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Velório

Estou, nesta madrugada quente, no velório de meu avô. É a primeira vez que o vejo. Tomo um susto: ele emagrecido pela doença, eu sou, sem tirar nem pôr, um clone de meu avô. Minha avó, que sempre me amou, nota a semelhança, e lança sobre mim odiento olhar.

Na crônica familiar, ouvindo um pouco aqui, outro ali, um pedacinho contado por vovó, a maioria pelos vizinhos, reconstituí a história do casamento e separação de meus avós.

Vovô era treze anos mais velho que vovó. Ele muito pobre, ela quase rica, pois tinha um cargo elevado na Prefeitura, creio que de tesoureira. Vovô começou a trabalhar lá como contínuo, substituindo o “Seu” Antunes, pai dele. Vovó apadrinhou o rapaz na repartição até torná-lo fiscal de tributos. Casaram-se e tiveram uma só filha, minha mãe. Vovô caiu na farra, ficou tuberculoso e foi aposentado por invalidez. Foi curado mas, quando tinha de fazer o rotineiro exame de escarro, levava o material colhido de um amigo, ainda doente.

Um dia vovó pegou vovô em flagrante, tentando “fazer mal” a uma garota que ela criava, e não fez por menos, expulsou-o de casa:

— Jamais volte a esta casa, devasso…

Vovô nem aí. Foi para um sítio que herdara do pai, entre Inhanguetá e Caieiras, para os lados de Santo Antônio, onde vivia, mal e porcamente, dos proventos de aposentado. Com o tempo vovô juntou-se com a Jacy, uma prima longe, com quem teve outra filha. Agora, descubro, moça bem bonitinha.

Na pequena sala mortuária da Associação dos Funcionários estamos as duas famílias, em surda guerra, frente a frente. Vovó, mamãe, eu dum lado. Jacy e a filha do outro.

Para estabelecer um equilíbrio, resolvo dar uma volta. Digo que vou satisfazer uma necessidade e saio.

Perco-me no emaranhado das ruelas da Cidade Alta. Não penso em meu avô. Penso na necessidade de arranjar um emprego, quem sabe se com a morte do avô os graúdos da Prefeitura não atenderão a antigas e insistentes solicitações da vovó?

Entro no beco da Igreja de São Gonçalo, deixando a velha Assembleia e o Palácio do Governo para trás. Desço pela Escola da Magistratura e atravesso o Viaduto. Desejo pular lá em baixo, na rua Caramuru, dá um frio no estômago, mas me contenho. Entro na rua Dom Fernando. Lá longe vejo um notívago que me parece o poeta Valdo Mota. Corto volta por uma ladeirinha íngreme.

Próximo ao Centro de Saúde uma prostituta solitária tenta me aliciar:

— Vamos fazer neném, benzinho?…

Estou com raiva de tudo e de todos. Afasto-me virgem e timorato, as pernas tremendo. No começo da escadaria Carlos Messina tomo coragem, volto-me e grito:

— Puta…

Apercebida a tratar com valentões mais valentes do que eu, apenas um imberbe rapaz, retruca, no mesmo diapasão, de imediato:

— É a mãe!…

Como mamãe nunca se casou, e eu sou o que se chama, no jargão oficial, “filho natural”, mentalmente concordo.

A causa mortis do vovô no atestado foi colapso cardíaco. Mas, à boca pequena, todos sabem que ele morreu de Aids, doença nova e arrasadora. A “viúva” Jacy contara que, nos últimos tempos, ele se envolvera com gente da pior espécie, inclusive os aidéticos que, à noite, fugiam da enfermaria da Santa Casa e iam farrear. Drogados, prostitutas, aidéticos, “só podia dar no que deu”, concluiu a moça.

Alguém comentou:

— Foi uma forma de suicídio.

Lá longe, na entrada da barra, o sol anuncia um dia quentíssimo de verão. Passo pela Escola Normal, pelos fundos do Palácio e volto, vagarosamente, para o velório do vovô.

[Reprodução autorizada pelo autor.]

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Renato Pacheco foi importante pesquisador da história e folclore capixabas, além de escritor, com vários livros publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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