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Artigo 10

Bugiarias[ 1 ] da antiguidade! Eram essas práticas e crendices, filhas de uma imaginação escandescida[ 2 ] pelos vapores do erro, carregada de enormes nuvens, cheias de eletricidade, donde se desprendiam fogos que os punham em mortal confusão!

Já que estamos em maré de medo, superstições, magias, espíritos imundos, influência diabólica, prendamos a essa coroa de tantos mistérios outros prejuízos que detiveram a marcha de nossa civilização, que se poderia ter muito adiantado se em nossas estradas não fosse preciso escavar, desmoronar, perfurar e aterrar enormes abismos, onde se haviam sepultado tantos homens pela cegueira do espírito, dirigido pelo aterrador espectro do fanatismo, monomania religiosa, não autorizada pelo ensino da igreja [e pela] doutrina, mas pelo egoísmo da política de alguns homens que, sob o manto da esposa de J.C.[ 3 ] insinuavam-se em proveito próprio… Tace, Lucretia..[ 4 ]

Assim é que, ao trovejar, levantavam-se cânticos confusos e descompassados pelo terror! De um lado ouvia-se o bendito da eucaristia; senhor Deus, misericórdia; abriam-se os oratórios; acendiam-se velas de cera benta; queimavam-se folhas de livros sagrados e palha dos ramos; as moças e velhas pulavam da cama in minoribus;[ 5 ] homens feitos metiam-se sob as camas, sob caixões e gamelas, tapando com os dedos os ouvidos e oprimindo com força os olhos para nem ouvirem o estampido do trovão, nem verem as cintilações do relâmpago!…

Coitados! Estavam mais expostos do que hoje, em que o estudo, a calma e o sangue frio buscam acautelar os resultados dessas revoluções dos elementos, das alterações atmosféricas, porquanto a física e a química consideram os espaços imensos, por onde estendem nossas vistas ambiciosas e penetrantes, como um engenhoso laboratório de operações cujos agentes entram na combinação e perfeito acordo da vida animal, vegetal e mineral. De sorte que essas decomposições ou transformações formam novas combinações de uma ordem admirável, para o regime de todos os seres!

Pernoitei, em viagem, em uma casa da roça, abrigando-me ali por causa de uma medonha tempestade, acompanhada de tufões e atroadores estampidos de trovoada. A chuva caía em bátegas; os relâmpagos se cruzavam em direções diversas; o ar estava repleto de eletricidade.

Encontrei a pobre gente em um estado quase de loucura! Procurei animá-la… A princípio aquietou-se; mas, alta noite, fui despertado por gritos de desesperação!… Abri a porta da alcova, e que espetáculo presenciei! Todos da casa, homens, mulheres, velhos e moços, prostrados ante um enfumaçado oratório, em vestes menores, como estavam agasalhados quando foram sacudidos pelo trovão, os quais buscavam ensaiar um hino ao Ser supremo para livrá-los do mal iminente, tentando a Providência, que, calma, presidia aos efeitos de suas leis imutáveis! Apenas, aterrados, pronunciavam meias palavras e não chegavam ao fim de suas encetadas orações! Houve sustos, desmaios, foi um desespero de meus pecados! Ralhei muito… expliquei-lhes o que era o trovão, o relâmpago… e acabei por me rir à vontade, ridicularizando… Busquei distraí-los, sem prejuízo de suas crenças, que nada tinham com o natural, para poupá-los tantos incômodos e desassossegos.

No fim de tudo, acalmada a tempestade, lá uma velha resmungou: Este homem é um judeu… não crê em Deus… Retorqui-lhe com doçura, defini minhas crenças, mostrei o que eu era, dei-lhe exemplos palpáveis dos efeitos de certas leis, e deixei a família em paz e quase convencida da verdade! O alimento do espírito é a instrução. Fiquei satisfeito por ter cumprido meu dever.

* * *

Pelas tradições que nos vieram do velho Portugal, e mesmo do Rio de Janeiro, que as conservou por longo tempo, festejava-se no convento dos franciscanos desta cidade o Divino Espírito Santo.

Pompa, imponência, majestade, aparato, presidiam aqui essa festa, a mais arrojada. Aos benéficos influxos do Espírito de Deus, que presidia e inspirava as medidas de sua igreja, para policiar os costumes bárbaros dos povos; amainar seus instintos ferozes e guerreiros; reuni-los pelos vínculos da igualdade e fraternidade, diante de um só altar; identificá-los em um só pensamento: a felicidade; uma só lei: o dever; ainda se submetiam os nossos devotos patrícios, herdeiros de tão preciosos legados, que conservavam e desenvolviam à custa de penosos sacrifícios, para honrar a saudosa memória de seus ilustres maiores.

O mastro tradicional era o símbolo festivo. Eles o tiveram também. Na véspera, carregado pelos devotos, descansando em finos e custosos lenços de seda, percorria as ruas desta cidade, entre vivas, foguetes e outros fogos artificiais.
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NOTAS

[ 1 ] Macaquices.
[ 2 ] Inflamada.
[ 3 ] Esposa de J.C. — esposa de Jesus Cristo, isto é, a Igreja.
[ 4 ] Cala-te, Lucrécia.
[ 5 ] Em trajes menores.

Pe. Francisco Antunes de Siqueira nasceu em 1832, em Vitória, ES, e faleceu na mesma cidade, em 1897. Autor de: A Província do Espírito Santo (Poemeto)Esboço Histórico dos Costumes do Povo Espírito-santense,  Memórias do passado: A Vitória através de meio século. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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