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Torre a ré

Mucurici, Museu do Contestado. Foto Gilson Soares, 2014.
Mucurici, Museu do Contestado. Foto Gilson Soares, 2014.

Eu costumo chamar de Torreão Noroeste, a torre de desenho irregular que a cartografia nos oferece para adornar esta região onde agora estou que depois de solavancos e trambolhões ficou legalmente mantida, ainda que estrepada, no mapa do Espírito Santo.

Desde que comecei a elaborar – com o descuido habitual – o giro , olhei com simpatia para a ideia de circular pedalando por aqui, seguindo, com a maior similaridade possível, a linha demarcatória que ziguezagueia, pelos sopés da Serra dos Aimorés, entre os territórios mineiro e capixaba.

Mas no pouco de pesquisa que fiz pra rascunhar o percurso que queria, não consegui completar a estrada por onde deveria pedalar para chegar a Água Doce do Norte, seguindo pelos beirais do Torreão .

Mesmo assim, não tinha muita dúvida de que daria pra ir juntando umas às outras aquelas estradinhas que, supunha, trafegam descalças e silenciosas pelos costados da Serra, até chegar a Água Doce. De onde eu transporia a cordilheira aimoreense, passando por uma ponta do município – e pela cidade – de Mantena, até alcançar novamente o território capixaba em Barra de São Francisco.

Os mapas que havia consultado antes do pedal não contribuíam para essa minha convicção.

Mas, teimoso, optei por acreditar que em chegando a este ponto onde agora estou, encontraria um jeito pra desmentir os cartógrafos que fizeram o desenho rodoviário deste pedaço – ancho e desolado – do nosso estado.

Por isso admiti, sem constrangimento, fazer um curto percurso dominical: de Montanha a Ponto Belo, passando por Mucurici.

E depois dispensar o restante do dia em Ponto Belo – aonde chegaria ainda pela manhã – a interlocuções informativas.

Dito e feito.

Pra isso, apeei bem cedinho – num quase voo matinal – do platô que comporta Montanha.

Indícios de chuva tilintavam sobre o capacete, enquanto eu pedalava veloz no encalço do desjejum que optei por fazer em Mucurici.

A cidade de Mucurici assenta-se sobre uma encosta.

Cruzá-la, vindo de Montanha, compreende escalar um aclive.

Quase ao meio desta pequena escalada, encontrei, numa borda da Praça de São Sebastião, uma padaria – solitária àquela primeira hora dominical – que se dispôs, com discreta simpatia, a me servir o café da manhã.

Enquanto procedia ao desjejum à porta da padaria, conjecturava acerca da formação daquele ajuntamento populacional que floresceu sobre uma das quebradas que se sucedem ao longo do vale do rio Itaúnas.

Fui induzido a supor que teria havido um desenlace radical entre os poderes político e eclesiástico que, ao que me parecia ali – entre um café com leite e um pão (com manteiga) na chapa – teriam se digladiado em algum momento da construção da cidade.

É que a minha capacidade de análise dedutiva não permitia outro entendimento para o fato de que a sede do poder executivo municipal – a prefeitura de Mucurici – e a sede do poder eclesiástico – a Matriz de Nossa Senhora de Fátima – ambas fechadas e silenciosas àquela hora, se posicionassem tão decididamente antagônicas: enquanto a prefeitura, com sua humildade arquitetônica está de frente pra praça, a igreja, a seu lado, apresenta-se de costas para aquele largo sebastianista.

Daqui, da porta da padaria, vejo o cocuruto da sua torre, erguida lá na frente, um pouco mais acima no aclive.

Fazer o quê? Interroguei pensativo.

São os entreveros – este até muito curioso – das histórias políticas de cada agrupamento social, concluí com pose de antropólogo urbano, enquanto finalizava meu desjejum e prosseguia, calado, a escalada.

E assim estaria pensando até hoje se não tivesse ficado sabendo depois, meio por acaso, que a Igreja de Nossa Senhora de Fátima, caso raro, tem a sua torre erguida na parte de trás da edificação.

Quer dizer, fui ludibriado.

E quase que entreguei para você, confiante leitor, uma desinformação.
A igreja, na verdade, está de frente pra praça.

Quem sabe, até, de braços dados com a prefeitura.

A torre é que foi erguida no costado da nave.

Não sei se uma torre postada a ré, como aquela, pode ser considerada uma heresia pelos estudiosos de arquitetura religiosa.

E, também, não tenho como informar qual foi a intenção do construtor de igrejas que projetou o, pra mim, subversivo prédio dessa Matriz que reverencia a santa portuguesa.

Só sei é que, se é isso que queria, ele conseguiu me enganar quase que definitivamente.

O que me autoriza a presumir que este equívoco de interpretação pode acontecer a qualquer transeunte desinformado, que por ali passe numa hora como aquela.

E me desautoriza, cabalmente, a usar o recurso da dedução, em lugar da pesquisa – oral ou documental – para dar ares de história a este reles relato do meu giro ciclístico pelo Torreão Noroeste.

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Gilson Soares é poeta e nasceu em Ecoporanga, no extremo noroeste do Estado do Espírito Santo, em 10 de fevereiro de 1955. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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