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Transportes – A lancha

Lanchas para Paul, Vila Velha. Acervo Edward Athaíde.
Lanchas para Paul, Vila Velha. Acervo Edward Athaíde.

De Paul à capital e vice-versa a Companhia Central Brasileira de Força Elétrica mantinha em funcionamento, em horários sincronizados com os dos bondes, uma lancha das duas que possuía para o transporte de passageiros na travessia da baía de Vitória. Eram bem cuidadas e seus assentos interiores — no meio da lancha e nas laterais — eram bancos de frisos estreitos de madeira, guardando entre si pequenos espaços, e muito limpos e envernizados.

Uma das lanchas, a Santa Cecília, tinha capacidade para oitenta passageiros e mais quatro tripulantes. Com o mesmo número de tripulantes, a Elizabeth transportava, na sua lotação máxima, cento e dez passageiros.

Essas lanchas contavam com quatro tripulantes devidamente uniformizados: dois marinheiros encarregados da limpeza e da amarração e desamarração na chegada e saída do cais de atracação, além de terem, por certo, outras tarefas secundárias; um motorista e um mestre-piloto.

Todos desempenhavam os seus respectivos misteres com o maior profissionalismo e trato urbano. Apesar de modestamente vestidos, eram impecáveis, apresentando-se com os uniformes limpos e em ordem. O motorista, quando em atividade, não largava um generoso chumaço de estopa com que, de instante em instante, alisava os canos de metal amarelo que compunham as tampas de proteção do motor, dando o mesmo trato às alavancas de marcha e aceleração.

O mestre-piloto, no seu posto e com uniforme de brim azul claro, paletó fechado até a gola, quepe azul e branco na parte de pano e pala preta, dava as ordens de partida e de parada da lancha ao motorista por meio de sinais que eram transmitidos da frente de comando, seguro no timão, olhos fixos à frente e ao mar. Esses sinais eram dados através de uma cordinha estendida até um sinete que ficava sobre a cabeça do motorista. Pelas puxadas o mestre-piloto determinava o que o motorista devia fazer. De acordo com o que tinham convencionado entre si, os batimentos do sinete, se curtos ou longos, repetidos quantas vezes fossem, indicavam a hora da partida, das marchas a serem passadas, se fortes ou de velocidade, se para frente ou de ré, até o desligamento do motor, com a lancha atracada. Nada se fazia sem a ordem do mestre, mesmo porque na baía de Vitória navegavam embarcações dos mais variados tipo, porte e calado, tais como navios — cargueiros, de passageiros, de guerra —, veleiros, rebocadores, lanchas, barcos pesqueiros, canoas, botes de transporte às dezenas, chatas, barcaças, caíques, barcos esportivos etc. Era interessante ver o trabalho sincronizado dessa tripulação, principalmente quando a baía estava congestionada com essas embarcações, exigindo perícia nas manobras.

A última lancha da noite

O usuário que estivesse em Vitória e precisasse pegar o último bonde da noite em Paul arriscava-se a não consegui-lo se perdesse a lancha em direção àquele ponto. Quando isso acontecia ele ficava em Vitória em casa de parentes ou amigos, ou em pensões e hotéis, ou ainda socorria-se dos bancos das praças, perambulava pelas ruas ou, se mais atirado e descompromissado, circulava pelas casas de tolerância da cidade até amanhecer o dia. Táxi, nem pensar, pois, além de caro, a maioria dos retardatários não era afeita a esse tipo de condução, a não ser por motivos muito sérios.

O noctívago, inconformado com a partida da lancha e sem poder alcançá-la, corria para o cais dos botes, junto ao cais das lanchas, e contratava uma daquelas embarcações a remo para a travessia, sujeitando-se a atrasos por uma série de dificuldades, como a maré que, na sua vazante ou enchente, apresentava maior ou menor correnteza, a disposição do catraieiro e a força de suas remadas. Já na metade do percurso da baía se sabia da possibilidade ou não de apanhar o último bonde da noite. Se ele fosse avistado parado e iluminado era hora de começar a gritar, fazendo-se isso a pleno pulmões: “Espera! Espera!” No silêncio da noite, a baía tomada pela escuridão, a presença do bote só era identificada pela lanterna a querosene acesa na popa da embarcação e pelo “chuá” das remadas vigorosas e compassadas do catraieiro. Esses gritos não só eram ouvidos pelo fiscal que autorizava ou não a partida do bonde, como também pelos passageiros sonolentos, a grande maioria acomodada em seus lugares. Dependendo do fiscal e do apelo desses passageiros, o noctívago saltava esbaforido, alcançando a condução com gestos e voz de agradecimento pela espera.

Desses retardatários muitos eram reincidentes e quando acontecia de seus apelos não serem correspondidos tinham de voltar para Vitória no mesmo bote, agora sem aquela correria e pagando a passagem em dobro. A outra alternativa seria saltar no cais de Paul e seguir a pé pelos trilhos do bonde até chegar ao destino. Os percalços a enfrentar seriam apenas a escuridão da noite e os pequenos acidentes, como pisar em buracos do percurso ou dar topadas nos dormentes de sustentação dos trilhos. Fora isso, nada de violência, pois ninguém agredia ninguém.

Às vezes, durante a caminhada, um encontro era bem-vindo. As pessoas eram identificadas apenas pela voz, pois a escuridão era grande. Devidamente apresentados, identificando-se ou não, a caminhada prosseguia já se sabendo para onde cada um iria. Se o encontro acontecia em sentido contrário, trocavam-se cumprimentos.

O trajeto de Paul a Vila Velha, até a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário, contava apenas seis quilômetros. Fazendo ou não todo o percurso, o sacrifício da andança tornava-se compensador, uma vez que era melhor que esperar pelo primeiro bonde até o amanhecer do dia, sem ter dormido, e arranjar uma boa desculpa, nem sempre convincente, para o atraso.

[In SETÚBAL, José Anchieta, Ecos de Vila Velha, Vila Velha-ES: PMVV, 2001. Reprodução parcial autorizada pelo autor.]

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José Anchieta de Setúbal nasceu em Vila Velha-ES e se formou em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo. Ex-prefeito e ex-vereador por Vila Velha, foi procurador substituto do Estado, sub-chefe da Casa Civil, coordenador da Defensoria Pública e secretário da Justiça. Foi membro do Conselho de Sentenças da Comarca da Capital e sócio-fundador do Rotary Club de Vila Velha.

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