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XI. O mundo espiritual dos colonos

Embora a compleição física e o estado de saúde dos colonos se possam considerar satisfatórios, nota-se acentuado recuo, no domínio intelectual, e nível cultural lamentavelmente baixo. Não existe um movimento de ascensão, originária dos próprios colonos, faltando qualquer iniciativa para melhorar a situação e para remediar a carência cultural. Entretanto, deve-se admitir que certas qualidades de caráter caracterizam os colonos como um grupo étnico de origem alemã. A ascendência teuta manifesta-se, inequivocamente na geração nova. Distinguem-nos das outras populações capixabas não só as qualidades negativas, inerentes aos colonos de estirpe pomerana, como a obstinação e a tardeza mental mas também, as positivas, como a constância, a perseverança, a altivez sadia, o senso das coisas práticas de sua vida simples. A luta árdua para manter e fazer prosperarem as colônias, contando apenas com as suas próprias forças, apurou o senso familiar e criou, apesar das rusgas inevitáveis, um sentimento de união, que, adequadamente orientado, transformar-se-á em espírito de comunidade.

Nossa estada no Espírito Santo nos proporcionou apenas, impressões gerais, sendo breve demais para permitir uma penetração realmente profunda no mundo ideal e moral dos colonos. O isolamento em que vivem e, talvez, várias experiências desagradáveis tornaram os colonos desconfiados e fechados diante de estranhos. Graças ao trabalho preparatório, esclarecedor, dos pastores que nos acompanhavam, encontramos mais confiança, do que seria, ordinariamente, de esperar, e pudemos, através de conversações, formular uma idéia das opiniões, costumes e conhecimentos reinantes. Fortaleceu-se a nossa impressão de que muitos dos fatores, ainda hoje, decisivos, são hereditários: a tardeza que limita o livre desenvolvimento da vida e da vontade; a descendência de camadas sociais pobres, que viviam sob condições opressivas. É um povo mais bondoso do que amável, não se destacando pela bravura, nem pela alegria, mas sério e melancólico; é um povo singelamente fiel e reservado, que odeia a mentira e a lisonja”, escreveu Thomas Kantzow sobre os pomeranos e, hoje, essa caracterização se adequaria à maioria dos colonos alemães.

É compreensível que a esfera espiritual dos colonos pouco ultrapasse as coisas que o cercam mais de perto. A conversação gira, principalmente, em torno de interesses materiais: tamanho do cafezal, número de cabeças de gado, preços do café e colheita, qualidade do solo, natureza do trabalho, provisões para alimentação e sustento da família. A alimentação substanciosa e o tratamento acolhedor são temas preferidos — “é do que precisamos e para isto trabalhamos” foi a resposta significativa a uma observação a respeito. Ou, então, fala-se dos vizinhos e dos acontecimentos da “colônia”.

Os religiosos estão aptos a julgar melhor que ninguém os obstáculos criados pelo capricho e pela rigidez dos camponeses, principalmente quando importa por em prática melhoramentos e inovações na comunidade. Colonos se afastam, às vezes, do serviço religioso, em virtude de diferenças de opinião, como sucedeu numa comunidade, onde o pastor, tendo em mira melhor aparência estética, pôs em fila as estacas mal alinhadas, em que se amarravam os cavalos. Os fiéis só apareceram depois que as estacas voltaram aos seus antigos lugares.

A falta de espírito de empresa e o sentimento de independência tornam o colono pomerano desconfiado de quaisquer inovações, embaraçando sua capacidade de decisão: mas, ele não se inclina a externar sua desaprovação, ou a defender, com determinação seu ponto de vista. Quase não encontramos, nos sítios visitados, colonos originários de Hunsrueck (“Hundshuckler”), os quais possuem maior capacidade de adaptação e maior agilidade intelectual, abrem-se mais facilmente, tendo, por isso, se unido mais à população brasileira. Os pomeranos, na maioria, pouco familiarizados com a língua brasileira, não gostam de sair de suas colônias, sentem-se inseguros com os brasileiros, especialmente com as autoridades e a justiça, evitam o contato com estranhos e só raramente vão às cidades. Permanecem no âmbito de suas colônias, comunidades, e, assim, se explica porque a igreja, o único fator de união, se tornou o centro da vida cultural, constituindo os acontecimentos eclesiásticos, o serviço divino e as festas, as únicas oportunidades para se congregarem.

A reunião no adro, antes do oficio divino, e as conversas de família que então se processam; os batizados que se realizam na presença de toda a comunidade, a bênção festiva da parturiente, na primeira vez que vai à igreja; a confirmação e os costumes nupciais, “o mensageiro do casamento” enfeitado de lenços e fitas, e a grinalda, símbolo da virgindade, adorno exclusivo da noiva com honra; as cerimônias fúnebres, nos cemitérios pequenos e solitários, tudo isto denota a tendência para conservar a formação e os costumes religiosos, e, por conseguinte, as tradições do povo.

Nas festas, principalmente nos casamentos, há grande animação: os jovens dançam até a madrugada, e quando o álcool já fez seus efeitos, sucedem desinteligências mais sérias que degeneram em pancadaria. Os rapazes nem sempre são inofensivos. Não é raro faltarem no casamento a grinalda, o cinto e o ramalhete, pois o primeiro filho já está em caminho. Se se descobre a “desonra”, após o casamento, tem de ser o pago o “dinheiro da grinalda”, exigido pela comunidade.

Característico fundamental dos pomeranos é certo senso de ordem, que, apesar das formas primitivas de vida, manifesta-se nas moradias. O interior da casa, segundo os padrões vigentes na Alemanha, é mais do que singelo, os móveis são o produto de uma carpintaria grosseira, e vêem-se raros sinais de habilidade de artífice nos utensílios domésticos ou nos objetos de uso. Vimos, num sítio, panelas bem acabadas feitas pelos próprios colonos; os baús, que se encontram em quase todas as casas, são, às vezes, adornados; escasseiam trabalhos mais cuidadosos de marcenaria em armários, mesas ou bancos. Não há muita coisa que revele senso artístico ou mesmo o gosto singelo de camponeses. Em regra, utilizam, para ornamentar a casa, apenas quadros sem gosto ou folhinhas, um relógio de parede e algumas fotografias. Dá-se mais valor a belos arreios, às vezes, artisticamente adornados. A vida desenrola-se muito mais no campo e nas plantações, do que no interior da casa. Entretanto, as construções simples dos colonos são limpas e agradáveis, e revelam o cuidado com que são tratadas. É de admirar porque o pomerano pouco se apega ao seu sítio; depois de uma longa permanência, quando o solo não tem mais fertilidade satisfatória, abandona facilmente a velha moradia, se obtém, algures, nova área em condições mais favoráveis. É difícil de dizer, se neste caso se manifesta nele algo da tradição do jornaleiro, ou se, no meio estranho, não se desenvolve um verdadeiro amor ao torrão. Um radicamento ao sítio onde vive, que distingue os nossos camponeses, falta aos colonos do Espírito Santo.

O substrato cultural dos alemães é constituído pelos costumes, característicos da etnia, e estreitamente ligados à igreja. Até agora, o colono manteve-se, pertinazmente, apegado à sua língua. Ainda hoje fala o dialeto pomerano, e mesmo o alto alemão parece causar-lhe às vezes dificuldades. Não se verificam exteriorizações ou pendores culturais independentes, embora exista nos colonos certa capacidade de apreensão cultural. Demonstram-no algumas obras interessantes, realizadas por colonos melhor dotados: trabalhos em madeira para as igrejas ou capelas, feitura de instrumentos simples (dizem que Wilhelm Seibel fez um plano, e uma rabeca), fabricação de aparelhos movidos a água ou moinhos (vimos até uma bicicleta feita de madeira). Incluiríamos, ainda, no domínio dessas realizações culturais, os coros de trombone, formados por jovens, dirigidos pelos pastores, e a alegria de cantar, especialmente na juventude, embora haja carência de verdadeira compreensão.

Apesar de todos os erros, de toda a estreiteza mental, e do espírito simplório dos colonos, permaneceu, com os usos e costumes, um patrimônio cultural alemão, cuja natureza ficou intacta em meio a um mundo estranho.

[GIEMSA, Gustav, NAUCK, Ernst G. Uma viagem de estudos ao Espírito Santo: pesquisa demo-biológica, realizada, com o fim de contribuir para o estudo do problema da aclimação, numa população de origem alemã, estabelecida no Brasil Oriental. Trabalho publicado pela Universidade de Hanseática, Anais Geográficos (continuação dos Anais do Instituto Colonial de Hamburgo, vol. 48), série D, Medicina e Veterinária, vol. IV, Hamburgo, Friederichsen, De Gruyter & Co., 1939, traduzido para o português por Reginaldo Sant’Ana e publicado no Boletim Geográfico do Conselho Nacional de Geografia, n. 88, 89 e 90, 1950].

Gustav Giemsa nasceu na Alemanha a 20 de novembro de 1867 e faleceu a 10 de junho de 1948. Foi químico e bacteriologista e alcançou notoriedade pela criação uma solução de corante conhecida como “Giemsa”, empregada para o diagnóstico histopatológico da malária e outros parasitas, tais como Plasmodium, Trypanosoma e Chlamydia. Estudou Farmácia e mineralogia na Universidade de Leipzig, e Química e Bacteriologia na Universidade de Berlim. Entre 1895 e 1898 Giemsa atuou como farmacêutico na África Oriental Alemã. Em 1900 tornou-se chefe do Departamento de Química Institut für Tropenmedizin em Hamburgo.
Ernst G. Nauck nasceu em São Petersburgo, Alemanha, em 1867, e faleceu em Benidorm, Espanha, em 1967. Especialista em doenças tropicais. 

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