo paliçadas por escudos, e reagiu à distância com os tiros de arcabuz que pode dar. Mas eram tantos os atacantes que de nenhum efeito pareceram os disparos dados contra eles. A Valentim Nunes, a ferocidade do gentio lembrava os mouros no ataque do samorim de Calecute e sua gente ao capitão Duarte Pacheco Pereira, na águas do passo de Cambalão. Caso saísse vivo da refrega, não seria um despropósito que também viesse a merecer do rei de Portugal um brasão luzidio onde a bordadura do escudo, reproduzindo a planura azul do mar, estivesse adornada pelas canoas dos índios.

Mas se Valentim chegou a pensar nisso, este sonho morreu na praia, quando enfrentou sozinho a enxurrada de bugres que sobre ele desabou, fazendo com que acoimasse ali os seus pecados.

BRÁS TELES, CARREGADOR DE AÇÚCAR

Brás Teles conduzia seu navio com a segurança dos velhos lobos do mar, que liam as linhas navegáveis dos oceanos na palma curtida da mão. Sua caravela era verde, as velas brancas. Mas de tantas viagens que fez entre Portugal e o Brasil, transportando açúcar e algumas miudezas de menor valor, o casco enegrecera e os panos, ainda de bitola estreita, desfraldados dos mastros de pinho de Alcácer, encardiram e se encresparam sob as chibatadas dos ventos.

Nascido em Póvoa do Varzim, desde cedo habituara-se à vida dos rudes. Seu pai, cristão velho e pescador cujos pêlos nasais saltavam das narinas como flamas de dragão, o fez discretamente batizar com água tirada ao mar numa cuia de prata, relíquia de família. O menino sentiu na boca o gosto dos sargaços antes que pudesse saber que o mar era o seu destino.

Quando completou oito anos, foi à pesca do bacalhau, na companhia do pai e do tio, e aprendeu a abrir o peixe e estendê-lo em bandas, nos varais de madeira em que secava ao sol. Amava aquele cheiro forte que parecia não ter fim e que aumentava como se saído de um sovaco inesgotável, cujas ardências o caminhar do sol acentuava dia afora impregnando, como um bafo morno, os barretes verdes da gente do Varzim. Mas quando Brás Teles se fez homem e conseguiu, em sociedade com um hebreu de barbicha enrodilhada e olhar pecuniário, que passava a maior parte do tempo em Burgos, armar sua caravela de cascos verdes e velas brancas, dedicou-se ao comércio do açúcar do Brasil. E fez da capitania do Espírito Santo seu ponto de abastecimento predileto.

Em 1545, tirou dali o primeiro carregamento que a história do lugar registra. Era um açúcar mascavo e duro, acondicionado em caixas de madeira aplainada pelos formões de cabo descoberto, colhida na mataria próxima das praias. A madeira era utilizada sem que tivesse tempo de secar completamente, e muitas caixas choravam, durante a viagem para Portugal, a seiva que ainda conservavam nas fibras porejantes. Para Brás Teles pareciam lágrimas que a selva deitava em alto-mar, misturando-se à gosma dos ventos oceânicos.

Mas não foi esta a primeira vez em que veio ao Espírito Santo para o comércio de escambo. A cana ainda levaria algum tempo para dar seus caldos nos engenhos da terra, e já Brás Teles rasgara navegações com a região, de onde levou para o Reino pau-brasil e miçangas de bálsamo, as quais vendia como remédio para as curas das doenças. O rei de Portugal, em troca deste interesse, assegurou-lhe, por contrato lavrado no tabelionato do civil, o arrendamento de todo o pau-brasil que extraísse entre a foz do Mucuri e a do São Mateus. Enquanto durou o privilégio da extração, Brás Teles tirou dali os toros que pôde retirar sem pôr em risco a vida e os negócios nas mãos dos tapuias que dominavam as matas do lugar, cujas copas encobriam a luz do sol.

Quando se esgotou o prazo do arrendamento, já a capitania do Espírito Santo estava fundada e entregue ao governo do donatário Vasco Fernandes Coutinho. Brás Teles preferiu se dedicar ao negócio do açúcar tratando diretamente com Vasco Fernandes. Chegou a fazer então, com os melhores resultados, três viagens para o Reino, levando a produção das canas do Espírito Santo, a caravela abarrotada de lacrimosas caixas de açúcar. Após o terceiro carregamento, o sócio hebreu o foi abraçar em Lisboa, grato pelos lucros que a sociedade estava dando.

Brás Teles fez figa com a mão esquerda enquanto recebia o abraço do parceiro que lhe socava efusivamente as costas com os dedos repletos de anéis de ouro. Era supersticioso e preferia que os negócios em que estavam os dois metidos prosperassem sem os ruídos da exaltação ostentatória.

Não lhe valeu, porém, contra o azar do destino, a isola da figa feita com os dedos canhotos. Na viagem seguinte, sua caravela foi atacada no recife de Dom Rodrigo por um galeão de bandeira negra, com a caveira gravada sobre os fêmures brancos.

Depois de assistir ao seqüestro da carga, Brás Teles, e toda a sua tripulação, foi obrigado a despencar no mar, empurrado a ponta de sabre pela prancha dos condenados. Sucumbiu de frio, agarrado aos destroços de uma caixa de açúcar, despedaçada no seqüestro.

MARIA ORTIZ, HEROÍNA INESPERADA

O prazer de Maria Ortiz era rolar pela ladeira do Pelourinho dentro de uma ancoreta vazia. Tinha nove anos nessa época. Seu pai, o espanhol Juan Orty y Ortiz, veio para o Espírito Santo em 1621, quando Felipe III facilitou a imigração de estrangeiros para o Brasil. Negociava com vinho e mantinha uma taberna no térreo de um sobrado branco, na parte mais estreita da ladeira do Pelourinho. O vinho era trazido da ilha da Madeira nas ancoretas que os negros carregavam na cabeça, do porto dos Padres até a taberna de Juan Ortiz. Ali ficavam empilhadas e iam sendo esvaziadas à medida do consumo pela gente da vila de Nossa Senhora da Vitória.

O contrato de Juan Ortiz com seus fornecedores previa a reposição dos estoques segundo partidas anuais, o que raramente se verificava. O comum era o taberneiro e seus fregueses ficarem na falta da bebida, esperando que chegasse a Vitória uma das naus da ilha da Madeira, com o precioso líquido. Quando isto acontecia, as ancoretas usadas eram trocadas pelas cheias, e recomeçava o ciclo da venda e do consumo do vinho verde na ilha de Vitória.

Mas nem todas as ancoretas eram substituídas. Algumas ficavam perdidas na rolagem da ladeira do Pelourinho, quando Maria Ortiz se enfiava dentro delas, nos folguedos de rola-montanha, às vezes só, às vezes ajudada pelo molecote que servia à sua mãe, a andaluza Carolina Darico.

Carolina era o que se pode chamar de uma mulher cônscia das responsabilidades do lar. E este hábito elogiável impunha à filha com firmeza. Seus gritos para Maria Ortiz sair de dentro do barrilete rolador e vir limpar a casa ou ajudar no preparo do almoço faziam tremer a rampa do Pelourinho muito mais do que os uivos de dor dos açoitados, punidos no poste da lei, no alto da ladeira. A menina voltava para casa aos saltos, pois sabia que quanto mais demorasse em atender ao chamado materno mais secos seriam os cocurutos reservados à sua cabeça. Mas nem por isto deixava de voltar à sua brincadeira preferida sempre que Carolina Darico se distraía ou quando se ausentava de casa, e sempre que havia ancoretas disponíveis, na taberna do pai.

Num certo dia de março de 1625, o barrilete em que Maria Ortiz arremeteu, ladeira abaixo, abriu-se exatamente aos pés de uma tropa de holandeses que se preparava para investir contra o alto da vila de Vitória. Se a menina sobressaltou-se ao pular do barril despedaçado diante das botas dos soldados, armados de arcabuzes e alabardas, estes irromperam em gargalhadas e gracejos obscenos, ante o que seus olhos viram: uma criança tonta, brotando assustada das tábuas de uma ancoreta justamente antes de um assalto militar, quando o momento exigia concentração e fúria, para o êxito dos combates.

Não era segredo para Maria Ortiz, nem para ninguém que os holandeses, com seus navios surtos na baía, estavam prestes a descer em terra e assaltar a vila, que organizava como podia a sua defesa. Naquela manhã, o próprio Juan Orty y Ortiz, ao sair de casa e fechar a taberna para participar como escrivão da câmara, de uma reunião de guerra convocada às pressas, recomendara cuidado à mulher e à filha. “Além do mais, são luteranos esses batavos”, advertira.

Carolina Darico ouviu o marido e olhou imediatamente para a filha, como se quisesse incutir no cérebro da menina, pela força do olhar, a advertência do pai. Depois foi a sua vez de fazer recomendações quando teve de ir à pedra do porto dos Padres comprar os peroás do almoço porque, apesar de haver barcos flamengos ancorados na baía, a vida continuava na vila de Nossa Senhora da Vitória: “Olhe, lá, pequena, não me botes os pés fora de casa que essa gente tem parte com o Capeta. Feche portas e janelas e cuides do feijão, que está a cozer ao fogo”.

Mas Maria Ortiz não deu ouvido ao pai e nem à mãe. Valeu-se da ausência de ambos, pegou um barrilete debaixo da escada da casa, que seu pai fazia de depósito da taverna, e, dentro dele rolou pela rampa do Pelourinho até aos pés dos holandeses.

As gargalhadas e deboches fizeram-na correr para casa, acabrunhada. Seus brios ofendidos exigiam uma reparação à altura. “Pois que seja à custa do feijão, que está quase a queimar”, decidiu Maria Ortiz dirigindo-se à janela com a panela fumegante segura pelo cabo. Embaixo, subia a tropa, com reflexos de sol nos capacetes.

Muitos holandeses viram a menina aparecer na sacadinha em forma de balcão sem adivinhar o que lhes reservava o feijão quase bispado. Enxergaram apenas a criança que, minutos antes, emergira a seus pés de um barril arrebentado, fedendo a vinho e com os cabelos desgrenhados. Mas já não era hora para pilhérias e risadas. O ataque à vila de Nossa Senhora da Vitória estava em marcha, não se podia perder tempo atoa.

Foi preciso que o feijão fervente caísse sobre suas cabeças para que os atingidos percebessem que deviam ter dado mais atenção a quem muita atenção lhes tinha dado, e que agora ria, acima deles, um riso dançarino que iluminava seus dentes miúdos e apertados, porque ri melhor quem ri menina, e riem muito mais as crianças humilhadas quando vão à forra, verdade que os batavos tinham esquecido.

Expulsos os invasores do Espírito Santo, seguiram-se as comemorações da vitória. No senado da câmara, uma sessão solene teve lugar. E em meio a discursos e aclamações dirigidas ao rei Felipe III e à Fé Católica, Maria Ortiz foi agraciada, por seu gesto heróico, com uma coroa de margaridas amarelas, posta sobre sua cabeça pelo escrivão Juan Orty y Ortiz.

A menina sorriu o risinho dançarino que lhe iluminava os dentes miúdos e apertados, recebeu na fronte o beijo paterno recendendo a vinho da Madeira, mas pensou que melhor do que as margaridas com que fora coroada seria ganhar de presente uma ancoreta mais resistente.

GIL DE ARAÚJO, DONATÁRIO MAL-SUCEDIDO

Francisco Gil de Araújo chegou ao Espírito Santo trazendo na canastra uma costaneira de capa de couro sergipano e folhas amarelas. O livro, destinado a apurar a contabilidade dos lucros que na capitania pretendia haver, já vinha aberto com o primeiro lançamento manuscrito em letras góticas, feito pelo próprio Gil de Araújo: Dinheiro pago a Antônio Luís da Câmara Coutinho para a aquisição da capitania do Espírito Santo, que teve e possuiu o seu antigo donatário Vasco Fernandes Coutinho. Na coluna dos dispêndios, seguia-se o montante desembolsado à vista, mediante letra de câmbio sacada na Bahia contra a praça de Lisboa: 40.000 cruzados.

Com quarenta mil cruzados Gil de Araúpo podia ter comprado uma boiada numerosa, um maranhão de bois, e ainda um curral de muitas léguas; com quarenta mil cruzados podia ter armado uma flotilha, de muitas catarinetas e patachos, para o comércio de cabotagem no Estado do Brasil; com quarenta mil cruzados teria adquirido todas as benfeitorias feitas pelos portugueses na capitania do Pará, o Grão-Pará inteiro, menos a terra, e ainda lhe sobrariam trinta mil cruzados para arrematar o Ceará, o Piauí e a Paraíba. No entanto, Gil de Araújo preferiu investir este dinheiro pesado, que tonitroava em sua bolsa, na compra da capitania do Espírito Santo, atraído pelas serras de esmeraldas que o sertanista Antônio Espinha disse ter avistado naquelas bandas. Pensava estar fazendo o melhor negócio da sua vida por entender que, quem tinha a terra, tinha o ouro que a terra tinha, deduzidos os quintos da Coroa.

Nascido na Bahia, Gil de Araújo descendia de Pedro Garcia, mercador de muitas riquezas, de quem herdou a fortuna e o gênio para os negócios lucrativos. Sua respeitabilidade junto às autoridades da Coroa fez-se sentir a partir das lutas contra os holandeses no Brasil, quando ainda era soldado, servindo na companhia de infantes do mestre de campo Dom Fernando de Lodena. Numa dessas batalhas, teve o rosto queimado por uma alcanzia. O chumaço de fogo o atingiu na face onde deixou uma nódoa sombria que se alastrava da ponta do queixo às pestanas do olho esquerdo. Pelo ferimento honroso e horroroso, um alvará real garantiu-lhe o pagamento vitalício de dois cruzados sobre o soldo mensal que recebesse.

Nos sessenta anos em que andava quando comprou a capitania do Espírito Santo, havia recebido quase mil cruzados do subsídio da alcanzia, já agora pago sobre o ganho de coronel de infantaria. Mas não foi com a economia desses caraminguás que custaram a Gil de Araújo a pele da cara, mas pouco lhe acrescentaram ao patrimônio, exceto a honra que lhe dava recebê-los pelo modo como fez por merecê-los, que ele conseguiu reunir os recursos para pagar o preço que pagou pela capitania do Espírito Santo. Foi com o dinheiro maciço dos inúmeros negócios que realizou na Bahia, tornando-se um potentado de altos capitais e de fazendas largas.

Seu nome e seus interesses estavam ligados desde a criação do gado nos campos de Sergipe e do São Francisco, até o comércio dos azeites portugueses e dos vinhos de Chipre e da Sicília, que importava e revendia em Salvador e no Recife. Influente junto aos homens mais influentes da Colônia, chegou a juiz da câmara da Bahia, e bancou, com adiantamentos da bolsa concessiva, os soldos das tropas e dos regimentos que estavam atrasados havia meses. A Coroa o cumulou de louvores, os jesuítas o cobriram de atenções. A ele o padre Simão de Vasconcelos dedicou a Vida do Venerável Padre Joseph de Anchieta, publicado em Lisboa, em 1672, estampando o brasão do homenageado depois da falsa folha de rosto.

Foi somente após receber o alvará real legitimando a compra da capitania do Espírito Santo, que Gil de Araújo mostrou o poder de sua voz sobre suas novas terras, embargando, ainda da Bahia, a expedição que o capitão-mor, Gonçalves de Oliveira, preparava para fazer à região das esmeraldas.

“A mim, e só a mim, cabe a honra desta empresa”, declarou alto e bom som ao emissário que levou ao capitão-mor do Espírito Santo a ordem de cancelamento da entrada.

O passo seguinte foi reverter a seu favor todas as vantagens que o visconde de Barbacena havia concedido a Gonçalves de Oliveira para a realização da expedição cancelada. Só de índios batedores era uma dezena, chegados de Cabo Frio ao Espírito Santo, fora os mamelucos contratados na Bahia, com experiência mateira.

Dois anos depois, desembarcou no Espírito Santo. Na porta da igreja de Nossa Senhora do Rosário, onde foi elevar agradecimentos aos céus pelo sucesso da chegada aos seus domínios, deu de cara com o astrolábio que havia pertencido ao espanhol Felipe Guilhem, ali pregado pelo donatário Vasco Fernandes Coutinho em memória das suas perdidas ambições na busca do eldorado, a que o aparelho de Guilhem jamais levou.

“O que faz aí esta geringonça”? — perguntou Gil de Araújo ao sacerdote que o acompanhava, usando da mesma expressão que usara Vasco Fernandes ao destituir Guilhem do seu medidor de latitudes.

“Senhor, esta velha roda de pesar o sol já faz parte da porta da igreja. Mas não se sabe quem a pôs aí. E por se ignorar tal cousa, há um natural receio em movê-la do lugar” — respondeu o padre.

“Pois se abata ao chão este trambolho, que me cheira a mau auspício”, ordenou o novo donatário.

Dito isto, seguiu para a vila de Nossa Senhora da Vitória, do outro lado do canal de mar, para tomar posse da capitania.

Oito meses depois, quando regressou de mãos vazias à frente da expedição que teve a honra de comandar pessoalmente ao sertão para descobrir as esmeraldas, Gil de Araújo abriu o livro das suas contabilidades e escreveu o primeiro dos muitos zeros que nele iria lançar na coluna dos lucros, relativos às quatorze entradas que fez no Espírito Santo.

Ao fim de quatro anos, a esses zeros das mal-sucedidas incurtidas selva adentro se somaram outros tantos zeros, se a zero se pode somar zero, resultantes dos gastos que teve e dos ganhos que não teve, gastos sobre gastos, uma cornucópia de desgostos, com a capitania que comprara: Zero de lucro do dinheiro que aplicou na reedificação da fortaleza de São João e na construção do forte São Francisco Xavier da barra de Vitória; zero de lucro com os socorros prestados à Casa da Misericórdia que parecia mais enfermiça da saúde financeira do que os enfermos da saúde do corpo que nela buscavam socorro; zero do resultado negativo com a criação da Companhia dos Homens Pardos, fundada para dar ocupação a quem nada fazia nas portas dos trapiches e nos cais dos desembarques; zero de vantagem com as obras realizadas em Vila Velha a fim de dar à vila uma feição de vila nova, e até o zero do nenhum proveito, exceto o político, que teve com o pagamento dos dízimos devidos à Coroa pelo dote da Infanta e paz da Holanda, que se acumulavam no tempo, e virou mais um buraco no orçamento das despesas que lhe deu o Espírito Santo.

“Esta terra não tem fundo!” — reconheceu, num brado de basta, depois examinar, página por página, linha por linha, valor por valor, os lançamentos em letra gótica de sua costaneira. “Vou-me daqui antes que me sobrem apenas as dragonas de coronel para tapar-me os ombros!”

E voltou para a Bahia.

Na véspera da viagem, visitou de novo a igreja de Nossa Senhora do Rosário. Ali ouviu missa celebrada pelo mesmo sacerdote que o recebera quatro anos atrás, a quem confessou os seus pecados e aos quais acresceu os desalentos com a terra onde pensara triplicar fortuna, mas da qual se ia limpo de muitíssimos cruzados, quase corrido para não acabar condenado ao manto de um simples lençol de sepultura.

Na saída da igreja, ajudando o sacerdote a fechar as portas e janelas, viu o resto carcomido de um dos cravos que sustentara o astrolábio que mandara pôr abaixo, na chegada ao Espírito Santo. Recordou então o mau presságio que tivera.

“Aquela geringonça!” — exclamou, como se maldissesse um corvo.

Ao seu lado, o padre viu a mancha sombria se acentuar em sua face, semelhante a uma máscara negra.

Trinta anos depois, o neto de Gil de Araújo vendeu a capitania do Espírito Santo para a Coroa portuguesa por quarenta mil cruzados, pagos em quatro prestações. Na costaneira de capa de couro sergipano e folhas cor do tempo, que o avô guardara como relíquia do único mau negócio que fez em toda a sua vida, o neto escreveu, em letra cursiva: “Fim do prejuízo”.

JOSE ANTÔNIO CALDAS, CAPITÃO DE FORTALEZAS

Há nesta vila de Nossa Senhora da Vitória muitos soldados que ainda teimam em falar a língua tupi, apesar da proibição real vedando este mau hábito. Tal teimosia torna difícil o aprimoramento militar dos artilheiros, que nem sempre entendem com clareza a linguagem dos quartéis e das fortalezas. Eu me esforcei o mais que pude, e dediquei-me com afinco ao que esteve ao meu alcance fazer para adestrá-los no uso das patronas e no manejo das peças de artilharia, na conservação dos paióis e no acerto da pontaria dos tiros. Mas a indigência de recursos disponíveis para a renovação da pólvora e dos artefatos para os disparos das bombardas, que obriga a uma grande economia de munições como se fosse uma economia de guerra verdadeira, torna impossível esperar destes pobres coitados, que andam a pés descalços, não têm fardas decentes e ainda têm medo de levar a bucha às câmaras dos canhões, que sejam bons artilheiros.

O capitão engenheiro das fortificações portuguesas na Bahia, José Antônio Caldas, lente em aulas régias de artilharia e tiro ao inimigo, escolhia com cuidado as palavras do seu relatório.

Havia chegado à vila de Nossa Senhora da Vitória há alguns meses e se empenhava em cumprir a contento a diligência de instrutor das tropas de artilharia e provedor das necessidades das fortalezas de sua majestade na capitania do Espírito Santo.

A vila de Vitória tinha sido transformada numa caserna de soldados que viviam a expectativa da guerra do ouro, uma guerra que nunca vinha, e eles nunca viram, porque dependia de um provável ataque de inimigos de Portugal ao sertão das minas gerais, a cento e vinte léguas de distância do litoral onde os soldados estavam. Para a pequena vila fortificada, a quantidade de companhias e troços militares nela acantonados era excessiva; para a Coroa portuguesa, insuficiente; para José Antônio Caldas, deficientíssima.

O capitão comprovara com os próprios olhos esta deficiência, porque comprovara a quase ruína das fortificações que viera fiscalizar e o descalabro do estado das tropas que nelas serviam. Em seu relatório ao ilustríssimo e excelentíssimo conde de Azambuja, que o mandou ao Espírito Santo, queria pintar um quadro completo dessa dura realidade, mas não se atrevia a relatar tudo o que vira. Sabia que o rei de Portugal — qualquer rei de Portugal, os reis todos de Portugal – tinham pelas praças de guerra que seus súditos espalharam pelo mundo, um sentimento de orgulho com foros de santidade. Ferir esta soberba com críticas desavisadas, ainda que descrevessem uma situação real, era quase um ato de lesa-majestade. A preocupação do capitão era a de ser correto em suas informações, sem chegar, porém, a ser patético.

No entanto, talvez fosse bem mais recomendável, até em benefício da salvação do orgulho lusitano, comprometido com a falência das praças de guerra na capitania do Espírito Santo, que José Antônio Caldas deixasse o escrúpulo de lado e rasgasse o verbo. Não precisava falar como um Vieira arrasador, mas que falasse como pedia a sua consciência.

Dos regimentos militares da vila de Vitória, falasse então que eram tantos e tão variados em suas espécies que até uma Companhia de Cavalaria Auxiliar havia, mas nenhum deles se achava em boa forma, e a tal Cavalaria, se quisesse ver honrado o nome, era preciso que seu comandante, por falta de cavalos, ordenasse que os cavalarianos montassem uns sobre os outros; dos soldados dessas companhias podia ter falado o capitão José Antônio Caldas que, de soldados, só tinham o soldo que lhes era pago, assim mesmo com atrasos constantes, o que lhes afetava a disciplina, o senso militar e o couro das botinas, sempre esburacadas; podia ter falado que, na vila de Vitória, tão reduzida em tamanho que caberia inteira no aro da coroa de sua alteza real, sobravam fortalezas, uma na boca da baía, que era a de São Francisco Xavier ou Piratininga; outra na garganta dela, que era a de São João, e uma terceira, a de Nossa Senhora do Monte do Carmo, mais para dentro, na goela. Navio inimigo que tentasse se aventurar por este esôfago podia achar que estivesse cruzando a fauce de um dragão, se o dragão cuspisse o fogo que devia cuspir em caso de guerra. Mas era este um dragão nada fogoso.

Se a tal grau de generalidades não quisesse chegar o capitão José Antônio Caldas, falasse então, mas corajosamente falasse, do estado de abandono em que encontrara as fortalezas da vila de Vitória e, se bem que deste estado tenha palidamente escrito o que achou por bem escrever, não disse o que pensara dizer, ou seja, que no forte de São João deparara com a torre da retaguarda cheia de morcegos, que se desentocavam em bando ao toque de recolher para voar sobre as águas da baía como se fossem soldados armados de lanças; não disse também o capitão que esbarrara, no forte de Piratininga, com uma torneira ocupada pelas aranhas caranguejeiras, ali concentradas em aranhol espesso, tão ásperas de pêlos e imundas de babas que entrar na torneira era como assaltar uma outra fortaleza; sequer não disse que encontrou, no forte de Nossa Senhora do Monte do Carmo, uma casamata tomada do cupim-açu, que agia com tal açodamento que o teto de madeira tapinhoã viera abaixo, tendo os assaltantes passado à entrada do forte, onde roeram os dormentes do passadio de acesso, abrindo um fosso que parecia parte integrante do sistema de defesa; não disse, finalmente, o capitão José Antônio Caldas que, dos roedores que atacaram o forte de São João, em frente ao pão de açúcar chamado Penedo, o mais inexorável foi o tempo, que comeu a inscrição que Dom Rodrigo da Costa, governador e capitão que fora do Estado do Brasil, mandara pôr na fachada em 1702, deixando apenas para ser lido o começo da frase consagrante: “Reinando o mui alto e mui poderoso Rei de Portugal D. Pedro 2°…”

Mas nada disso escreveu o capitão das fortalezas José Antônio Caldas. O relatório que fez foi outro, bem diferente, em linguagem comedida, cada palavra escolhida com o escrúpulo de um ourives para não ferir os elevados sentimentos lusitanos do conde de Sabugosa, nem ferir a gloriosa sensibilidade de sua majestade, o rei de Portugal. Não mentiu no que disse, o capitão; mas suavizou o que escreveu, como se pode ler do seu relato: “Há nesta vila de Nossa Senhora da Vitória muitos soldados que ainda teimam em falar a língua tupi…”

[Crônicas da insólita fortuna]

Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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