Ana Joaquina, a mais rabequista[ 1 ] velha daquele tempo, dizia com ênfase: Era um céu aberto! O teatro estava bem arrumado! Os representantes deram pancas! Estava bem es clareado! Aquela cena do intécro e prafaméco[ * ] fazia a gente chorar! Aqui começava ela a chorar e a soluçar medonhamente, correndo- lhe em jorros o monco pelas fossas nasais! Era uma megera!
Aquele cabelo arrepiado debaixo de um enorme chapéu preto, com largas abas, com grandes plumas pretas, dava-lhe ares de uma sibila.
O velho João Rodrigues e a Sra. Bibiana não dormiam, em recontar o enredo da peça durante uma noite inteira! Esfaimados chegavam à casa, ali junto da ponte do Reguinho, que dá passagem para a rua da Várzea, e atiravam-se sobre os gordos caranguejos, untando-os num molho de pimenta e limão e quebrando-lhes os dedos com tal estrondo que não me deixava dormir! Que têmpera de velhos!
Anunciava-se o espetáculo por máscaras[ 2 ] com tambores e um zabumba,[ 3 ] os quais paravam nas esquinas das ruas, bradando um pregoeiro:
Quem quiser se divertir por hora e meia, à praça do Colégio[ 4 ] vá, pois temos ceia.
Rataplã… plã… plã… rataplã… falavam os tambores. Bum… bum, dizia o zabumba, marcando o compasso!
O que pândega!
Corramos as cortinas desse quadro e descrevamos as suntuosas festividades que no templo se consagravam ao Senhor dos exércitos, que tem em suas mãos os corações dos reis e dos povos.
Antes desses festejos populares, os presidentes da província convidavam os empregados públicos e toda a oficialidade, além do clero, para assistirem a um Te Deum em ação de graças na capela nacional.[ 5 ] Reuniam-se todos em uma das salas do nosso vasto palácio e. à hora aprazada, acompanhado de um imenso séquito, feitas as continências por uma guarda de honra, se dirigiam todos à igreja, onde se executava a cerimônia religiosa. Por essa ocasião subia à tribuna sagrada o mais acreditado orador e pronunciava um discurso, rememorando o assunto que fazia o objeto da festividade. Um Clímaco, um Fraga, eram sempre honrados com essa escolha predileta.
Que rasgos de eloquência! Que assomos de entusiasmo! Que facúndia[ 6 ] de palavra!
Ante o palácio da presidência revezavam-se em bonitas evoluções dois batalhões da guarda nacional com suas bandas de música e, depois dos vivas de estilo, davam as descargas das ordenanças.
Tínhamos então dado um passo para o progresso…
Havia o cortejo à efígieefígie[ 7 ] do monarca com aquelas cerimônias da corte do império.
Dava-se à noite um lunch e iluminavam-se os edifícios públicos e particulares. Terminava por um baile e uma diversão, conforme a oportunidade do tempo, como aconteceu quando aqui esteve madame Barbière, de jogo de florete.
As fortalezas de Piratininga[ 8 ] e São João salvavam ao romper da aurora desses dias festivos com o estrondo de seus canhões e, à 1 hora, tempo do cortejo, repetiam-se as mesmas salvas reais, de 21 tiros.
Acarretou essa prática um grande prejuízo. Homens inscientes, sem a instrução de serventes de peças,[ 9 ] dirigidos por imprudentes chefes, foram vítimas dessas salvas. Armado de antigos soquetes, ao carregar uma delas, frouxa a dedeira,[ 10 ] [um desses homens] foi impelido pela explosão da carga, que o lançou das baterias ao mar, ficando sem uma perna e braço!… E viva a pátria!
Era extasiador ver um Malta, um Sarmento, coronéis da milícia cívica, comandando em fogosos ginetes, bem ajaezados, os seus batalhões: estendendo os flancos, abrindo e correndo colunas, contramarchando à direita e à esquerda, formando e duplicando quadrados, ao som marcial de músicas preparadas pelo Baltazar, de saudosa memória!
Para evitar as impressões desagradáveis que possam produzir as ideias acerca do nosso censurável atraso, devemos lembrar ao leitor que foi tudo isso resultado de ciúmes e arrufos por motivos políticos, como ainda hoje sucede entre nós.
Nos tempos de Delencourt, Gomes Filho, Ildefonso e o Teixeira, gorducho, instalou-se uma sociedade dramática que funcionou até 1844.
Aí deram-se espetáculos aparatosos, levando-se à cena dramas de quadros e mutações[ 11 ] luxuosas. A cenografia foi preparada no Rio de Janeiro, e bem assim todos os aprestos[ 12 ] e vestidos a caráter. A influência de Gomes Filho e de Susano com amigos da corte facilmente obteve tudo isso.
As récitas eram todas sujeitas às assinaturas dos sócios, para evitar que ombreasse certa gente com famílias e pessoas distintas. Hoje baralha-se tudo! Ao lado de uma senhora de tratos finos encontram-se as “horizontais“[ 13 ] et alias ejusdem furfuris[ 14 ] a disputar as graças e os cumprimentos de meia dúzia de licenciosos, que, sem vislumbres de educação, não respeitam conveniências sociais, quanto mais a honestidade pública, entidade que desconhecem!
Segundo a constituição — está belo!
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NOTAS
Pe. Francisco Antunes de Siqueira nasceu em 1832, em Vitória, ES, e faleceu na mesma cidade, em 1897. Autor de: A Província do Espírito Santo (Poemeto), Esboço Histórico dos Costumes do Povo Espírito-santense, Memórias do passado: A Vitória através de meio século. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)