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Veneno para matar uma rata

Divido este pequeno apartamento sala-e-quarto com Maria, uma índia guarani, auxiliar de escritório lá na Secretaria do Bem-Estar Social. Foi uma sorte encontrar, no Bar Vox Populi, esta moça alta, bronzeada, cabelos escorridos, magra, séria, calada, com quem me ajusto tão bem. Pouco importa que o porteiro diga que somos amantes. Não somos e pronto. Olho para minha barriga, ainda um pouco flácida, mas voltando ao natural, o umbigo um pouco para fora. Em cima da pia, as cerâmicas do neto de Vitalino, miúdas formas representando um bumba-meu-boi completo. Já fui a Catirina, numa teatralização lá em Conceição da Barra…

— Porra, outra vez a privada entupida e o porteiro só enrolando a gente…

Vim de São Mateus com o Rubem Dourado, meu amor intermitente nos últimos vinte anos, desde que eu tinha oito anos e era colega da filha dele, na escola. Quando o pai dele morreu, largou a família, e passou dois anos no Japão, “gastando os capitais”. O Incra foi criado e o Fontenelle arranjou-lhe um emprego: ele, um dos maiores latifundiários do Espírito Santo com empreguinho de sociólogo em Brasília. Agora, me disse, coordena as cooperativas de todo o Brasil, mas passa a maior parte do tempo em suas fazendas. O de que ele gosta mesmo é de apicultura.

Sentei-me na cama dele, no armazém cheio de badulaques, ao lado da casa-grande, e parecia que nunca nos havíamos separado. Mamãe e a mulher dele tinham raiva de nosso amor meio doido. E Rubem, cheio das forças misteriosas que o sexo dá, comeu todas as menininhas da minha idade, naquele tempo, em São Mateus. Falo-lhe de Nize, que acabei de visitar, morando num desses conjuntos proletários da Cohab. Pergunta-me:

— Continua bonitinha?

Eu sei que ela era uma de suas preferidas, mas como responder, agora que minha amiga estava com cinco filhos e uma vida de cão? Vi-a apenas cinco minutos naquela pequena sorveteria que a sustenta e sufoca. Quando morou em São Paulo tinha do bom e do melhor que o contrabando de café com o Paraguai dava ao marido. Aos sábados, agora que o Jucá está preso, ela quer vir ao centro fazer umas comprinhas, mas não vem porque não tem dinheiro. Está filiada a um desses novos cultos orientais, pois deseja sair do atoleiro onde sua boa alma chafurda, e Rubem Dourado só tem coragem de perguntar se ela continua bonitinha…

— Amanhã vou para Vitória. Antes tenho de visitar vovô que está à morte…

— Quer ir comigo? Onde pego você?

— Lá em casa mesmo… Sabe onde é, não?

— E sua mãe?

— Mamãe agora é crente e adotou a doutrina do perdão!

Durante muitos anos fomos inquilinos do Dourado, e quando o velho morreu eles venderam a casa sem nos consultar. Mamãe tinha razão de não gostar dos Dourado.

Chegam dois sobrinhos do meu amigo, ambos da minha idade, conheci-os e brinquei com eles em criança. Vieram ajudar na tirada do mel.

Levanto-me da grande e capenga cama de casal, deslocada em meio a bancadas de trabalho, fumigadores e ancinhos, e me despeço dos três homens.

Saio do banheiro e encontro Maria que chegou. Houve um incêndio na Jerônimo Monteiro, seguido de grande engarrafamento de veículos. Ela está chegando justo na hora de sair para Vila Velha, onde dá aulas, à noite. Rapidinho preparo um sanduíche, um chá de jasmim, acendo incenso, desligo a pequena televisão que falava para as baratas, no chão, ainda não ganhou uma mesinha, e um detetive trapalhão deixa minha sala. Tenho horror à televisão, mas como trabalho com grupos teatrais, às vezes observo o jeito que os artistas atuam.

Na altura de Linhares tomo coragem e lhe conto:

— Tive um aborto…

Cinqüenta quilômetros adiante, ele nem surpreso, nem curioso pára para comprar cigarros. Eu continuo:

— Foi o Pepeu do Banco do Estado. Muito bom rapaz, mas nenhuma paixão que consome. Quando engravidei, um pouco de propósito, para ver se solucionava o caso, ele: Se vire, garota. Por que não usou a pílula?

Em João Neiva, Rubem calado, não agüento e choro. Rubem, com quem tantas vezes já fui para a cama, olha-me apático, e volta sua atenção para uma curva perigosa em declive, além dos trilhos da Estrada de Ferro.

O aborto foi péssimo. Tomei uma garrafada, comprada no Mercado, e mais uns remédios para dormir. Veio um sono gostoso como deve ser a morte, acordei numa explosão de sangue. Se não fosse Maria, que me levou para o Hospital das Clínicas, a infecção me teria levado.

— Eis-me aqui às suas ordens meu senhor…

— Pronta para outra…

— Vire pra lá essa língua…

Rubem Dourado poderia voltar a ser meu amante? Ele quer? Eu quero? E seus filhos de minha idade? E sua mulher tão arrumadinha, professora na Universidade? E a chatice do “pego você aí e vamos fazer um programinha?”. Já ardemos, sem violência, em todos os motéis da periferia de Vitória, com suas suítes eróticas, cines privés e camas giratórias. Merda de merda, vinte e nove anos, um empreguinho público CLT de merda, vou ser dispensada se não me abrir com o próximo secretário da Cultura, vontade doida de ser artista de teatro. Enfim, falta-me coragem de pular deste terceiro andar, talvez nem morra, só fique aleijada para o resto da vida. Quem sabe um bom veneno para matar ratos resolva o problema? De repente, descubro que estou presa, como um gênio na garrafa, sem saída e sem poderes mágicos. E penso:

— Um dia desses eu me mato, eu me mato de verdade, e fim de papo…

[Publicado, em primeira mão, na revista Letra, nº 3, 1983. Reprodução autorizada pelo autor.]

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Renato Pacheco foi importante pesquisador da história e folclore capixabas, além de escritor, com vários livros publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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