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Vaga-lumes

Eles não vieram da mata e nem da descida ao longo da nascente na parte oeste da propriedade. Foi inútil a espera pela chegada dos vaga-lumes por esses caminhos. Da outra vez, a maciça revoada dessas brasas verdes foi tão deslumbrante que não via a hora de repetir a experiência. Por isso, ficou firme na porta da cozinha e, para não desviar a atenção, trouxe um pedaço de pão e um copo de café com leite porque já estava na hora do lanche. Ia fazer o lanche ali mesmo. Pelos seus cálculos eles deviam aparecer lá pelas seis da tarde. Continuou esperando. Vésper já brilhava no meio das folhagens da árvore de cedro. Porém, de repente, mais que tudo, pelas suas costas, com o possível propósito de tornar sua espera pelos vaga-lumes um episódio menor (o que logo depois foi confirmado), a surpresa ficou por conta da luz forte de uma lua descomunal que achatava as palmeiras do lado leste. Prendeu a respiração porque, muito embora tenha confiado na resistência de seu coração carcamano, curtido nas searas e sebes das montanhas primevas, a pancada foi forte demais. Um soco tropical em cima de um coração que resistiu aos avanços dos sicários de César na Gália Cisalpina mas que agora, no trópico, enfrentava essa lua maior que a roda de um carro de boi e que, dizia com todos os raios, no trópico não tem muita conversa porque a noite cai mesmo como uma cortina rápida e você nem pode respirar direito. O problema da surpresa é seu. “Vim” — parecia dizer a lua — “como sempre vim pelo caminho das palmeiras, cortando a trilha do Bertoldo Kiel, seu vizinho, e depois subi no talhão de café da ladeira oposta dando a você esse susto que não me importa nem um pouco, seu carcamano bestalhão. Além do mais, isso é apenas uma parte. Vá lá no seu quarto para ver a situação. Como estou brilhando sobre o lençol de linho. Na sala, pelas frestas do telhado, veja como sou a lua gorda espalhando obesidades pelos quatro cantos. Aguenta. Mas também não precisa ficar se preocupando muito porque não sou nenhum Cássio. Confie em mim. Não tenho a magreza das luas frias cobrindo a mansão de Manderley. Veja que meu tamanho, o que você viu, era só jogo de cena para impressionar. Acalme-se porque não estou aqui para humilhar ninguém. Monte aqui no cavalinho de São Jorge. Aproveite porque o santo foi até ali no bar da cratera do mar dos Sonhos para tomar uma cerveja. Dá tempo de você visitar outras crateras para descansar desse murro que levou. Esqueça esses vaga-lumes ridículos que estão fazendo todo esse charme para reaparecer. Eles querem apenas se valorizar e é provável que nem apareçam.”

Tentou não se deixar envolver por essa inesperada intervenção lunar e pensou até em subir para a saleta onde estavam seus óculos escuros a fim de não tomar conhecimento dessa escandalosa aparição que brilhava no céu como uma provocação evidente. Mas, e se no interior da casa houvesse mesmo aquela explosão branca como constava do demagógico discurso dessa chamada “Rainha da Noite” pelos que, nas madrugadas, ficam bebendo pelos botecos e bares e soluçam sambas-canções de mau gosto? Melhor não se arriscar. Lua é lua e não adianta pensar que a lua da madrugada é outra.

Deu sete horas, oito da noite e os vaga-lumes não apareceram. Olhou para o céu e viu a lua bem alta andando perto daquelas árvores que protegem a nascente ao pé do morro. Uma lua fininha e indiferente que nem mesmo lhe dava confiança de um diálogo qualquer. Até pensou em dizer qualquer coisa sobre a cerveja quente do bar da lua mas admitiu que já não era hora para brincadeira, mesmo porque a lua acabou se escondendo atrás de uma nuvem e ele achou que ir dormir seria a melhor alternativa para aquela noite frustrada.

Não conseguiu pegar logo no sono. Olhou pela janela e viu que o tempo fechara. Não havia mais lua nenhuma no céu. Nuvens escuras raspavam o morro do cafezal e uma súbita friagem obrigou-o a ir até o guarda-roupa apanhar um cobertor. Já agasalhado, continuou a olhar pela janela e viu que o temporal se aproximava com estardalhaço, através das faíscas elétricas que iluminavam os talhões do laranjal.

Estava ainda olhando os prelúdios da tempestade quando a pequena lanterna verde veio lutando contra o vento e se instalou no peitoril da janela. O vaga-lume permaneceu ali por instantes e depois foi arrastado pela ventania.

A chuva caiu forte. Cessaram os trovões e agora só havia o som da água batendo no telhado.

[In Novas crônicas de Roberto Mazzini, da “Coleção Gráfica Espírito Santo de Crônicas”, em 2003.]

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Ivan Anacleto Lorenzoni Borgo é cronista e nasceu em Castelo, ES, em 21 de fevereiro de 1929. Formado em Direito pela Faculdade de Direito do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Economia pelo Conselho Nacional de Economia em convênio com o MEC. Foi professor da Ufes de 1961 a 1989 e diretor regional do Senai/ES de 1969 a 1990. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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