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Artigo 7

Antes dessa cena, havia recitativos e uma dança dos calastrazes.[ 1 ] Um grupo de doze meninos, dirigidos por dois guias, cantavam e dançavam ao som de castanholas. Dialogavam aqueles em versos portugueses e castelhanos, e convidavam-se reciprocamente para as folias da festa.

Antes ou depois desse espetáculo, davam-se outros que consistiam em comédias e farsas,[ 2 ] as mesmas de que já falei.

Nas praças e em algumas casas particulares dos amantes da festa davam-se dançados diversos — jardineiras, danças de velhos;[ 3 ] os homens com seus bordões e as mulheres com grandes caramujos ou búzios, oferecendo pitadas de tabaco, com o que espirravam de instante a instante.

Aqui o Manoel Tomás era o principal vulto! Com sua rabeca executava ele as notas plangentes que dirigiam os passos e os movimentos da dança, acompanhada do violão do Mululo, grande maestro dessa pobre orquestra!

Os estudantes ensaiavam cenas cômicas para divertir o povo. Duas varas de pau, presas a um lençol ou colcha para ocultar o ponto[ 4 ] e dividir o cenário, ei- los pelos becos estreitos ou pelos quartos das casas a darem espetáculos em seu teatro ambulante! Que chusma os acompanhava! Que tantas mesas de doces não fartavam a rapaziada! Os próprios presidentes da província os acolhiam em palácio, festejando-os com a maior lhaneza. Nabuco, Pena, Pedreira[ 5 ] eram amantes dos rapazes, e os estimulavam para esses passatempos inocentes, que davam expansão livre a seus gênios gracejadores.

Assim aprendia-se a falar em público, perdendo-se o acanhamento natural, próprio da idade; a inflexão da voz nas públicas exposições; o acionado[ 6 ] que a deve acompanhar; o passo em cena; as posições, as entradas e retiradas, de modo a nunca voltar as costas para os espectadores.

* * *

No dia 21 de outubro, consagrado pela igreja à honra das Virgens, tinha lugar a solenidade religiosa, que se celebrava na capela nacional — festa solene de três padres com sermão e procissão, finalizando com um Te Deum.

O padre mestre, professor de latim, nomeava três comissões, compostas a primeira dos gramáticos, encarregados do andor de São Miguel; a segunda, dos primeiros e segundanistas, do [andor] de Santa Córdula; e a terceira, dos provectos, terceiranistas, do [andor] de Santa Úrsula. Cotizavam-se entre si, e cada uma delas se empenhava para que o seu andor primasse nos adornos e adereços!

No dia 1° de novembro tinha lugar a cortada do mastro, que ainda percorria todas as ruas da cidade em solene despedida.

Os anúncios dos espetáculos eram apregoados ao som de rufos de tambores pelos mesmos estudantes. Saía um grupo de máscaras dentre os quais era um o precônio, que gritava:

Quem quiser se divertir por hora e meia
À praça do Palácio vá, pois temos ceia,
Onde se darão comédias, entremezes,[ 7 ]
Que vos farão divertir por várias vezes.

* * *

A sociedade de então, pela praga, que nos invadiu, da torpe negociação de africanos, começou a apurar o prejuízo[ 8 ] de raças. Apareceu a distinção entre brancos, pardos e pretos, que buscaram separar-se em todos os atos sociais, civis e até religiosos. Cada qual quis ter suas festas e seus inventos especiais. Os pardos tomaram sua atitude, predominante, e estimulados em seus brios estatuíram devoções e submeteram-se ao patrocínio de seus oragos.[ 9 ]

Em São Gonçalo, belíssima capela, estabeleceram a irmandade, hoje confraria da Boa Morte, e começaram a festejá-la com a pompa que, por tantos anos, a elevou, quando o número dos crentes e o espírito religioso não era indiferente e infenso aos grandes mistérios do Cristianismo.

Havia, entre a igreja e a carreira de casas que estão em seguimento do edifício da assembleia, uma praça onde se armavam barracas para a feira, no tempo de suas festas. Ali vendiam-se em pregões diversas esmolas cujo produto se aplicava às despesas do culto.

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NOTAS

[ 1 ] Tipo de folguedo.
[ 2 ] Peça cômica, de um só ato, curto enredo e poucos atores.
[ 3 ] Dança de influência ibérica em que as mulheres e os homens desenvolvem uma espécie de sapateado.
[ 4 ] Auxiliar de cena que, fora da vista do público, vai recordando aos atores, em voz baixa, suas respectivas falas.
[ 5 ] Presidiram a província nas seguintes datas: José Tomás Nabuco de Araújo, de 1836 a 1838; Herculano Ferreira Pena, de 1845 a 1846; e Luís Pedreira do Couto Ferraz, de 1846 a 1848.
[ 6 ] A gesticulação.
[ 7 ] Pequena farsa de um só ato, burlesca e jocosa, de caráter popular ou palaciano.
[ 8 ] Conhecer o preconceito.
[ 9 ] O santo da invocação que dá nome a uma capela ou templo.

Pe. Francisco Antunes de Siqueira nasceu em 1832, em Vitória, ES, e faleceu na mesma cidade, em 1897. Autor de: A Província do Espírito Santo (Poemeto)Esboço Histórico dos Costumes do Povo Espírito-santense,  Memórias do passado: A Vitória através de meio século. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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