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Universidade e utopia — Discurso proferido pelo Secretário de Educação e Cultura, Prof. Rafael Grisi

Se o atual governo do Espírito Santo, ao término dos quatro anos de seu mandato, nada mais houvesse logrado fazer além da fundação da Universidade que hoje solenemente inaugura — já teria feito bastante para suscitar a admiração e o respeito da gente capixaba e de toda a Nação brasileira. Se, além das grandes coisas que fez — estradas, pontes, represas, usinas, foros, hospitais, escolas, trabalhos de saneamento, de racionalização da atividade agrícola, de incentivo às indústrias, de penetração demográfica e jurisdicional no hinterland, de amparo e proteção à infância, de valorização econômica, enfim, da terra e do homem — não houvesse também empreendido a fundação da Universidade, sua imensa obra estaria incompleta e todos os empreendimentos em que ela se desdobra, obliterada a consciência dos seus desígnios e da unidade de concepção e de plano, correriam o risco de ter, em vez da posteridade fecunda a que foram destinados, a sobrevivência ornamental e vã das pirâmides egípcias, como testemunhos que, incrustados na paisagem mas sem vínculos com a cultura, servissem apenas para documentar uma época de riqueza e de esplêndida capacidade de ação, a que houvessem faltado, porém, a visão dos fins, o senso da harmonia e da funcionalidade, e, sobretudo, um sistema de valores que os justificassem.

Nesta data, pois, e neste ato, cuja singeleza não elide o caráter augusto de que se reveste, pode dizer-se que atinge ao seu objetivo culminante o programa de um dos mais vigorosos períodos governamentais do Estado. Congratulemo-nos, por isso, capixabas ou não, brasileiros todos, com a certeza de que, por mais rica e generosa que seja a história deste recanto do país, por mais prenhe de evocações de alevantado teor cívico e moral as datas de culto de seu calendário, a da instalação da Universidade será, doravante, pelos anos vindouros e por séculos, uma das de maior realce e significação.

Esta Universidade surge, na moldura de vossa crescente grandeza histórico-cultural, como a mais alta conquista de seu povo e seu governo, em momento magnífico de compreensão e convergência dos espíritos. E, num futuro que não será remoto, quando tiverem cessado os últimos ecos das paixões que tisnam e deformam, à visão contemporânea, os fatos da vida social e, com eles, as tábuas de valores que os sustêm e dirigem, o historiador da cultura espírito-santense — ao volver os olhos para estes dias atormentados e, particularmente, para este primeiro quadriênio do dealbar da segunda metade do século, ao qual se associa, indelevelmente o nome desse insigne capixaba que é Jones dos Santos Neves — dirá, por certo, com inteira justiça e sem nenhuma ênfase, que estes foram quatro anos decisivos na vida e nos destinos da antiga capitania de Vasco Fernandes Coutinho. Então saber-se-á, com a objetividade histórica necessariamente tardia, que, num instante de dúvidas e vacilações, quando esta parcela da nação brasileira, ainda presa afetivamente às estruturas tradicionais de seus padrões de vida consuetudinários e ao ritmo despretensioso e quase provinciano de seu desenvolvimento econômico e espiritual, se encontrou, hesitante e perplexa, em face dos imperativos de renovação de seus quadros culturais para reajustamento e integração nas conjunturas decorrentes das súbitas transformações sociais advindas do avanço das ciências e das técnicas — houve um homem que compreendeu profundamente, com visão clara de sociólogo e arrojo confiante de estadista, os emergentes fatos e caracteres da vida capixaba em processo de mudança; saber-se-á que esse homem, jungido ele próprio à tradição e ao passado de sua terra pela formação recebida na mocidade, mas sensível aos estímulos do vivo contexto situacional envolvente, soube, da colisão da tese e da antítese, operar a síntese de um plano de administração, lançando seu Estado definitivamente na vereda e na aventura da conquista de sua predestinada grandeza e preparando-o, através de um bem travado currículo de empreendimentos, para o advento, sem crises nem conflitos, da nova ordem econômica e social iminente; saber-se-á que por esse motivo — pela intuição que o guiava no plano das idéias, pela firmeza revelada no plano das atitudes, pela coragem posta à prova no plano da ação — foi ele visto, por mais de um contemporâneo coestaduano ou forasteiro, como um inovador audaz e megalomaníaco, um “cavalheiro de triste figura” a sonhar grandezas que ultrapassavam, por ventura, a sua própria capacidade de realização, a precipitar seu povo em compromissos financeiros superiores às potencialidades econômicas, numa palavra, como um visionário possuído de “mentalidade utópica”. E saber-se-á que nessa censura ia o melhor elogio que se lhe poderia fazer.

Arguir ou classificar alguém como possuído de “mentalidade utópica” é proclamar-lhe a incontestável superioridade. Platão, na República — a maior de suas obras, aquela precisamente em que mais livres e plenos transbordam os produtos de seu “modo de pensar”, por excelência, “utópico” — relembra uma velha lenda fenícia, segundo a qual a Terra, mãe comum dos homens, os fez desiguais, juntando à composição de todos ferro e bronze, de muitos, prata e de alguns raros, ouro. Os primeiros, homens de ferro e bronze, têm a vocação da riqueza e brilham nos negócios, nas atividades da lavoura, do comércio, das indústrias, sendo virtuosos se mantiverem a temperança em suas ações; os segundos, homens de prata, se engrandecem em feitos guerreiros por amor da fama e da glória e sua virtude é a coragem; os terceiros, homens de ouro, são prudentes e justos e a sabedoria é seu apanágio. A estes compete o governo da “República”. Porque têm a visão clara das realidades e dos valores da vida, da vida melhor e da sociedade ideal, que embrionam e latejam, sob forma desiderativa, dentro da vida e da sociedade atuais; com os olhos voltados para o mundo dos valores que preside ao mundo dos fatos, somente eles têm o direito de governar, direito que lhes confere a “mentalidade utópica” que os caracteriza.

Bem hajam, pois, se quisermos dar crédito à velha lenda fenícia, os homens de “mentalidade utópica” — porque são eles “os que têm fome e sede de justiça”, que não se podem saciar; porque são eles os que anunciam sempre a “boa nova ” que ainda não chegou mas está iminente; porque falam de um “reino” de felicidade generalizada, a que todos terão acesso segundo suas obras; porque iluminam os caminhos e preparam o advento da vida cada vez mais digna do homem.

A Universidade, onde quer que se encontre — e ainda que esta proposição possa parecer estranha — é a filha dileta da Utopia. Quando pela primeira vez na História, uma Universidade se constituiu, foi uma Utopia que lhe deu origem e, em seguida, alento. Posteriormente, cada vez que novos centros de altos estudos universitários se organizaram, foram sempre novas Utopias que lhes deram força, elã e razão de ser. E a História atesta que, na generalidade dos casos de “decadência” de instituições universitárias, o que se verificou foi sempre o “envelhecimento” das Utopias que lhes deram origem e endereço. Não nos seria possível, por isso mesmo, compreender a essência e a missão das Universidades sem compreender a natureza e o destino das próprias Utopias.

A primeira grande Universidade de que se têm notícias certas é aquele centro de altos estudos filosóficos, fundado pelo “utópico” Platão, em Atenas, no “Jardim de Academus”, pelos albores do quarto século anterior à era cristã. Em seu pórtico fora inscrito por determinação do Filósofo: “Não entre quem não souber Geometria.” Mas sua inspiração vinha de mais longe, daquela advertência gnômica inscrita no templo do oráculo de Delfos e que Sócrates, o mestre de Platão, adotara como lema de toda Filosofia: Gnothi seauton, “Conhece-te a ti mesmo!”

Era uma Universidade em que professava um só homem de cultura universal e de “mentalidade utópica”. Em que circunstâncias, por que causas e para que fins, se fundara essa Universidade? Será necessário, para bem o entendermos, recapitular, embora sucintamente, os sucessos, as vicissitudes e as transformações da cidade de Atenas no decurso daquele extraordinário período que foi cognominado “século de Péricles”.

A capital da Ática é, na Grécia do período homérico, uma cidade mais ou menos obscura. Enquanto Esparta, fiel à tradição e à legislação de Licurgo, impõe sua hegemonia pela força e bravura de sua soldadesca disciplinada, Atenas fica na penumbra e na quase marginalidade da vida grega. Afora as reivindicações democratizantes que, em virtude de uma incipiente quebra de sua estabilidade social, se imiscuem nas reformas constitucionais de Sólon e de Clístenes, a cidade permanece “antiga”, relativamente homogênea e introvertida, sustendo-se pelas forças da tradição e da mitologia. É somente depois da guerra contra os Persas, para a qual contribuíra com a esquadra, em seguida transformada em marinha mercante, que a “antiga” cidade, ao incentivo da navegação e do comércio, vê abolidas as barreiras de sua comunicação com o mundo exterior, especialmente o mundo dos “bárbaros”, tornando-se centro cosmopolita, em que se acotovelam homens de todas as procedências e culturas, com seus interesses diversos, com seus costumes estranhos, suas idéias heréticas, seus ritos religiosos diferentes, suas variadas interpretações do universo e da vida. Nessa conjuntura, sob a contaminação de elementos “bárbaros”, tem lugar um efervescente processo de “interculturação”, em que a anterior convergência espiritual se desintegra, em que o espírito vacila entre diversas maneiras de conceber e valorizar o mundo e o homem, em que a dúvida se insinua na mente e a fecunda, em que, afinal, pelo conflito de duas mentalidades que se estruturam — a nativa e a adventícia — se constituem e se definem dois sistemas filosóficos, duas ideologias — uma tradicional, nativista e aristocratizante, outra revolucionária, laica e democratizante — opostas entre si e em encarniçada porfia de recíproco desmascaramento. Se os chamados sofistas do “‘primeiro período” e, entre eles, Protágoras, apenas tomam consciência desse estado de coisas; se os do “segundo período”, e entre eles Górgias, tiram conclusões agnósticas que abalam os fundamentos e as esperanças de construção da ciência e de sua utilização, os do “terceiro período” e, entre eles Cálicles, vão até as últimas conseqüências de um imoralismo alvar que ameaça estalar os travamentos do próprio arcabouço da vida social. Desordem nas idéias, desordem na sociedade.

É num momento assim, na moldura do desmoronamento dos valores antigos, quando o passado já não vige sobre o presente — “os mortos já não governam os vivos” — e o dia que entardece não traz indicações que permitam prever a aurora do amanhã, que o espírito se recolhe e medita, não tanto já em busca da explicação das “coisas” — que estas, depois de lhe parecerem tão sólidas e permanentes, se mostraram tão várias e transitórias — mas sobretudo em busca do conhecimento de si mesmo, do conhecimento do homem, de sua natureza e de seu destino, isto é, do endereço que deve imprimir à vida, numa palavra, do que lhe compete fazer em face da instabilidade de tudo, para que, deixando de ser o joguete das coisas, possa tornar-se se não senhor, ao menos isento dos movimentos delas. Esse é o momento socrático da Filosofia, do “conhece-te a ti mesmo”, em que o homem, desesperado e cético em relação ao conhecimento do Kosmos — que parece desfazer-se em caos — se procura e se reencontra a si próprio como um microcosmo indestrutível, como uma “inteligência”, que é capaz de introduzir-se no magma das coisas e reconstruir a ordem, restaurando a “idade de ouro” que se abisma. Momento luminoso de fé, que sustém a esperança e se transmuda em caridade — momento que se caracteriza pelo esforço de recuperação e de ensino dos valores que naufragam, de recrutamento pela persuasão para a tarefa de restauração dos quadros da vida e de sua preparação para uma nova “forma” de felicidade, possível em dias futuros. Momento generoso e fecundo, de um novo “modo de pensar”, de feitio, por excelência utópico”, que consiste em trabalhar no sentido não, propriamente, da busca de uma posição intermediária, conciliadora ou eclética — entre as “ideologias” em oposição, como tese e antítese — mas no da fusão, pela dialética da reconstrução, dos dados valiosos de ambas numa síntese ideal, de natureza superior, capaz de prever e prover o lugar do homem na moldura de seu próprio renascimento para uma nova ordem e para um novo conceito, mais justo porque mais equitativo, de felicidade generalizada, coletiva e individual.

Foi um momento assim o que viu, na cidade de Atenas, o bom Sócrates, perambulando pelas ruas e praças, ensinando a uns, corrigindo a outros, persuadindo a todos, pregando enfim as ideias e os valores que tinha por eternos e imanentes ao espírito e em cuja construção filosófica abotoa, sob a forma de uma nova Ética, de uma nova Política, de uma nova Pedagogia, a flor ideal de uma Utopia, a Utopia que desabrochará, com Platão, em toda a plenitude de seu viço, num livro — A República — e numa Universidade — a “Academia”.

É uma frustração, portanto, o que se encontra na raiz de toda Utopia: a frustração de um status quo social nimbado em uma ideologia e que, em dado momento, sentindo embora faltarem as condições de sua sobrevivência, se obstina em perpetuar-se e, malferido de morte pela introjeção dos fatores de mudança e pelos golpes da Antiideologia, acaba sucumbindo para ressurgir, como a Fênix mitológica, das próprias cinzas, sob a forma de um novo “ideal”, antevisão e expectativa de uma Terra da Promissão ou de um novo “status” social possível, que se traduz por um vago anseio popular de retorno ou reconquista de um “paraíso perdido” ou de uma “idade de ouro” pretérita, como que o fantasma ou “espírito” do futuro, errático, a aspirar à encarnação nos fatos porvindouros.

Quando essa frustração no plano da ordem social e esse vago anseio coletivo encontram, na personalidade de um indivíduo ou num grupo de indivíduos superiormente inteligentes, o drama de idêntica frustração no plano da existência individual, ela é, por estes, transfundida num livro, e, mais cedo ou mais tarde, numa Universidade, isto é, num núcleo de inteligências coalescentes, ligadas entre si por um compromisso solene, o de bem pensar e bem fazer, de especular indormidamente para a conquista do conhecimento, de propagar o conhecimento pelo ensino, para a dilatação de seu império, que propiciará o advento de uma época de harmonia dos espíritos e de felicidade comum.

Na história das Universidades, a primeira grande frustração social é a da cidade de Atenas, sentida, de modo autêntico, no plano psicológico, individual, por Sócrates e seu discípulo Platão. E a Utopia nascente de Sócrates vai brilhar, em todo o seu esplendor, na Universidade fundada por Platão, aquela Academia que surge, por um dinamismo que, na terminologia freudiana, seria considerado de fuga mas que é de recolhimento, de meditação, de catarse e experimentação, mais do que de isolamento em “torre de marfim”, e que realiza, em escala reduzida, a própria Utopia da “República” sob o governo do Rei Filósofo.

Como esse exemplo histórico ilustra e atesta, é nos momentos de graves crises e de convulsões sociais, quando bruxuleiam as luzes da Ideologia que guiava uma época e uma nova era chamada “época de luzes” se entrevê e se proclama, que o pensamento humano, dilacerado pela dúvida, pela vacilação entre duas ordens de coisas, pela incerteza ante o caminho que se bifurca à sua frente, é nesses momentos que se apresenta mais vigorosa a especulação filosófica, mais alta a reflexão pedagógica e, em ambas, fecunda, túrgida, vivificante, a “mentalidade utópica”. Tais momentos têm sido assinalados na História, pelo nascimento de novas Universidades nos lugares em que tiveram seu epicentro. E, entre estas, convém lembrar e incluir a própria Igreja fundada por Cristo, verdadeira Universidade no sentido mais preciso e mais amplo e, de certa maneira, modelo das que vieram depois. Ela se esboça também timidamente pelas ruas e caminhos palmilhados pelo Messias, sob a forma de um núcleo de discípulos em torno de um mestre universal, em cujo espírito repercute a tragédia de uma grande frustração do gênero humano, angustiado e aflito entre Ideologias em luta e em cuja obra se realiza uma nova “tomada de consciência” dos valores eternos da vida e o anúncio de uma “Boa Nova”, de uma nova ordem possível — a “Utopia” nascente do Cristianismo que era uma construção ideal, em breve encarnada num livro — o “Evangelho”, e numa Universidade — a Igreja, primariamente uma associação de catequistas e catecúmenos, a multiplicar-se mais tarde em novas agências de culto e de ensino — templos e escolas — para a dilatação do império da Verdade revelada.

Esta é também, não obstante a menor posteridade de sua repercussão social, a história dos núcleos de estudos superiores de Alexandria e, mais tarde, a daquela incerta e deambulante Universidade palaciana do Sacro Império Romano Germânico de Carlos Magno, em que pontificava, em diálogos apotegmáticos e cintilantes, o monge inglês Alcuíno, que o Imperador fizera vir à corte e que propugna a “Utopia” de, pela reunião das ciências “humanas e divinas”, construir na França “uma nova Atenas, superior à antiga, porque instruída pela fé cristã”.

São ainda Utopias que vão dar origem e razão de ser às novas Universidades que se organizam na Idade Média e nos tempos modernos. Para citar apenas a de maior pujança, no que diz respeito à Idade Média: é uma Utopia que se encontra no pensamento do monge dominicano Tomás de Aquino: a Utopia da conciliação entre a Razão e a Fé. Erroneamente se tem considerado muita vez a Idade Média um bloco maciço, como um período homogêneo e tedioso, de conformismo e aceitação passiva de uma Ideologia. Vista de perto e por dentro, ela é movimento, dúvida, pesquisa, polêmica. Sob certos aspectos, não seria exagerado dizer que nunca, antes ou depois, o homem pensou tanto, com mais empenho e pertinácia do que nesse período, e com o espírito desarmado para o conhecimento positivo. Na confusão de doutrinas e idéias em conflito, duas direções principais se podiam distinguir: a tese da Fé representada pela Ideologia da Revelação e, contraposta a ela, a antítese da Razão, representada pela Antiideologia de procedência arábica e judaica, nutrida em textos aristotélicos de recente descoberta. A Utopia de Tomás de Aquino é a da Síntese aristotélico-cristã, da Fé confirmada pela Razão. Dela sairá um Livro — a Summa Theologiae — e um sistema filosófico — a Philosophia Perennis — que dará origem e razão de ser a uma Universidade, a saber, a Scholastica.
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Transcorrido o tempo, e já no limiar da Idade Moderna, serão ainda escritos e livros de pura “mentalidade utópica”, os que, no século XVII, alcançarão a máxima posteridade, tais a Instauratio Magna de Francis Bacon e o Discours de la Méthode de Descartes, propugnando nova Utopia, a Utopia da Ciência; o Tractatus, de Spinoza, propugnando uma Utopia política; e, para lembrar também um livro de Utopia puramente pedagógica, a Didactica Magna de João Amos Komensky; no século XVIII, nova Utopia, a da Igualdade, que fermenta na obra dos Enciclopedistas e explode, com toda a força, num livro que pretende conter o Evangelho da Nova Educação: o Emílio de Jean-Jacques Rousseau.

Cada um desses movimentos foi, a seu modo e em sua época, uma Renascença, gerou um Livro, pregou uma nova Filosofia como única verdadeira e deu origem a uma Universidade ou, ao menos, a uma nova orientação dos estudos universitários.

Se, vez por outra, aqui ou ali, um desses estabelecimentos de pesquisa e ensino se divorciou da linha da “mentalidade utópica”, que lhe deu sentido e vigor, e se colocou a serviço de Ideologias, como ocorreu, por exemplo, com a Universidade de Coimbra, no século XVIII, ou com a de Paris ao tempo de Napoleão I, esses fatos não foram mais do que acidentes e hiatos em sua existência genuína, momentos difíceis e obscuros, durante os quais pouco ou nada produziram, mergulhando no descrédito e na rotina, de que entretanto saíram pela retomada dos caminhos de sua vocação utópica.

Em nossos dias, particularmente nas zonas do mundo de atmosfera mais límpida, característica do “clima social” da democracia, a Universidade continua fiel à sua vocação, e conta com algo mais do que a simples liberdade de organização, com o incentivo e o apoio do poder constituído, sensível aos reclamos e imperativos da hora presente e que tende a conceder-lhe, para sua maior possibilidade de contribuição ao bem-estar humano, crescente autonomia administrativa e financeira assim como de investigação e de ensino.

Nestes moldes se vazou a Universidade do Espírito Santo. Ela se apresenta, no plano político-administrativo, como a obra máxima de um governo que se mostrou sensível às vicissitudes da sociedade e da cultura capixaba em momento de crise de disritmia entre a herança do passado e os novos anseios populares de conteúdo utópico; no plano pedagógico, é a cúpula de uma reforma de base de suas estruturas de educação e será a alma mater da nova armadura educacional do Estado.

Sua missão é a de pensar e de fazer pensar. Essa é a missão de toda Universidade. Gerada no caldo da “mentalidade utópica”, emaranhada embora na trama social vigente, ela aspira a superar esse condicionamento, para fazer “ciência pura” — não no mesquinho sentido de passa-tempo ocioso sem relação com as necessidades e aspirações do homem, mas no sentido de conhecimento objetivo, isento de contaminações ideológicas — para, por esse meio, entrever, construir e anunciar uma outra trama possível de sociedade, a sociedade ideal; sua missão é a de pensar e fazer pensar com clareza: pensar o mundo como ele é e como é possível, pensar a vida tal como ela é e tal como poderá vir a ser, melhor; pensar o lugar que deve caber aos fatos num mundo que é também mundo de valores e o lugar que deve caber aos valores no mundo dos fatos; numa palavra estabelecer o culto, pela pesquisa e pelo ensino, de todos os bens — Saúde, Bem-estar, Paz de consciência e Paz das Nações, Justiça, Liberdade, Verdade, Virtude, Beleza — pelo cultivo da Filosofia, das Ciências, das Letras, das Artes, das Técnicas, do Trabalho. Assim sejam a vocação e o futuro da Universidade do Espírito Santo.

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