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Vida Escolar

Grupo Escolar Vasco Coutinho. Foto Paes. Anos 1930.
Grupo Escolar Vasco Coutinho. Foto Paes. Anos 1930.

Para falar da Vila Velha de algumas décadas atrás, devemos começar com um rápido esboço da nossa educação escolar primária.

Ela se deu no Grupo Escolar Vasco Coutinho, poucos anos depois de sua inauguração, quando só existia o bloco fronteiriço situado à rua Luciano das Neves.

Entramos na primeira sala de aula no dia 4 de fevereiro de l935, com sete anos de idade, no primeiro ano A. Deste ano A passava-se para o B e só depois alcançava-se o segundo ano primário. O primeiro dia de aula ficou marcado porque nossa professora, chamada Lídia, escreveu essa data no quadro negro, com letras bem talhadas e definidas, para que a copiássemos, fosse lá do jeito que fosse. Compreendemos mais tarde que essa tarefa inaugural seria um teste de aptidão coletiva dado pela excelente educadora para avaliação dos alunos que a ela caberia alfabetizar. Foi o nosso primeiro esforço, inaudito, experimentado como estudante. Da nossa parte a tarefa foi cumprida, só que em letras escarrapachadas, com que ocupamos uma página inteira do caderno. Isso ficou indelével na nossa cabeça — 4 de fevereiro de l935.

No que se refere às acomodações, apesar de sabermos que algumas escolas não ofereciam nenhum conforto, as acomodações do aluno, em geral, eram de qualidade superior às de hoje. As carteiras eram feitas de madeira maciça — o compensado ainda não existia —, polida e bem envernizada.

No Grupo Escolar Vasco Coutinho cada carteira acomodava confortavelmente dois alunos. Essas carteiras eram compostas de duas partes distintas: do assento, na frente, e do tampo, que servia de mesa e depósito para cadernos e livros dos alunos que se sentavam na carteira de trás, e que era localizado na parte posterior do móvel. Assim sucessivamente formavam-se as filas de carteiras, com o detalhe de que a primeira carteira da fila tinha somente o banco onde alguém poderia sentar-se sem, no entanto, dispor de mesa para escrever, enquanto a última carteira da fila tinha apoio para a escrita e depósito para guardar livros e cadernos, mas faltava-lhe o banco.

Na parte superior do tampo, de fora a fora, localizavam-se duas valetas dispostas uma sobre a outra, destinadas a acomodar lápis e caneta a bico-de-pena, ambos de uso obrigatório. Ainda na mesma superfície, em cada uma das metades, centralizado e no alto, havia um buraco vazado e redondo para receber um tinteiro com tampa, fazendo face à superfície desse móvel. Esse tinteiro era constantemente abastecido pelo servente do educandário, para que não faltasse tinta para a escrita.

Posteriormente as carteiras de lugares duplos foram substituídas pelas individuais mantendo a mesma disposição, exceto pelo assento, que era constituído de um banquinho com encosto de madeira, sustentado por um pé de ferro cilíndrico, esparramado na sua base para a necessária sustentação e equilíbrio. As carteiras foram se transformando, sendo suprimidos vários de seus detalhes até chegarem às de hoje, individuais e individuais geminadas, simultaneamente com assento e suporte para anotações.

As canetas-tinteiros ainda não deviam existir, e assim que criadas seu uso foi restrito. O mesmo aconteceu com a esferográfica. Logo no seu lançamento não era permitido usá-las para assinar documentos, caso em que esses documentos eram considerados inválidos. Com o tempo essas assinaturas passaram a ser aceitas, o que restringiu o uso da caneta-tinteiro a ocasiões solenes em que eram assinados atos notórios. Hoje essas canetas são vistas ainda em alguns consultórios médicos, gabinetes de executivos e escritórios dados a essa prática.

Naqueles tempos, não existindo nem uma nem outra, utilizava-se a famosa pena de metal. Mais ainda a de aço, com uma ranhura da metade para baixo do bojo do seu corpo, por onde escorria a tinta, molhada no tinteiro. O tinteiro devia receber quantidade suficiente de tinta e o usuário, ao mergulhar a pena para recolhê-la, não podia deixar que a caneta alcançasse a base do seu recipiente. Essa pena molhada, com a quantidade adequada de tinta em sua concha, permitia escrever duas ou três linhas antes de se retornar ao tinteiro. De qualquer forma, até concluir a escrita pretendida, o reabastecimento dessa pena era repetido com bastante freqüência.

A escrita à tinta não era uma tarefa fácil, pois, além de manejar a caneta, o usuário tinha também que calcar a pena sobre o papel. Isso requeria um aprendizado prolongado: na escrita a pena devia ser aplicada sobre o papel com leveza e controle para que a ranhura existente na sua extremidade não se abrisse além do necessário, caso contrário a tinta escorreria, acumulando em excesso na escrita, dando origem a borrões.

Para evitar esses borrões usava-se um papel chamado mata-borrão, que absorvia a tinta excedente, favorecendo também a secagem de todo o trabalho. Isso era importante, pois qualquer pequeno deslize de uma das mãos sobre o texto ou outro qualquer acidente poderia acontecer e manchá-lo. Por essa razão era o mata-borrão considerado material escolar e obrigatoriamente o aluno deveria portá-lo, usando-o por ocasião dos treinos com a caneta a bico-de-pena e, indispensavelmente, nas provas escritas. Ao término das provas, não raro, encontravam-se estudantes dos anos primários menos adiantados com as suas mãos e uniformes manchados de tinta, manchas que chegavam a alcançar os seus rostos ao coçá-los.

As penas de metal descritas antes, que em boa parte do século XX e anteriores desempenharam um papel preponderante no aperfeiçoamento e melhor agilização da escrita, tiveram, além de tantas destinações, uma outra muito importante e curiosa, ao nosso ver, como instrumento de ajuda ao combate da varíola. A mesma pena de aço adquirida em caixinhas de papelão ou vendidas no varejo era usada pelo pessoal da Saúde Pública como material cirúrgico na aplicação da vacina contra a insidiosa moléstia.

Dessas penas molhadas no tinteiro, há uma inesquecível: a de ouro empunhada pela Princesa Isabel ao promulgar a lei de Abolição da Escravatura no Brasil, no dia 13 de Maio de l888. Este ato memorável, por ter sido assinado com uma pena de ouro, ganhou a denominação de Lei Áurea. A Princesa Isabel era filha do Imperador D. Pedro II e da Imperatriz Teresa Cristina e foi herdeira presuntiva do trono. Contam que teria sido ignorada não fosse o destino lhe colocar nas mãos, por três vezes, as diretrizes do poder administrativo do Estado na ausência do seu pai, governando com os Gabinetes Rio Branco, de 1871 a 1872; Caxias, de 1876 a 1877; Cotegipe e João Alfredo, de 1877 a 1888. Nessas ocasiões a Princesa desempenhou relevante papel na alta magistratura imperial. Inúmeros acontecimentos se efetivaram durante o exercício dessa tríplice regência em favor das necessidades da estrutura do organismo governamental e da coletividade humana. Devem-se ao gênio empreendedor da grande princesa, dentre outros, os decretos de naturalização de estrangeiros no país, o primeiro recenseamento do Império, o desenvolvimento da ferrovia, a solução das intermináveis questões de limites territoriais e o restabelecimento das relações comerciais com os governos vizinhos. A lei de 1861, que libertava os nascituros de escravos, ficou conhecida como Lei do Ventre Livre etc. Foram muitas penadas importantes apostas em documentos pela Princesa Isabel, mas a que lhe valeu maior consagração na história do Brasil foi a Lei Áurea e por esse ato de abnegação e justiça recebeu o título de “A Redentora”, outorgando-lhe o papa Leão XII a rara honraria da Rosa de Ouro.

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Antes dos grupos escolares funcionavam as escolas e escolas isoladas mistas. Estas últimas, com apenas uma professora e alunos de ambos os sexos, simultaneamente lecionavam para alunos do primeiro ao quarto ano primário. Mesmo depois da implantação dos grupos escolares essas escolas continuariam atuando no interior do Estado em distritos e vilas, bem como na periferia urbana das cidades. Por sua natureza eclética e também por abrigar em sua maioria alunos cujos pais tinham baixo poder aquisitivo, não se exigia o uso de uniformes. Os alunos compareciam com suas roupas modestas, calçando sapatos ou tamancos ou mesmo descalços.

O Grupo Escolar Vasco Coutinho foi o primeiro inaugurado no Município. Depois dele vieram outros, como o Ofélia Escobar, em Aribiri, o Graciano Neves, em Paul, entre outros. Alunos de grupos escolares ou escolas terminavam o primário no quarto ano. O quinto chamava-se curso de admissão ao ginásio e era um mini-vestibular que representava um grande obstáculo para os estudantes locais que desejavam prosseguir nos estudos, já que Vila Velha não oferecia esse curso. Quem dispunha de recursos ia para Vitória depois de concluir o curso primário.

Os pais que tinham melhores condições financeiras matriculavam os filhos num dos cursos de admissão, público ou particular, existentes na capital. O curso público existente na época era o do Ginásio Espírito Santo, enquanto os Ginásios Americano e São Vicente de Paula o ofereciam como particulares. Mesmo quem estava matriculado no curso público arcava com grandes despesas, pois, além do material necessário — como livros didáticos e uniformes mais caros —, tinha também as passagens do bonde e da barca ou do bote para a travessia da baía. Por causa disso muitos alunos estudiosos e preparados não conseguiam prosseguir nos estudos.

Além das dificuldades de natureza econômica existiam outras com as quais os estudantes do curso de admissão ao ginásio se defrontavam: o bom desempenho em matérias como matemática, português, geografia, história, educação moral e cívica, canto e educação física não era passaporte suficiente para o ingresso no primeiro ano ginasial. Não. Eles teriam que se submeter no final do ano à prova escrita e oral de todas as matérias, e as de matemática e português eram eliminatórias. Quem não alcançasse em qualquer das duas a nota mínima cinqüenta ficava reprovado. As de geografia e história do Brasil tinham menor peso e vinham em seguida para quem havia passado no primeiro teste e não impediam que se chegasse às provas orais. A somatória das matérias de per si e com os respectivos pesos deveria atingir a média geral mínima de cinqüenta pontos. Metade dos estudantes ou mais não alcançava essa média e, uma vez reprovados, muitos abandonavam os estudos. Os mais persistentes repetiam o curso para alcançar o ginásio no ano seguinte.

Ao sacrifício da locomoção de bonde, de barca ou de bote de Vila Velha à Capital juntava-se o uso de uniforme, que era de caráter obrigatório. Adaptar-se a ele era um verdadeiro suplício. Mesmo sob medida, feito por alfaiates ou costureiras — nem sempre afeitos ao corte —, o estudante sentia-se como numa camisa de força, quando arrochado, ou metido numa roupa de palhaço, quando folgado, o que pelo menos lhe deixava os movimentos livres. No entanto havia também aqueles que conseguiam um uniforme bem talhado feito por profissionais competentes. De qualquer modo, o uniforme escolar representava um incômodo.

O uniforme do Ginásio do Espírito Santo, assim como o dos outros colégios, não fugia muito ao padrão: compreendia a calça comprida e a túnica cáqui, camisa azul, gravata preta, quepe e botinas conhecidas como riúnas. Sobre a túnica usava-se um cinturão preto e largo. Em tempos mais antigos, além do cinturão usava-se ainda um talabar, peça de couro que, saindo na parte da frente do referido cinturão, prendia-se ao mesmo depois de passar sobre o ombro direito até alcançá-lo, do outro lado, pelas costas. Ainda que com todos esses inconvenientes, o estudante jamais poderia andar pelo estabelecimento de ensino ou pela rua com suas peças fora do lugar. Quando visto por uma autoridade escolar com o uniforme em desalinho era obrigado a recompor-se sob ameaça de suspensão em caso de reincidência.

[In SETÚBAL, José Anchieta, Ecos de Vila Velha, Vila Velha-ES: PMVV, 2001. Reprodução parcial autorizada pelo autor.]

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José Anchieta de Setúbal nasceu em Vila Velha-ES e se formou em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo. Ex-prefeito e ex-vereador por Vila Velha, foi procurador substituto do Estado, sub-chefe da Casa Civil, coordenador da Defensoria Pública e secretário da Justiça. Foi membro do Conselho de Sentenças da Comarca da Capital e sócio-fundador do Rotary Club de Vila Velha.

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